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Vírus do caos contra a ordem de Direito

9 de maio de 2020

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Como a covid-19 está abalando a estrutura da vida contemporânea e gerando incertezas para o futuro

Um mundo com regras claras, parâmetros bem definidos e questões devidamente delimitadas; tudo perfeitamente ordenado, coerente e com redundâncias suficientes para garantir que as “coisas” não saiam do controle. Este é o universo pelo qual o homem tanto se debate. No entanto, ainda não havíamos virado o calendário para 2020 quando esse hipotético sistema iniciava um mergulho rumo ao maior caos que o homem contemporâneo já viu. A natureza nos apresentava em dezembro de 2019, no outro lado da terra, um novo vírus, o sars-cov-2, causador da pandemia de covid-19. Agente com força suficiente para alterar tanto o modus vivendi das pessoas quanto as legislações do planeta.

Se não bastasse o medo que temos do desconhecido, do descontrole e da falta de anteparos, sendo cada um destes itens já suficiente para alterar profundamente o comportamento humano, a covid-19 possui a capacidade de lançar todas essas variáveis de uma só vez sobre os povos da terra. Afinal, pouco ainda se sabe sobre ele e, do pouco que sabemos, temos a certeza de que não temos, no momento, as defesas necessárias para o enfrentamento.  Além disso, ainda são incipientes as informações sobre sua atividade e limites de atuação. Deste modo, os recursos e o tempo para erradicação desta pandemia permanecem indefinidos. Em suma, uma perfeita desorientação.

Se na área da medicina o vírus traz muitas incógnitas, no campo comportamental provoca muitas certezas, uma delas é de que tanto o relacionamento das pessoas quanto o das instituições convergem para profundas mudanças. Mais do que isso, exigem, desde já, alterações nos acordos que disciplinam as relações humanas e institucionais.

Entretanto, muito ainda falta para descobrir sobre o que mudou ou precisa ser alterado. Já verificamos alterações nas relações trabalhistas, educacionais, comerciais, financeiras, politicas e comportamentais. Consequentemente, atividades econômicas acabaram no centro deste tumulto e o turismo foi um dos primeiros setores a sofrer os impactos da pandemia e a exigir um temporário, ou novo, ordenamento de suas regras.

O fato é que a atividade turística exige um bom planejamento e regramento, tanto de quem promove quanto de quem usufrui. Um passeio inicia muito antes do verdadeiro acontecimento. É preciso, na maioria das vezes, programar o período das férias ou folga, reservar passagens, reservar hospedagens, alugar carros, verificar a programação cultural e de entretenimento do destino, revisar o próprio automóvel se for o caso, providenciar documentos… Muitas dessas ações exigem depósitos, pagamentos antecipados e estabelecem regras para cancelamento e alterações de datas. Cada detalhe precisa ser cuidadosamente planejado e contratado. No entanto, o que acontece quando nenhuma das duas partes (promove/usufrui) pode cumprir com o combinado, como na excepcional situação em que o mundo passa? A pandemia, o coronavírus, desarticulou completamente este sistema.

Considerando que a situação de impedimento não é gerada por nenhuma das partes e sim por um fator externo, e que são muitos os envolvidos entre as partes, a questão fica ainda mais complicada. Os cenários de impedimentos são diversos, há até a possibilidade das partes estarem disponíveis, porém, impedidas por uma questão de transporte. Um simples bloqueio governamental nos aeroportos ou estradas já é suficiente. Isto ainda pode ocorrer por agentes internos e externos. Vale lembrar o número de turistas do Brasil e de outros países que ficaram com problemas para retornar de seus passeios. Ficaram retidos em outros países e até em navios cruzeiros.

É uma situação de perda na qual nenhuma das partes, seja hotel, empresa de transporte, agência de viagem, casa de show, locadora de automóveis, guia turístico, etc. e o próprio turista possuem culpa. Como resolver isso sem que ninguém perca mais do que já foi perdido? O fato é que as regras que temos, ou tínhamos, não contemplam uma situação como essa e na escala em que ocorre. Se focarmos exclusivamente nos direitos dos turistas as empresas quebram, se fizermos o contrário, também não funciona. Em suma, não importa a escolha, ambos saem perdendo sempre.

