Saco cheio

1 de agosto de 2013

Fernando Foch Desembargador do TJRJ, Membro da COMCI – Comissão Mista de Comunicação Institucional do TJRJ

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Saco cheioPreocupa a incapacidade de os políticos enten­derem as manifestações que têm sacudido a rotina brasileira e delas extrair lição. Sem se compreender esse não se diga movimento, mas fenômeno, as multidões não serão caladas com conversa fiada em se assumir o discurso que as ruas sugerem e em se lançar propostas espetaculares, como a de uma assembleia constituinte exclusiva para a reforma política, que bem poderia ser feita pelos poderes instituídos. Ou de um plebiscito de igual jaez. Tudo tem jeito de manobra de marketing, a objetivar ocupação de espaço na mídia, e por longo tempo, através de encontros da Presidente da República com setores do Estado e da sociedade civil.

Não é suficiente anunciar e efetivar redução de tarifas de transportes, com o comprometimento de investimentos públicos, dado que, por força de subsídios, a parcela de solidariedade social dos concessionários e permissionários permanece no crédito do povo. É inócuo decidir destinar todos, ou quase todos, os royalties do pré-sal para educação, até porque o que urge melhorar é a qualidade do ensino em todos os níveis, seja a prestada pelo Estado, seja a que está a cargo da iniciativa privada. É preciso mudar a filosofia do ensino, fazer com que os dois primeiros graus não sejam uma usina de formação de analfabetos funcionais, mudar radicalmente o superior, retomar e incentivar a pesquisa científica, formar profissionais competentes.

Importar médicos por certo não abre leitos, não conserta equipamentos nem supre falta de material. Acenar com boa parcela dos recursos do pré-sal também não elimina de imediato essas carências nem as minora, não diminui o sofrimento de quem hoje, agora, precisa de socorro e não o tem. Dar tratamento de crime hediondo aos de corrupção ativa, de corrupção passiva e a alguns outros da mesma natureza, tampouco elimina essa forma de delinquência, até porque torna utópica a execução da pena o precário sistema penitenciário brasileiro. Sem contar como disse o Ministro da Justiça, ante condenação imposta a seleto rol de condenados, entre nele ficar preso e morrer, melhor morrer. Sem contar, sobretudo, com o que isso quer dizer.

Todas essas medidas visam a adiar o problema, com o demérito de incentivar protestos não mais difusos, como os das primeiras semanas da onda de manifestações, mas tópicos, localizados, dos paroquiais aos nacionais. É a realimentação da crise, num claro sinal de novos tempos. Os políticos não o percebem e se empenham em acalmar, não exatamente resolver. Adia-se, empurra-se com a barriga, como, aliás, é o caso da rejeição da PEC 37, quanto ao que não é demais lembrar que “matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa” (CRFB, art. 60,  § 5o). Em outra, pode.

Tampouco as multidões serão caladas, levando-se à Justiça uma meia dúzia de arruaceiros que têm aproveitado as oportunidades para apedrejar, incendiar, depredar e de permeio saquear o comércio, dado que essas brigadas, se são compostas por um grupelho trotskista que com certeza nunca leu Leon Trótski, hão de ter o reforço prestimoso de quem tenha interesse em justificar repressão policial mais contundente, além, é claro, do concurso indisfarçado de delinquentes de variadas especialidades criminosas.

Aliás, a imprensa tem dado sua contribuição para acalmar as multidões, como se panaceias fossem o suficiente. Nas transmissões ao vivo das manifestações e nos noticiários, derramou-se em elogios à imensa maioria ordeira dos manifestantes. Disse que as passeatas eram bonitas. Afirmou que elas, pacificamente realizadas, eram saudável exercício da democracia. E deplorou a ação dos depredadores, a quem, com razão, chamou de vândalos. Adjetivou, tomou partido, mudou a regra de ouro da reportagem. Isso não ajuda.

Acostumados à assessoria não de sociólogos, cientistas políticos e outros cientistas sociais, mas de marqueteiros e prestidigitadores políticos, eles, os políticos, se mostram apenas preparados para ganhar eleições e exercer o Poder na base do fisiologismo e da barganha de cargos públicos, disputados quase a tapa não pelo que neles se possa fazer no interesse público, mas pelo que representam em lucros eleitorais.

A eles há de ter sido dito que a legitimidade do Poder é tão maior quanto maior for a aprovação popular de quem o exerce, e aí o que se vê, envolta em maciça propaganda, é a política da bica d’água e do açude – a bica d’água na favela, o açude no agreste, o mínimo do mínimo onde não há nada, para o máximo de clientelismo – que com o tempo se transmudou nas bolsas-isso, nas bolsas-aquilo e em coisas como a política de pacificação de favelas que, a qual se tem algum mérito, tem o defeito de empurrar delinquentes para lugares menos visíveis. Põe o lixo sob o tapete. São apenas exemplos. É enorme o rol de medidas que atacam os efeitos e não as causas dos graves problemas sociais brasileiros, como é de nossa triste tradição político-administrativa.

