Vale a pena colecionar livros raros?

5 de fevereiro de 2005

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O fenômeno da coleção, quer de artes plásticas, quer de livros raros ou manuscritos, tem aspectos curiosos e pode ter motivações variadas, desde a apreciação genuína da beleza artística e da fruição intelectual, até a preocupação com um bom investimento ou um certo exibicionismo. O interessante é que as diversas motivações, tão diferentes entre si, têm alguns resultados comuns: a criação de uma possibilidade de trabalho e de reconhecimento para os artistas, a preservação das obras de arte, a conservação da memória. Tudo isso correria o risco de não existir, se não houvesse esta fauna especial que se chama colecionador.

Minhas considerações se limitam aos que se dedicam às artes plásticas e ao livro raro, sem entrar em qualquer indagação de valor quanto a outras coleções, algumas respeitáveis, outras de uma aparente futilidade. Como sou parte integrante dessa fauna, não pretendo julgar ninguém; o que a mim pode parecer futilidade, empolga a vida de muita gente, que, por sua vez, não consegue compreender o interesse que pode representar um livro velho, às vezes meio rasgado e desconjuntado e, o que é pior, que já passou por muitas mãos, ou seja, um objeto usado. Uma coisa é certa, ao menos no Brasil: o número de colecionadores de artes plásticas é muito maior do que o de livros raros. Estes últimos constituem um grupo bastante limitado, vivendo mais ou menos ensimesmado, ou em círculos fechados, talvez porque um conjunto de livros tenha menos atrativos óbvios do que um conjunto de pinturas, desenhos, gravuras ou esculturas, de beleza mais evidente e apreciação mais fácil.

Embora os livros sempre tenham me atraído, principalmente por seus textos, o campo do livro raro é imenso e extremamente gratificante. e a bibliofilia vai muito além do prazer da leitura.

No Brasil, por razões óbvias, as principais coleções são dedicadas a assuntos brasileiros: História, Viagens, Literatura, Estudos Sociais e Políticos, etc. embora, paradoxalmente, as melhores obras sejam encontradas no Exterior. Mas outros campos também atraem colecionadores, como, por exemplo, o livro ilustrado em geral, a tipografia através dos séculos, os livros ilustrados por pintores famosos (em que a importância das ilustrações geralmente excede a do texto), as literaturas francesa e portuguesa, na qual existem fanáticos por Camões, Eça ou Camilo, os manuscritos e os autógrafos, inclusive os exemplares autografados etc. O prazer que essas coleções proporcionam é bem semelhante, independentemente do objeto: a excitação da caça, a emoção do achado, a constatação das particularidades que conferem valor ou raridade ao livro, tudo isto explica o apego do colecionador. Sejamos francos: o papel cultural é importante, mas se colecionar não fosse tão gostoso, o número de colecionadores seria bem menor.

Muitos dos colecionadores que conheço já não são tão jovens, vários já morreram, mas o interesse pelo livro raro parece estar se transmitindo à mocidade, ou pelo menos a alguns moços, o que é extremamente animador. Naturalmente, alguém que inicie hoje uma coleção de livros raros, seja qual for o campo , enfrentará dificuldades consideráveis, tanto por se encontrarem, cada vez menos, bons livros, como porque seus altos preços os vão tornando inacessíveis. Houve época em que a dispersão de bibliotecas era um fenômeno normal, e os bons livros voltavam, periodicamente, à circulação, dando ao colecionador oportunidade de adquiri-los. Hoje em dia isto ocorre com muito menor freqüência. As bibliotecas particulares estão se escasseando e um grande número de bibliotecas públicas, nacionais e estrangeiras, entrou no páreo, fazendo com que os livros por elas adquiridos, de um modo geral, saiam do mercado de forma definitiva. Mesmo assim, os sebos e antiquários existentes no país ainda proporcionam possibilidades de garimpagem e descobertas, durante as quais as surdas rivalidades entre competidores pelos mesmos livros, provocam, às vezes, terríveis ciumeiras, somente disfarçadas por um esforço de boa educação.

