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Revisão constitucional

30 de junho de 2006

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O jurista Ney Prado que tem formação multidisciplinar, tanto no Brasil como no exterior, é detentor de um grande número de títulos recebidos durante a sua vitoriosa carreira jurídica, no magistério e na magistratura.

Foi professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo e atualmente é coordenador do curso de especialização em Direito do Trabalho e professor de Direito Constitucional do Centro de Extensão Universitária, também em São Paulo.

Foi membro do Corpo Permanente da Escola Superior de Guerra no Rio de Janeiro, professor e chefe da Divisão de Estudos Políticos do Colégio Interamericano de Defesa em Washington nos Estados Unidos.

Juiz do trabalho aposentado do TRT-2ª Região, o jurista Ney Prado possui os seguintes títulos:

Vice-Presidente da Associação Promotora de Estudos da Economia no Rio de Janeiro; Membro e Secretário Geral da Comissão de Estudos Constitucionais nomeado pelo Presidente da República para elaboração de Anteprojeto Constitucional 1986/1987 – Rio de Janeiro;.Membro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio de São Paulo; Membro do Conselho Consultivo da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo; Membro do Conselho Técnico da Confederação do Comércio do Rio de Janeiro; Membro do Conselho Consultivo do Centro de Integração Empresa Escola de São Paulo; Membro do Centro de Estudos Estratégicos do CIESP; Membro da Comissão de Defesa do Contribuinte da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo; Membro da Academia Paulista de Direito; Membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho; Presidente da Academia Internacional de Direito e Economia.

Em 1979, representou o Brasil na Junta Interamericana de Defesa em Washington, nomeado pelo Presidente da República. Tem, também, em seu vasto currículo, inúmeras condecorações e centenas de palestras e conferências no Brasil e no exterior.

São de sua autoria os livros:

– “Os Notáveis Erros dos Notáveis” (Análise Crítica do Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos); “A Economia Informal e o Direito no Brasil”, “Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 1988” e “Futuro da Justiça do Trabalho”

Participou, ainda, com outros autores, da confecção de  livros como:

–  “Direito Sindical Brasileiro”; “Reformas Constitucionais”; “Ética no Direito e na Economia”; “Reforma Trabalhista” e “Estudos de Direito”.

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A Constituição de 1988, ao ser promulgada, estava destinada a ser o último modelo para um Estado do Bem-Estar Social. Naquele fim da década dos oitenta, em momento em que outros países estavam se desvencilhando ou já haviam se despojado de seus antiquados aparelhos estatais hipertrofiados, centralizadores, burocratizados, ineficientes e, sobretudo, insuportavelmente dispendiosos, o Brasil, guiado pelos constituintes de 1988, enveredava pela contramão da História. Recebia, então, o País, uma Carta Política longa, casuística e incompletamente negociada através de pequenos compromissos recíprocos, fruto de uma generosa dose de  utopismo, de uma demagogia auto-intitulada de progressista, de um corporativismo militante dos grupos mais organizados, de um bem intencionado socialismo dos que ainda criam ser possível lograr distribuir riquezas sem produzi-las, do estatismo saudosista dos que não vêem como a sociedade possa prescindir da tutela do Estado, do paternalismo dos que têm o Governo como o munífico provedor de todas as necessidades, do assistencialismo dos que acreditam que a letra da lei converte-se automaticamente em benefícios, do fiscalismo dos despreocupados com as conseqüências desmotivadoras e recessivas das sobrecargas tributárias e, por fim, da xenofobia de tantos que, mesmo por eles fascinados, ainda temem os estrangeiros.

O inevitável resultado da imposição dessa camisa-de-força, versão cisatlântica de constituição dirigente, foi o fortalecimento da estrutura recebida do Estado autocrático que, paradoxalmente, se pretendia despedir, com todo o seu desmedido peso financeiro, confiscatório de quase um terço do produto interno bruto de toda Nação, para dispersá-lo entre mais de cinco mil unidades políticas, num festival burocrático de baixissimo retorno à sociedade.