No entanto, está claro que no país da propaganda política, das palavras vãs e das promessas descumpridas ou mal cumpridas, a opinião pública, esse implacável juízo coletivo da verdade, vê qualquer palavrório como mera fanfarrice. Sintomaticamente, ao fim do outro evento marqueteiro inspirado na crise, um jovem integrante do Movimento Passe Livre, de São Paulo, sentiu-se autorizado a dizer à imprensa que a Presidente não está preparada para discutir a pauta que propusera ao grupo, restrita, é verdade, a transporte. O fato ocorreu nessa sucessão de seus encontros com setores do Estado e com representantes da sociedade civil, de estudantes a sindicalistas, passando pelo pessoal do LGBT, o que, se nada adianta, pelo menos garante espaço na mídia e por semanas a fio.

Tudo isso desnuda a perplexidade, a surpresa, a estupefação nas quais as ruas acuaram os políticos, mudos no primeiro momento.

É preciso, no entanto, que eles entendam o que se passa, o que tem levado multidões às ruas, em impressionantes manifestações sem líderes e sem partidos, sem chefes e sem centrais sindicais, aliás, expressamente, estas e aqueles, rejeitados pela massa. Buscar essa compreensão é dever de quem exerce o Poder. Não é difícil. Se alguma dificuldade nisso existe, ela é a de se exercer o Poder com sincera consciência de que quem o detém dele deve-se desincumbir em consonância com a vontade média do povo e em prol do interesse público, não em benefício próprio, de um grupo de apaniguados, de um partido político ou de uma coligação partidária, aliás, no Brasil, de inconvincente substância ideológica.

Se essa dificuldade for vencida, entender-se-á que na malversada democracia brasileira o povo tem enfiado a viola no saco das insatisfações. Insatisfações com palavrório vazio dos detentores do Poder e com os serviços públicos, com marketing político e com a corrupção, com a educação e com a insegurança, com a desordem urbana e com a carga tributária, com a compra de parlamentares e com as licitações fraudadas, com as chacinas e com a falta de saneamento básico, com a Polícia e com a saúde pública, com a criminalidade e com a Justiça, com o desvio de verbas e com obras faraônicas para agrado da FIFA, com dólares em cuecas e com o dinheiro público jogado fora em coisas como, por exemplo, no Rio de Janeiro, a Cidade da Música e as praças esportivas (mal) construídas para os últimos Jogos Pan-Americanos.

Mas não é só. Há evidente insatisfação com a iniquidade nas relações sociais, do que são exemplo as de consumo, as quais, tendo todo um Direito de proteção ao consumidor e, de um lado, toda uma estrutura vocacionada à sua efetividade, tem, de outro, planos de saúde, bancos, grandes organizações varejistas e concessionárias de serviço público em teimosa resistência ao cumprimento das obrigações que assumem, em renitente adoção de práticas abusivas e perseverante impingimento de cláusulas leoninas. Isso, sem falar na Administração Pública das várias esferas federativas, que recalcitram no cumprimento do Direito e tergiversam na hora de cumprir as condenações judiciais que recebem. Comprovam-no as demandas aos milhares, senão milhões, levadas ao Judiciário, que, por seu turno, a elas não dá pronta resposta porque, afora o volume de feitos, um arsenal de recursos, não por acaso engendrado, conspira contra a efetividade da prestação jurisdicional.

Aliás, a Justiça tem sido poupada. Mas ninguém se engane. Está aí a Ação Penal 470, que teria sido, segundo abalizada voz, um ponto fora da curva do Supremo Tribunal Federal. Ela estará no foco das massas a partir do momento em que uma profusão de recursos puder levar à absolvição de qualquer dos condenados do “mensalão”. Ou à prescrição dos crimes que lhes foram imputados.

Antes que seja tarde, é preciso perceber que o saco está cheio. As massas, ao que parece, dele tiraram a viola. E mais: o saco pode se transformar numa Caixa de Pandora.

É preciso ainda entender que os líderes não são identificáveis. Eles não têm corpo nem mente. Nem RG, endereço ou CPF. A liderança é a informação, que sempre pressupôs o direito de ser informado e o de informar, este antes restrito ao Estado e à mídia.

Todavia, a rede mundial de computadores, a world wide web, ou, como se prefira, a internet, especialmente através das redes sociais, o democratizou. Hoje, ele é efetivamente de todos.

Por tudo isso, a lição que tem de ser aprendida pelos políticos é a de que a aprovação que legitima o poder exige políticas públicas de efetivos conteúdo, eficiência e eficácia. Não há lugar nem para a bica d’água nem para o açude, na velha ou na nova acepção. Também não há lugar para os marqueteiros nem para prestidigitadores políticos. Nesse cenário, novo pela amplitude do direito de informar, se exercita a verdadeira política e a verdadeira política não é mercadoria nem ação entre amigos.