A controversa interpretação do artigo 523, §3º, do código de processo civil

31 de março de 2009

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Passados pouco mais de dois anos de vigência da Lei nº 11.187/05, que alterou sobremaneira o regime dos agravos de instrumento e retido na sistemática processual brasileira, algumas questões ainda perma­necem controvertidas, tal como a exata interpretação dos dizeres do artigo 523, § 3º, do Código de Processo Civil.
Coteje-se as redações, antiga e nova:
Redação anterior (dada pela Lei nº 9.139, de 1995):

“Art. 523 (…) § 3º. Das decisões interlocutórias proferidas em audiência admitir-se-á interposição oral do agravo retido, a constar do respectivo termo, expostas sucintamente as razões que justifiquem o pedido de nova decisão”.

Redação atual:

“Art. 523 (…) § 3º. Das decisões interlocutórias proferidas na audiência de instrução e julgamento caberá agravo na forma retida, devendo ser interposto oral e imediatamente, bem como constar do respectivo termo (art. 457), nele expostas sucintamente as razões do agravante”.

A par de outras discussões trazidas pela alteração da redação do citado dispositivo legal — como a troca do verbo “admitir” por “caber”; a exigência de que o agravo retido seja interposto de forma imediata, e oral (superando-se a controvérsia sobre ser possível ou não o uso do prazo de dez dias após a audiência para a interposição de tal recurso); a exigência ou não de que as contraminutas sejam apresentadas também de forma imediata e oral, etc. —, que não serão objeto do presente trabalho, adveio com as novas disposições, potencial para outra polêmica, qual seja, em relação a quais audiências incidiria a nova determinação.
Sim, porque enquanto a redação anterior limitava-se a dizer que das decisões interlocutórias proferidas “em audiência” admitir-se-ia o agravo na forma oral, a nova redação é expressa ao delimitar o cabimento do agravo retido oral e imediato às decisões proferidas em “audiência de instrução e julgamento”.
Destarte, a partir de uma interpretação gramatical do novel dispositivo concluir-se-ia que o propósito do legislador foi efetivamente o de restringir a necessidade de interposição de agravo retido na forma oral e imediata tão somente à audiência de instrução e julgamento, pelo que seria, por consectário, permitida a interposição de agravo retido por escrito contra decisões proferidas em outros tipos de audiência  — como a de conciliação (artigos 125, IV e 277 do Código de Processo Civil) e a preliminar (artigo 331 do Código de Processo Civil)1.
Nesse sentido é a posição de minha douta colega, Desembargadora Vanessa Verdolim Hudson Andrade:

(…) O art. 523 se refere apenas às audiências de instrução e julgamento em seu § 3º, ao determinar como regra impositiva o cabimento do agravo retido na forma oral e imediata. Nas demais audiências, de conciliação (art. 125, IV) e preliminar (art. 331), não se aplica essa regra, pois a norma na dicção anterior, que se referia apenas a ‘audiência’ foi modificada para ‘audiência de instrução e julgamento’ sendo de entender que se quisesse o legislador referir-se a qualquer tipo de audiência não teria acrescentado a limitação. Nas outras, portanto, conclui-se que não existe tal rigor, até em razão da desnecessidade, já que a sua natureza permite maior dilação processual, sem prejuízo ao processamento.2