Buscando amenizar as perdas, os diversos segmentos do setor turístico estão tentando, de imediato, remarcar os compromissos. Isto significa transferir algo que seria realizado “hoje” para algum momento de um futuro ainda indefinido, afinal, não se sabe o tempo para a solução do problema, o prazo da pandemia. Infelizmente, não existe solução simples. Turismo não é um produto, é um serviço e este não se estoca. O que não é realizado hoje já é perda. A garantia de prestação de um serviço no futuro não repõe o prejuízo do passado. Pelo lado do consumidor isto também é uma realidade. As variáveis neste caso são tão grandes que não vamos nem detalhar.

Assim, diante de uma situação completamente atípica, onde o nosso ordenamento jurídico já não cobre todos os contextos, é correto afirmar que necessitamos, com urgência, de novas regras que norteiem as soluções para essa condição temporária, ou seja, para este período de pandemia.

É nessa conjuntura que a recente Medida Provisória nº 948 (MP 948), de 08/4/2020, foi editada. Logo em sua inicial ela deixa claro que vem unicamente para tratar do cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública decorrente do coronavírus. A respectiva MP em seu art. 2º estabelece que na hipótese de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluído shows e espetáculos, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor. Para tanto ela define que o prestador de serviços ou a sociedade empresária deve garantir a possibilidade de: remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados; disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos, disponíveis nas respectivas empresas; ou outro acordo a ser formalizado com o consumidor. Além disso, estipula que o reembolso deva ser solicitado no prazo de 90, contado da data de entrada em vigor desta Medida Provisória.

Somente na hipótese de não ocorrerem as ofertas mencionadas, fica obrigado o “prestador do serviço” a restituir o valor recebido ao consumidor, atualizado monetariamente pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E), no prazo de 12 meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6/2020.

Nos artigos 3º e 4º, a MP 948 define para quem as regras são válidas, sendo:  no turismo – prestadores de serviços turísticos e sociedades empresárias a que se refere o art. 21 da Lei nº 11.771/2008; na cultura – cinemas, teatros e plataformas digitais de vendas de ingressos pela Internet e artistas já contratados até a data de edição da MP. Estão incluídos nesta categoria: shows, rodeios, espetáculos musicais e de artes cênicas e os profissionais contratados para a realização dos eventos. A MP assegura, ainda, que os profissionais citados não terão obrigação de reembolsar imediatamente os valores dos serviços ou cachês, desde que o evento seja remarcado, no prazo de 12, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública.

Sem duvida, a MP 948 é uma iniciativa emergencial, tendo como objetivo solucionar questões nas relações de consumo, no tocante à quebra de contrato de serviços, em um contexto que a sociedade nunca vivenciou. Seu ponto central gira em torno das obrigações do contratado junto ao consumidor, relacionados ao reembolso por serviços cancelados, por uma ou ambas as partes, na data estipulada. Na MP o tempo se tornou o fio condutor da solução.  Como já foi visto, há prazo para solicitação do benefício e validade temporal para os efeitos da Medida. Vencido o período estipulado retornar-se ao ordenamento original.

Entretanto, como já foi demonstrado inicialmente, tempo é algo crucial para o turismo. Não é sem motivo que o planejamento de uma viagem, muita das vezes, se inicia com meses e até anos de antecedência. É preciso preparar o momento ideal para férias ou folga, alinhar o mesmo período com o de familiares ou amigos, corresponder com atividades diversas no local de destino, entre muitas outras coisas, e sem falar na provisão de recursos. Quando qualquer um desses elos se quebra, todo o planejamento é perdido e o passeio pode ser inviabilizado. Assim, quando propomos remarcar um compromisso, temos que ter consciência de que isto é apenas uma tentativa de harmonização. Tanto pode ser bom como ruim para quem recebe. Assim, resta a esperança de que aquilo que não estiver bom possa ser corrigido através do inciso III do art. 2º da MP, ou seja, um outro acordo a ser formalizado com o consumidor.