Obsoleta para resolver os velhos problemas pendentes, a Constituição de 1988 muito menos havia sido aparelhada para enfrentar os problemas emergentes deste fim de século suscitados pela Revolução das Comunicações, como a globalização, a competição por mercados, por capitais e por cérebros, a resistência social ao aumento da tributação e o fenômeno do despertar das massas para uma crescente participação política. Toda essa arraigada origem estrutural da ingovernabilidade não pode ser revertida senão através de profundas e amplas reformas do Estado Brasileiro; isso porque, muito embora o direito, enquanto ordem positiva, pouco possa influir como causa do desenvolvimento, sabe-se, por farta experiência histórica, que é imenso o seu poder inibidor e destrutivo, mormente em países em vias de desenvolvimento, nos quais se registra um abissal descompasso entre o produto nacional, de um lado, e o custo-país, de outro, gerado por tributos escorchantes, por elevados déficits fiscais e por inúmeras prestações onerosas que ficam a cargo do Estado.

Não obstante os propósitos generosos, nos duzentos e quarenta e cinco artigos originais da Carta de 1988, os sistemas político, econômico e social por ela instituídos mostraram-se de tal modo emperrados, arcaicos, ineficientes e frustrantes das expectativas populares, nesses seus dezessete anos e meio de turbulenta vigência, que basta considerar-se o número de Emendas (ou de remendos) promulgadas, cinqüenta e uma ao todo, para constatar-se inequivocamente sua inadequação originária aos superiores reclamos do desenvolvimento do País, falha que hoje até mesmo seus subscritores em maioria o reconhecem e abertamente o demonstram, sendo os primeiros a pugnar, no Congresso Nacional, por corrigir seus erros.

Ora, instituições políticas, quando são equivocadas, mas rigidamente constitucionalizadas, como as responsáveis pelo delicado equilíbrio entre Poderes, pela repartição federativa de competências e de receitas tributárias, pela representação eleitoral, pelos serviços e servidores públicos, e tantas outras mais, exacerbam a  ingovernabilidade Do mesmo modo, fragmentos ideológicos supérstites, cristalizados como dispositivos constitucionais, atrasam e dificultam a abertura da economia, obrigando o País a perder um tempo precioso na corrida da competição global. Similarmente, as distintas políticas governamentais, também inflexivelmente constitucionalizadas, que foram imaginadas para os sistemas de educação, saúde, previdência, segurança pública, política urbana, rural e indigenista, não só já se revelaram anacrônicas e falidas como respondem pela crescente e alarmante deterioração de vários serviços prestados à população.

O legislador constitucional, ao que tudo indica, a julgar pelo demonstrado afã de tudo regrar nos mínimos detalhes e de reduzir os espaços da legislação infraconstitucional, desconfiava do legislador ordinário e quis assegurar-se de que suas iluminadas opções governativas prevaleceriam resguardadas pelas exigências materiais e formais estabelecidas para o processamento das Emendas. Não deixa de ser realmente paradoxal que depois de reconquistadas as franquias democráticas plenas, interrompidas por mais e vinte anos, inclusive com a adoção de novos e promissores instrumentos de participação política, a Constituição se tivesse dedicado a reduzir, ponto por ponto, as oportunidades de utilizá-las em inúmeras questões vitais para os cidadãos, precisamente aquelas que, por sua mutabilidade, são as que mais e permanentemente demandam flexibilidade de respostas governamentais. Não é difícil convir, assim, que Miguel Reale tinha toda razão, em 1986, ainda quando os “Notáveis”, convocados por José Sarney, preparavam o texto matriz onde os constituintes de 1988 foram abeberar-se da doutrina da constituição dirigente, ao prever que o autoritarismo governativo acabaria sendo substituído pelo totalitarismo normativo1, como resultado de um lamentável conceito elitista e preconceituoso que acabou prevalecendo.

O previsível resultado desse anacronismo – o estatismo paternalista, patrimonialista, assistencialista e corporativista – continuaria a preponderar sobre a racionalidade na execução das políticas públicas, mantido assim, com todo o vigor do velho e falido Welfare State durante esses dificeis anos de vigência da “Constituição Cidadã”, e, por isso, ficariam obstadas, por todos os modos elaboradamente amarrados na ordem jurídica, as transformações que a sociedade brasileira vem reclamando manifestamente já em quatro eleições presidenciais consecutivas.