Tal posicionamento é francamente majoritário na doutrina3, e decorre inclusive da leitura do voto do relator do Projeto de Lei nº 4.727 de 2004 (que veio a ser convertido na Lei nº 11.187/2005), deputado José Eduardo Cardozo.
Nada obstante, é regra já sedimentada de hermenêutica jurídica a de que a exegese de uma norma não pode e não deve ser levada a cabo a partir da vontade original do legislador, ou pelo menos tão somente a partir dessa vontade.
Com efeito, e nas palavras de Carlos Maximiliano (“Hermenêutica e aplicação do direito”, p. 30 e 31), com “a promulgação, a lei adquire vida própria, autonomia relativa; separa-se do legislador; contrapõe-se a ele como um produto novo; dilata e até substitui o conteúdo respectivo sem tocar nas palavras; mostra-se, na prática, mais previdente que
o seu autor”4.
Tal fenômeno é perfeitamente compreensível, vez que, a par de uma interpretação vinculada meramente à vontade do legislador impedir, no mais das vezes, a maleabilidade da lei, não considera ainda a complexidade do processo legislativo, no qual não raro — e, no Brasil, até frequentemente — bem poucos dos que tomam parte na votação da norma positiva se informam, com antecedência, dos termos do projeto em debate; e a votação acaba sendo dirigida por um pequeno grupo de líderes ou mesmo realizada afoitamente, por pressão do Poder Executivo.
Dentro de tal ordem de ideias, cumpriria então averiguar se, a partir de uma interpretação sistemática5, ou até teleológica6, do dispositivo legal em comento, deveria o agravo retido oral e imediato ser cabível somente na audiência de instrução e julgamento.
Dúvidas não pairam em sede doutrinária, acerca do escopo primeiro das últimas reformas no Código de Processo Civil: a busca da celeridade, inclusive como forma de implementar a garantia de razoável duração do processo advinda após a edição da Emenda Constitucional nº 45.
Segue-se que, justamente em virtude de tal objetivo que permeia toda a reforma processual e encontra guarida na própria Constituição Federal, vedou-se a interposição por escrito, no prazo de dez dias, do agravo retido contra decisões proferidas em audiência de instrução e julgamento. Com isso, acelera-se a tramitação do processo, evitando-se a prática de atos processuais desnecessários, como a vista dos autos ao agravante para elaborar as minutas de seu recurso, e a intimação do agravado por publicação na imprensa oficial, seguida de vista dos autos para elaboração da resposta ao recurso.
Ora, se se tem por bem-vinda a novidade atinente ao cabimento do agravo na audiência de instrução e julgamento, que agora prestigia o princípio da oralidade, não há razão lógica7 ou jurídica para que não se estenda também tal regra de cabimento às demais audiências, como a de conciliação no procedimento sumário, e a preliminar no procedimento
ordinário8, já que também aqui haverá atraso desnecessário no andamento processual acaso mantida a possibilidade de interposição escrita do agravo retido. Na verdade, tal interpretação está em perfeita sintonia com a finalidade da Lei nº 11.187 (interpretação teleológica) e com a garantia constitucional de duração razoável do processo (interpretação sistemática).
Tal interpretação, ainda que minoritária, encontra adeptos na doutrina, com substanciosos argumentos:

(…) Parece-me que a diretriz adotada pelo legislador deve ser utilizada para as interlocutórias proferidas nestas outras audiências (de justificação e preliminar) também em nome dos valores que quis destacar pouco mais acima, com os olhos voltados para o art. 5º, LXXVIII, da Constituição Federal. Valendo-me do critério do art. 523, § 3º, como referência indicativa da forma de interposição do agravo (retido), não vejo, nesta interpretação mais ampla da regra, nenhum inconveniente. A mesma ratio de oralidade, concentração de atos processuais, economicidade e racionalidade que justifica o prevalecimento da palavra oral e não escrita na audiência de instrução e julgamento está também presente em uma audiência de justificação ou mesmo em uma audiência preliminar. (BUENO, Cassio Scarpinella, “A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil”, volume 1: comentários sistemáticos às Leis nº 11.187, de 19/10/2005, e 11.232, de 22/12/2005, 2. ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo: Saraiva, 2006, p. 251)9

Ressai do sobredito, pois, que proferida decisão interlocutória em audiência — qualquer audiência — o meio recursal de impugnação será o agravo retido, oral e imediato.