Livros sobre o Brasil, como disse, encontram-se com mais facilidade no Exterior. Inglaterra, Holanda, França e Portugal, são ainda as melhores fontes de abastecimento mas, de qualquer modo, aqui ou no estrangeiro, a aquisição de boas obras exige um esforço constante, grande perseverança e atenção permanente, além de faro. Leitura de catálogos, correspondência, visitas freqüentes a livrarias, são formas insubstituíveis de conhecimento. O colecionador tem que procurar o livro – dificilmente o livro vem ao colecionador, embora isto aconteça com mais freqüência do que se possa imaginar.

No campo de autógrafos são ainda menos numerosos os colecionadores, o que influi, evidentemente, no valor do mercado (outro capítulo que comportaria dissertação especial) mas eles podem ser extremamente interessantes. Numa certa época adquiri vários contratos de edição entre a editora Garnier e conhecidos escritores brasileiros do século XIX. Aparentemente de interesse restrito, fazem parte, no entanto, da nossa história literária, pois evidenciam as difíceis condições de trabalho dos nossos escritores. Antonio Salles, por exemplo, tio de Pedro Nava e hoje injustamente quase esquecido, recebeu pela cessão de direitos de uma edição de 1100 exemplares de suas Poesias, e pela correção das provas, 15 exemplares em brochura!

Embora as coleções possam ser muito variadas, uns se dedicando a um autor específico, outros a um período de nossa História política ou literária, outros ainda a revistas ou a livros ilustrados, existe um traço comum a todos, que é o amor ao livro e o desejo de sua preservação. Neste sentido todos exercem, ainda que não seja sempre esta a sua intenção, um papel importante, cuja continuidade me parece de extremo valor cultural. Podem não ser muito numerosos os colecionadores, mas também não são tão poucos, e a variedade de seus interesses os torna bastante abrangentes.

Seria importante, creio eu, maior comunicação entre os colecionadores, o que provocaria, certamente, descobertas surpreendentes de pessoas que ninguém supunha estarem se dedicando ao livro, e que, no entanto, reuniram, através dos anos, acervos importantes. Não temos aqui associações de bibliófilos, como as que existem na Europa e nos Estados Unidos onde, periodicamente, se reúnem colecionadores das mais variadas espécies.

Creio que um artigo como este poderia ter o dom de aproximar, entre si, colecionadores que não se conhecem. A divulgação regular de informações sobre livros raros poderia servir para orientar colecionadores novos, ajudando a formar uma nova geração e tornando conhecidos repositórios importantes dos mais variados campos culturais. A função educativa da discussão do assunto é importante para criar um maior conhecimento e dissipar noções erradas como, por exemplo, uma muito comum, de que basta o livro ser antigo para ser raro, o que é absolutamente falso. Na realidade, influi muito mais a importância do texto ou da ilustração, a tiragem original, a freqüência da obra nas livrarias ou catálogos, alterações em sua edição e, sobretudo o interesse que possa despertar nos possíveis compradores.

Há livros do século XIX, como a primeira edição da Moreninha, do Guarany, ou de O Mulato, que são muito mais difíceis de encontrar do que centenas de obras do século XVI. Outro aspecto importante para a coleção é o estado do exemplar. Não basta possuir uma obra, ainda que rara. É preciso que o exemplar seja completo, sem defeitos, para ser realmente satisfatório. É toda uma ciência que somente o convívio com o livro permite adquirir. Por isto mesmo, a divulgação dos verdadeiros valores, a revelação dos garimpeiros que vivem desenvolvendo esforços constantes no mundo dos livros, a informação bibliográfica em vários campos da bibliofilia, podem parecer futilidade ou elitismo, mas representam, na realidade, uma inestimável contribuição cultural.