 

O INSTITUTO DA REVISÃO

As Constituições, leis fundamentais dotadas de supremacia normativa sobre todas as demais, são tradicionalmente classificadas em sintéticas e analíticas; aquelas, limitando-se a estabelecer os princípios e preceitos essenciais à organização do Estado, à declaração de liberdades e definição de direitos individuais e coletivos e a traçar as linhas programáticas para a ação do Estado, da sociedade ou de ambos2, e estas, as analíticas, a desenvolver mais pormenorizadamente cada um desses conjuntos de normas.

Mais recentemente, os textos constitucionais passaram a receber toda espécie de normas que neles quisessem inserir os seus autores, definindo, por vezes à exaustão, quando não redundantemente, preceitos sobre quaisquer matérias, até mesmo as que sempre foram tratadas a nível regulamentar.

Por outro lado, observou-se também, por volta da década de setenta, uma sobrevalorização do componente ideológico-programático, traduzida na inserção, no Texto Maior, de inúmeras e detalhadas definições de políticas governamentais destinadas a dirigir os futuros poderes constituídos, ou seja, estabelecer “tarefas de Estado”, na expressão de J.J. Gomes Canotilho3.

A tipologia clássica tomou-se, assim, insuficiente para explicar esses novos modelos, mas enquanto apenas o excesso de detalhes já basta para descrever uma Constituição casuística, pois ela seria uma patologia do analítico, e como tal não encontra defensores, a regulação detalhista “autoritária e intervencionista”4 caracterizadora da Constituição dirigente, fez escola e lançou suas raízes no ultramar, na Carta brasileira de 1988.

Necessariamente, essas variações teriam que repercutir sobre uma outra tradicional classificação dicotômica, entre Constituições rígidas e flexíveis, uma vez que a rigidez se compatibiliza sem dificuldades com os modelos sintéticos, mas não tão facilmente com os modelos analíticos. Essa incompatibilidade é que acabou se tornando aguda e problemática na medida em que proliferavam os modelos casuísticos dirigentes, uma vez que através deles tem um sem número de exemplos de decisionismo constitucional acabaram protegidos por cláusulas pétreas, explícitas ou implícitas.

Confrontadas, de um lado, com a necessidade política de serem alteradas e, de outro, com o hibridismo antagônico rígido-analítico, formalmente implantado, explícita ou implicitamente, as Constituições contemporâneas desse tipo, como a brasileira de 1988, podem suscitar dramáticos dilemas políticos, que oscilarão entre a obediência a esquemas inflexíveis de reforma, com o risco de aluir seus fundamentos de legitimidade com o rompimento formal do sistema e todos os inconvenientes de insegurança jurídica decorrentes, e a busca de soluções criativas além da ortodoxia positivista, como de fato vem ocorrendo e a seguir se exporá.

A doutrina clássica teve sempre por assemelhados os processos de reforma constitucional, tanto o ordinário, por via de revisão, quanto o extraordinário, por via de emenda, às chamadas cláusulas pétreas, considerando-os implicitamente imodificáveis. Mas, mesmo no passado, quando o princípio democrático era mais tênue que hoje e a forma da democracia representativa era plenamente dominante, essa cláusula pétrea implícita, seja limitadora do poder reformador competente, seja restritiva do tipo de procedimento a ser por ele seguido, já recebia temperamentos. Foi o que ocorreu no importante precedente histórico da Lei Constitucional francesa, de 3 de junho de 1958, que inovou regras de reforma constitucional na Constituição de 1946 para transferir o poder constituinte derivado a Charles de Gaulle, submetendo-a a referendo popular legitimatório, uma formalidade distintiva da democracia participativa que começava sua trajetória ascencional no segmento pós – guerra. 5

Mais recentemente, outro caso de moderação na interpretação do rigor formal de cláusulas pétreas no Direito Constitucional contemporâneo, em hipótese de Carta ainda mais analítica e de mais forte sentido dirigente, por sinal reputada como um dos modelos mais proximamente seguidos pelo constituinte brasileiro de 1988, deu-se com a segunda revisão da Constituição Portuguesa de 2 de abril de 1976.