Conclusão
Conquanto a nova redação do artigo 523, § 3º, do Código de Processo Civil apresente diversas discussões relevantes em sede doutrinária e jurisprudencial, uma das mais importantes refere-se à extensão da exigência de ser o agravo retido interposto de forma oral e imediata — se somente quando a decisão foi proferida na audiência de instrução e julgamento, ou também quando proferida em outros tipos de audiência, como a de conciliação e a preliminar.
A adoção do agravo oral e retido também como recurso apto a impugnar decisões proferidas nas demais audiências prestigia o princípio da oralidade e está em sintonia com o princípio da celeridade — perseguido ostensivamente pelo legislador, consoante se observa da leitura da exposição de motivos da Lei nº 11.187/05 —, cuja premência vem albergada na própria Constituição Federal, que em seu art. 5º, inciso LXXVIII, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004, afirma que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Essa nova sistemática torna um pouco mais próxima, no nosso Direito Processual, a proposta de Chiovenda10, que defendia a aplicação do princípio da oralidade no processo civil vinculado aos princípios da imediação, da identidade física do juiz, da concentração e da irrecorribilidade das decisões interlocutórias.
Deve, portanto, o operador do Direito — em especial o advogado — ficar atento às sucessivas decisões proferidas nas audiências, quaisquer que sejam elas, já que com o novo regime de agravo trazido pela Lei nº 11.187/2005 não há mais sequer como sustentar que as minutas recursais podem ser protocolizadas após a audiência.