A primeira revisão constitucional (Lei Constitucional no. 982) já havia sido considerada por seus comentaristas “extensa e, em alguns domínios profunda” mas, apesar disso, não teria chegado a lesar “a essência da Constituição” e nem romper “com a ordem constitucional originária”, expressões que guardam sinonímia com o conceito autopoético, também moderníssimo, de identidade constitucional.

Tem-se, com efeito, como um dos traços marcantes do direito público neste final de século, a pressão popular por maior participação política em todos os processos do poder, na legiferação, na administração e na jurisdição. A respeito, nossa monografia “Direito da Participação Polifica”, editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992.

A segunda revisão constitucional (Lei Constitucional n.01/89), porém, eliminou algumas cláusulas pétreas, com o sentido de possibilitar de futuro a reforma das matérias constitucionais que haviam sido por elas protegidas, mas, não obstante esse surpreendente rompimento da velha ortodoxia teórica, seus abalizados e insuspeitos comentaristas, como J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, concluíram com acerto que “Globalmente considerada, portanto, a revisão não se traduziu numa solução de continuidade constitucional”6. Na verdade, essa construção doutrinária tinha o mérito de conciliar o pleno ingresso de Portugal na Comunidade Européia sem rompimento de sua ordem jurídica.

O problema passou a se situar, assim, não no valor absoluto de qualquer cláusula pétrea, explícita ou implícita que seja, mas na verificação da possibilidade de encontrar-se uma forma legítima de evolução que preserve a identidade constitucional originária. Em outras palavras: o conceito de rigidez evoluiu para passar a ser entendido como uma técnica substantiva de estabilidade voltada à manutenção dessa identidade, necessariamente com sentido material, seja este um valor autônomo, da própria Constituição, seja ele heterônomo, que se impõe por fora ou por cima dela, excluindo-se, assim, os limites meramente formais, que não portam valores e, por isso, não apresentam referencial direto com a legitimidade.

Concluindo a apreciação da questão da dupla revisão, Canotllho e Vital Moreira tampouco vêem obstáculo jurídico intransponível nos limites formais implícitos, ou seja, nos que não estão mencionados no próprio sistema de revisão.7

No mesmo sentido manifesta-se na doutrina italiana Enrico Spagna Musso, afirmando que “se num determinado ordenamento estatal está previsto um processo de revisão constitucional sem a explícita previsão de limites à própria revisão, não se pode sustentar a existência de limites implícitos em relação a dadas matérias” 8

No Brasil, tampouco, na experiência constitucional recente, a existência de limites formais implícitos de reforma, no caso pela via de emenda, foi invocada como impedimento para que se promulgasse a Emenda Constitucional no. 26, de 27 de novembro de 1985, que transformou o Congresso Nacional constituído, em Assembléia Nacional Constituinte “livre e soberana”,9 ou seja, sem submissão a quaisquer tipos de limites instituídos, como também se exigia na tradição doutrinária nacional. 10

Mas a despeito da doutrina contrariada, nenhuma violação de limites implícitos chegou a ser verberada, nem mesmo sob a pesada suspeita de ilegitimidade do Congresso Nacional, então composto por senadores desprovidos de investidura democrática pelo voto popular, nem mesmo, ainda, pelo ponderável argumento de que seria imprescindível para legitimar o processo que se o culminasse com um referendo, como foi brilhantemente sustentado pelo saudoso jurista Geraldo Ataliba e por Michel Temer.11

Com efeito, as clássicas concepções formalistas e juspositivistas do fenômeno constitucional, como avivam os exemplos assinalados, parecem ter ficado superadas, com o advento de novas vertentes teorético-dogmáticas que se mostraram mais adequadas ao que hoje se espera de uma Constituição: menos comprometida com a manutenção do status qua, mais aberta a valores e, sobretudo, mais efetiva para garantir a estabilidade política que todos os povos almejam.