NOTAS __________________________
1 Gize-se que o § 4º do artigo 523, revogado pela Lei nº 11.187/2005, já mencionava que seria o agravo retido o remédio recursal para impugnar decisão proveniente de “audiência de instrução e julgamento”.
2 ANDRADE, Vanessa Verdolim Hudson. O agravo retido na reforma processual In Processo civil reformado/ Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias e Luciana Diniz Nepomuceno, coordenadores. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 277.
3 Também entendendo pela restrição da obrigatoriedade do agravo retido oral e imediato à audiência de instrução: WAMBIER, Luiz Rodrigues. Breves comentários à nova sistemática processual civil, II: Leis nº 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006 e 11.280/2006/ Luiz Rodrigues Wambier, Tereza Arruda Alvim Wambier, José Miguel Garcia Medina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 260-261; BONDIOLI, Luis Guilherme Aidar, O novo CPC: a terceira etapa da reforma. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 28; THEODORO JÚNIOR, Humberto (Curso de Direito Processual Civil – Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 648) e Flávio Cheim Jorge, embora com críticas (A terceira etapa da reforma processual civil: comentários às Leis nº 11.187/2005, 11.232/2005, 11.276/2006, 11.277/2006, 11.280/2006/ Flávio Cheim Jorge, Fredie Didier Jr., Marcelo Abelha Rodrigues.  São Paulo: Saraiva, 2006, p. 236-237), entre outros.
4 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito, 9. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 1979, p. 30-31. Em outra passagem, citando Wach — anota o autor que a “lei é a vontade transformada em palavras, uma força constante e vivaz, objetivada e independente do seu prolator; procura-se o sentido imanente no texto, e não o que o elaborador teve em mira” (Maximiliano. Op. cit., 1979, p. 28.
5 Cf. Carlos Maximiliano, “Consiste o Processo Sistemático em comparar o dispositivo sujeito a exegese, com outros do mesmo repositório ou de leis diversas, mas referentes ao mesmo objeto. (…) Não se encontra um princípio isolado, em ciência alguma; acha-se cada um em conexão íntima com outros. O Direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. (…) Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço.” (MAXIMILIANO. Op. cit., 1979, p. 128.)
6 Já a respeito da interpretação teleológica, afirma Carlos Maximiliano (op. cit., 1979, p. 151-152) que considera-se “o Direito como uma ciência primariamente normativa ou finalística; por isso mesmo a sua interpretação há de ser, na essência, teleológica. O hermeneuta sempre terá em vista o fim da lei, o resultado que a mesma precisa atingir em sua atuação prática. A norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegura plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida”.
7 Não há como se acolher, sem maiores críticas, o argumento de que as demais audiências, que não a de instrução e julgamento, conteriam temas mais complexos e por isso exigiriam a interposição do agravo por escrito, no prazo de 10 dias (Cf. Humberto Theodoro, Curso de Direito Processual Civil, 2.006, p. 648), porquanto basta uma simples análise do rol de decisões passíveis de serem prolatadas na audiência de instrução e julgamento, para se verificar que podem ser elas tão ou mais complexas do que aquelas ocorridas nas demais audiências. Além disso, como o princípio da concentração incide de maneira mais própria na audiência de instrução e julgamento, o número de atos nela contido é maior, o que traz maiores probabilidades de decisões complexas quando de sua realização.
8 Alguns autores incluem nesse rol a audiência de justificação nas possessórias (artigo 928 do Código de Processo Civil), mas dificilmente haverá, em casos tais, decisão apta a ser impugnada via agravo retido, já que trata-se de audiência para tutelar provisoriamente a posse, na qual as decisões proferidas, por excelência, desafiam agravo por instrumento. Nada impede (na verdade, essa é a regra), porém, que sendo proferida em tal circunstância decisão interlocutória passível de revisão através de agravo retido — ou seja, que seja compatível com o efeito diferido próprio de tal espécie de recurso —, seja ele interposto oral e imediatamente, na própria audiência.
9 No mesmo sentido: NERY JÚNIOR, Nelson. “Código civil anotado e legislação extravagante: atualizado até 1º de março de 2006”, Nelson Nery Júnior, Rosa Maria de Andrade Nery — 9. ed. rev., atual. e ampl. — São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 764, nota 19; e Athos Gusmão Carneiro, Do recurso de agravo ante a Lei nº 11.187/2005, In: NERY JUNIOR, Nelson; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. (Série Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos; v. 10), p. 41.
10 São suas palavras: “Um processo, portanto, pode diferenciar-se dos outros:
a) Conforme aplica ou deixa de aplicar, ou aplica em diferente medida, os princípios (entre si estritamente conexos): da oralidade, segundo o qual as deduções das partes devem normalmente fazer-se a viva voz na audiência, isto é, no momento e lugar em que o juiz se assenta para ouvir as partes e dirigir a marcha da causa; da imediação, pelo qual o juiz, que pronuncia a sentença, deve ser a própria pessoa física, ou o grupo das próprias pessoas físicas (colégio), que recolheu os elementos de sua convicção, ou, por outra, ouviu as partes, as testemunhas, os peritos, e examinou os lugares e objetos disputados; conseguintemente, da identidade física do juiz durante a marcha da causa; o da concentração, que, a fim de possibilitar a aplicação dos outros três princípios, impõe a reunião de todas as atividades processuais destinadas à instrução e à marcha da causa (provas e discussões das provas) numa só audiência ou em poucas audiências contíguas. Num processo informado por esses princípios, sinteticamente denominado processo oral, predomina com fundamental importância a audiência, de pouca ou nenhuma importância, entretanto, no processo escrito.
(…)
c) Conforme considera como sentença somente o provimento final do juiz que recebe ou rejeita a demanda ou também os despachos interlocutórios; e conforme admite, para assegurar a concentração da causa, o princípio da não-impugnabilidade separada dos despachos interlocutórios, ou segue o princípio oposto”. (CHIOVENDA, Giuseppe, Instituições de direito processual civil. Campinas: Bookseller, 2002. p. 73-74.) No entanto, como bem acentua Carreira Alvim, nenhum desses princípios funciona devidamente no processo moderno (ALVIM, Nova mexida nos agravos retido e de instrumento. In: NERY JUNIOR, Nelson; ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. (Série Aspectos Polêmicos e Atuais dos Recursos; v. 9, op. cit., 2006, p. 276-277.)