Com a ênfase axíológica, porém, não se está procurando, para escapar ao legalismo, retomar a ordem de valores (Wertordnung) weimariana, com suas referências antropológicas e metafísicas remanescentes de um romantismo tardio, mas, ao contrário, avançar para uma reconstrução dos valores democráticos fundantes (Grundrechte) sob formas jurídicas (Grundrechte) na formulação do que se tem denominado apropriadamente de um “constitucionalismo adequado”12, para que não nos perguntemos, afinal, como Dworkin, “se o Direito Constitucional não foi construído sobre um erro”.13

Os valores, porém, enquanto conceitos antropo-axiológicos, recebem codificação para ingressar no mundo do direito e nele vir a estruturar os sistemas jurídicos por meio da destilação e da organização nuclear de um centro de identidade constitucional formado por princípios, estando aqui, para Robert Alexy, a distinção fundamental entre ambos, valores e princípios, a partir da qual se abre uma nova e ampliada compreensão da Constituição como um sistema aberto de preceitos e princípios14, em que a atividade subsuntiva e silogística, própria da visão piramidal kelseniana, conducente ao unidimensionalismo jurídico, cede à atividade ponderativa e razoabilística, mais harmônica com a visão autopoiética teubneriana, e, por isso mesmo, conducente ao circularismo auto-reflexivo do direito15.

Observe-se, porém, que o enclausuramento autopoiético se situa no plano puramente normativo, da organização, onde se desenvolve o processo jurídico, ao passo que a estrutura, que sobre ela historicamente se desenvolve, abre-se para receber os influxos externos, daí a referência à obra de Niklas Luhmann, para quem o sistema jurídico é normativamente fechado e cognitivamente aberto16.

Ao contexto cede o texto, de modo que, desde que não haja desfiguramento da identidade reflexiva da Constituição, permanecendo intocados e até mesmo rejorçados17 e revivificados os limites expressos substantivos, ou seja, aqueles que revelam valores e respectivos princípios fundantes, a reforma constitucional, agora pensando na Carta brasileira de 1988, pode ser eficientemente realizada estendendo o instituto da revisão do corpo transitório, onde parece restar inoperante, para o corpo permanente da Constituição, combinando-a com o emprego do princípio legitimatório fundante do referendo, como condição de vigência.

JUSTIFICAÇÃO DA PROPOSTA DE EMENDA REVISIONAL 

A Constituição de 1988 distinguiu e adotou os dois tipos de reforma usuais no constitucionalismo contemporâneo: a revisão e a emenda, prevendo-lhes processos distintos. Conferiu-se à emenda um sentido casuístico, pontual e extraordinário, mas permanente (art. 60), ao passo que à revisão deu um sentido amplo e obrigatório, não, porém, ordinário e permanente (art. 3° do ADCT).

Observe-se, ainda aqui, uma outra estranhável preocupação elitista do constituinte originário, ao negar o caráter ordinário da revisão, tal como é encontrada nas Cartas contemporâneas analíticas tomadas em tantos outros casos como modelo, para reduzi-la a uma utilização singular e excepcional. Não obstante, imagine-se como compensação, tomou-a mandatória, ou seja, não deixou sua realização ao alvedrio do Congresso18.

Por ocasião da efetivação da revisão prevista, nas circunstâncias políticas sobejamente conhecidas, o Congresso Revisor decidiu porém se auto-limitar, fixando-se um prazo peremptório para concluir os trabalhos. Com esse expediente, estava criada uma subordinação indevida de um comando substantivo de nível constitucional para realizar a revisão, a um limite temporal, um comando formal, de hierarquia regulamentar (interna corporis), o que levou ao prematuro encerramento do processo revisor sem que se houvesse esgotado, pelo menos, a pauta da Relatoria, que já tinha sido, por sua vez, minimizada com o intuito de atender ao referido prazo.

É, portanto, perfeitamente sustentável que a revisão determinada pelo constituinte original não chegou a ser realizada, pelo menos com o sentido e abrangência por ele previstas, que não poderiam ser consideradas atendidas com a promulgação das discretas seis “Emendas de Revisão” produzidas, quase todas de relativa pouca importância diante de um contexto total de 318 artigos a serem revistos, sendo 245 permanentes e 73 transitórios. Afinal, o objetivo revisional só poderia ter sido o de proceder-se a uma ampla reapreciação de todo o Texto, como é do próprio conceito do instituto, e não ter sido adotado para produzir meia dúzia de emendas singulares, diferenciadas das demais apenas pelo rito.

Isso posto, pode-se retirar duas premissas, que ora se submetem como justificação de um proposta para instituir a revisão como espécie de reforma constitucional em caráter ordinário, permanente e periódico: primeiro, não se trata de um instituto estranho ao direito constitucional positivo brasileiro vigente e, segundo, o seu comando original, por não ter sido esgotada a sua destinação, permanece eficaz, apto para que se reabra a sua execução, não obstante prematuramente interrompida.

Uma Emenda Constitucional neste sentido, além de resgatar a vontade do constituinte originário, lesada em 1994, estaria perfeitamente harmônica com o entendimento que se vem emprestando aos conceitos de limites, como acima se expôs, tornando perfeitamente válida e apropriada essa transposição do instituto para o corpo permanente da Constituição, sempre que respeitadas as condições de oportunidade (art. 60, §IO) e de conteúdo (art. 60, §4°) já estabelecidas para o processo das emendas.

Com efeito, inexistirá qualquer limite implícito formal oponível se, como tem aceito a doutrina, se agravarem, em relação ao disposto originalmente, as formalidades exigidas para a reforma; o que poderá ser atendido submetendo-se a revisão, uma vez concluída, ao referendo popular, que, por sua vez, tampouco é um instituto estranho ao ordenamento constitucional de 1988, incluindo-se, por sinal, na competência exclusiva do Congresso Nacional (art. 49,XV), embora, como demonstra recente e bem conduzido estudo de direito comparado, encontre-se ainda muito acanhado, com amplíssimo espaço jus-político para desenvolver-se19.

Restaria a definição do órgão revisor. Aqui tampouco levanta-se um limite implícito oponível, principalmente se a escolha recair numa convocação popular para a eleição de uma Constituinte Nacional Revisora exclusiva. Esse alvitre teria três vantagens indiscutíveis; pela ordem de importância: não paralisaria os trabalhos da legislativa ordinária, não se poderia acoimar a classe política de legislar em causa própria e se estaria reforçando a legitimidade de todo o processo, além de possibilitar, periodicamente, uma utilíssima consolidação constitucional.

A revisão se incorporaria ao Texto permanente como um tipo ordinário e mais amplo, porém fatalmente mais exigente de reforma, conjugada ao referendo, inaugurando-se dês’arte uma nova etapa do desenvolvimento do direito político no Brasil. Em Última análise, o rompimento do impasse político na transformação do Estado brasileiro se faria pelo recurso democrático ao detentor do poder soberano, absolutamente na mais elevada linha principio lógica sacralizada nos próprios dispositivos fundamentais da Constituição20.

Desse modo, o povo, que não foi consultado nem para a convocação da Assembléia Nacional Constituinte de 1987, esquecido pela Emenda Constitucional n.026/85, nem para ratificar o produto de seu trabalho, nem para apreciar o simulacro de revisão que o surpreendeu e o vexou em 1994, teria enfIm a oportunidade de ser chamado para decidir não apenas por quem quer ser governado, prerrogativa da democracia representativa, mas como quer ser governado, conquista da democracia participativa21. Afinal não há razão alguma, ao contrário, sobejam, para que não se devolva ao povo, o soberano nas democracias, neste final de século e de milênio, o direito de decidir sem intermediários sobre o seu futuro .

A comemoração de quase dois decênios da Constituição de 1988 não poderia ser mais apropriada e mais democrática que pela devolução ao povo, em caráter permanente e periódico, da mais ampla decisão sobre seus destinos. Como tantas vezes ocorreu na história dos povos, o referendo viria como solução áurea para romper antigos impasses políticos, renovar as relações entre os Poderes do Estado, ao mesmo tempo que se estaria queimando angustiantes etapas formais que ainda nos estão separando de uma era de desenvolvimento sustentado que nos inserirá na sociedade global, em intenso processo de integração política, econômica, social, científica, tecnológica, artística e cultural, tudo com a necessária e sempre aspirada estabilidade constitucional: a permanência do essencial pela transformação do acidental.

De resto, se a Carta de 1988 se assentou sobre premissas que se revelaram falazes, utópicas e ilusórias, possivelmente porque a participação popular foi então canalizada por segmentos militantes e vozes corporativas, cabe agora à sociedade, como um todo, imprimir o realinhamento que deseja para o Estado nos próximos dez anos e assim sucessivamente, porque o ritmo de suas transformações será previsivelmente cada vez mais acelerado e a política, parafraseando Clemenceau, é demasiado importante para ser entregue apenas a políticos.

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NOTAS

1 MIGUEL REALE, in razões de Divergências, Folha de São Paulo, 29/6/86, p.3:”…quando o legislador se substitui ao povo, impondo-se normas rígidas e bloqueando o processo da livre construção de seu próprio caminha.”

2 Adotou-se a precisa classificação tripartite de LUIS ROBERTO BARROSO, in O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, Ed. Renovar, 1990, os. 84 e 85.

3 JOSÉ JOAQUIM GOMES CANOTILHO, in Rever ou Romper com a Constituição Dirigente Defesa de um Constitucionalismo Moralmente Reflexivo, Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, Ano 4, n.º 15, abril-junho de 1996, p. 11.

4 J.J. GOMES CANOTILHO, op. Cit., p. 9.

5 Tem-se, com efeito, como um dos traços marcantes do direito publico neste final de século, a pressão popular por maior participação política em todos processos do poder, na legiferação, na administração e na jurisdição. A respeito, nosso monografia Direito da Participação Política, editora Renovar, Rio de Janeiro, 1992.

6 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Fundamentos da Constituição, Coimbra Editora, 1991, pg. 291 e ss..

7 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, op. Cit., p 300

8 ENRICO SPAGNA MUSSO, Diritto Costituzionale, CEDAM, Pádua, 1992, 4ª ed., 121 (n/grifo)

9 A expressão entre aspas está no art. 1º da Emenda nº 26/85

10 JOSÉ AFONSO DA SILVA, por exemplo, apoiando-se na excelente monografia de NELSON DE SOUZA SAMPAIO, O Poder de Reforma Constitucional (Ed. Livraria Progresso, Salvador, 1954, p. 93 e ss,) tem como excluídas do alcance de uma emenda as normas constitucionais referentes a titularidade do poder reformador e ao processo da própria emenda ou revisão.

11 Apud NEY PRADO, Razões das Virtudes e Vícios da Constituição de 1988, Ed. Inconfidentes, 1994, p.25.

12 J.J. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, Ed. Almedina, Coimbra, 1991, 5ª. Ed. P.174.

13 RONALD DWORKIN, Law’s Empire, Belknap Press, Cambridg, 1986, em epigrafe ao Cap. X.

14 ROBERT ALEXY, Theorie der Grundrechte, Baden-Baden, 1985, p 133 e ss.

15 JOÃO CARLOS SIMOES GONÇALVES LOUREIRO, em preciosa monografia, O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares, Coimbra Editora, 1995, considerando a tesa do “constitucionalismo adequado”, chama a atenção para o fato de que a ponderação não exclui a motivação, uma vez que a descoberta, por aquela produzida, tem de dar lugar a justificação, pois a racionalidade é a pedra angular do trabalho jurídico” (p. 172)

16 Apud JOÃO CARLOS SIMOES GONÇALVES LOUREIRO, op. Cit., os 173 e 174.

17 Como é o caso do que adiante se propõe com relação aos adquiridos, hoje tempestuosamente subsumidos no inciso IV, do § 4º, da Constituição.

18 A expressão do art. 3º do ADCT é inequívoca neste sentido: “ A revisão constitucional será realizada após cinco anos…” (n/grifo); não existe faculdade de realiza-la ou não; apenas se fixou um interregno mínimo para concretiza-la.

19 V. de ADRIAN SGARBI, O Referendo no Brasil, Itália e Suíça: Uma Analise Comparativa, Revista dos Tribunais, Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 4, nº 16, julho/setembro de 1996, os. 142 a 158, dos quais se extrai a seguinte conclusão:”2. O referendo, como instrumento de participação ex populo, é importante fonte de legitimação da esfera política, pois pode desempenhar o papel de colmatar eventual ruptura etre representante e representados, ao mesmo tempo que transforma o cidadão, de mero expectador, em sujeito das relações sociais decisórias, trazendo-o ao exercício da democracia.” (p. 156).

20 Art.1º, Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição (n/grifo)

21 A referencia é a conhecida indagação de JEAN RIVERO no estudo A propôs dês metámorphoses de I’ Administratin d’aujourd’hui: démocratie et administration, in Mélanges offerts a René Savatier, Ed. Dalloz, Paris, 1965, p. 827.