O Poder Judiciário e a questão da internação compulsória dos usuários de “crack”

26 de novembro de 2013

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CherubinAna-Carolina1. Introdução

Foi minha filha Ana Carolina, coautora do presente artigo, na elaboração da sua monografia de conclusão do curso de Direito, quem alertou-me para a gravidade do problema relacionado à questão do “crack” e suas consequências, notadamente no que diz respeito ao aspecto da internação compulsória dos usuários dessa droga, questão que envolve o Poder Judiciário, em razão da disciplina estabelecida pela Lei no 10.216/01.

A nosso sentir, o tema tem relevância não apenas pelo drama humano que envolve, já que o consumo do “crack” vitimiza de forma sobremodo grave o usuário e outros grupos que orbitam em torno da droga, mas também porque envolve o Poder Judiciário, embora não tenham sido criados mecanismos que o capacitem a agir adequadamente para fazer frente ao problema e sua larga dimensão.

A judicialização da questão, sem que exista verdadeiramente uma política pública a respeito da mesma, bem como a inexistência de mecanismos de outorga ao Poder Judiciário de instrumentos adequados ao tratamento do tema, conduz a sérias dúvidas e a profunda insegurança jurídica na disciplina e no enfrentamento de tão grave problema.

2. O “crack” é uma droga singular

Causas e consequências do consumo do “crack” compõem um círculo vicioso que o singulariza frente a outras drogas e que agrava os efeitos do seu uso, sendo possível enumerar algumas delas, como se vê:

a) o “crack” é uma droga relativamente barata quando comparada a outras drogas, circunstância que “democratiza” o acesso à mesma, “universalizando” o seu uso. De fato, no mercado das drogas, existe também uma relação econômica que, em maior ou menor escala, concorre para a ampliação do universo de consumidores.

Importante ressaltar que nesse campo, conforme tem sido indicado por pesquisas e por simples observação empírica, noticiada com frequência pela imprensa, estabelece-se uma rede circular, por meio da qual o usuário é também o transportador e distribuidor da droga, usuário e traficante;

b) essa “universalização” do acesso ao “crack” leva à penetração da droga nas camadas da população menos favorecidas economicamente e, portanto, mais frequen­temente alijadas da utilização de serviços presta­cionais como saúde, educação, previdência, dentre outros, razão pela qual os danos pessoais e sociais causados pelo uso da mesma potencializam-se.

O “crack” é uma droga das ruas, demarcando o território da sua comunidade em verdadeiras “cracolândias”. Na cidade do Rio de Janeiro, a mais conhecida e maior “cracolândia” situa-se às margens da Avenida Brasil, uma das mais importantes vias da cidade, na localidade denominada Parque União, constituindo-se em verdadeira comunidade de usuários, com regras (ou falta delas) próprias;

c) causa e ao mesmo tempo consequência do aumento do consumo do “crack” e da difusão de seus efeitos negativos é a circunstancia de que ela causa dependência mais rapidamente que outras drogas, inibindo, por consequência, o poder de resistência e reação do usuário.

Essa característica farmacológica do “crack” tem-se mostrado fundamental ao potencial viciante da droga, e, por fim;

d) o “crack” é uma droga mais “segura” que outras drogas e que a própria cocaína, pois, como o “crack” é fumado, não implica na repartição de seringas e outros equipamentos capazes de acarretar contaminação, por exemplo, pelo vírus da Aids.

Essas são apenas algumas das circunstancias que acarretam o aumento do consumo e os efeitos negativos do uso do “crack”, diferenciando-o de outras drogas potencialmente menos lesivas.

3. A judicialização do tema e a falta de instrumentos adequados conferidos ao Poder Judiciário 

O problema do “crack” tem sido enfrentado pelo Poder Público, notadamente a nível local (municipal), de forma dispersa, sem uma verdadeira política pública a seu respeito.

No Município do Rio de Janeiro, não existe legislação específica sobre o tema, enquanto que, em São Paulo, o Governo do Estado editou o Decreto no 46.860 de 25 de junho de 2002, visando a fazer frente à questão.

A competência para legislar sobre a matéria é concorrente da União, Estados e Distrito Federal, ex vi dos incs. XII e XV, do art. 24 da Constituição da República, ao passo que a competência para atuação material frente ao problema é de todas as entidades federadas (art. 23, inc. II, c/c art. 196, todos da Constituição da República).

A Lei no 10.216/01, que tem servido de base para o enfrentamento da questão, em seu art. 6o, paragrafo único, inciso III, c/c art. 9o, inseriu o Poder Judiciário como protagonista no âmbito da conturbada relação entre o Estado e os usuários do “crack”.

De fato, instituiu esta um controle judicial da internação compulsória, conferindo ao Poder Judiciário a função de decretá-la, quando envolva pessoas portadoras de transtornos mentais, inclusive usuários de “crack”, os quais, com frequência, tornam-se incapazes de gerir a si próprios.

Ocorre, entretanto, que, além de não existir propriamente uma política pública para enquadramento do problema, a qual deveria ser estabelecida em âmbito nacional, com programas, regras, fontes de custeio e controle claros, não existem mecanismos adequados para disciplinar a atuação judicial.

O Judiciário foi convocado ao tema, sem a criação de instrumentos capazes de dar-lhe suporte no enfrentamento do mesmo.

Efetivamente, algumas questões surgem naturalmente da letra dos artigos 6o, parágrafo único, III, e 9o, ambos da Lei no 10.216/01.

Pensando no usuário, criança ou adolescente, é possível responder a questionamentos com base nas disposições do ECA.

Uma criança ou adolescente usuário de droga poderá ser abrigado para sua proteção, sendo possível ainda decretar até sua internação quando houver a imputação de fato análogo a crime, nos termos do artigo 101, V e VII, c/c artigo 112, IV, V e VI, todos da Lei no 8.069/90, porém, e a rigor, nas duas hipóteses não se aplica a Lei no 10.216/01.

O problema surge, porém, quando inaplicável o ECA, vez que falta regulamentação adequada aos dispositivos da Lei no 10.215/01 (art. 6o, parágrafo único, III, c/c art. 9o), na medida em que não é possível delimitar alguns pontos cruciais à compreensão do tema.

Efetivamente, não se consegue identificar desde logo qual é o juiz competente mencionado pela Lei
no 10.216/01 (art. 9o), ao qual caberá o controle da medida de caráter protetivo-restritivo, somando-se a esse problema a circunstância de que, a rigor, não há no sistema processual uma ação específica destinada à internação compulsória do usuário de “crack”. Anote-se que não se trata aqui de interdição do usuário, nos termos do artigo 1.767 e seguintes do CCB, o que pode até ocorrer em algumas circunstâncias, mas de uma demanda específica, vez que nem sempre será cabível a decretação da medida judicial que reconhece a incapacidade.

A medida de internação compulsória, portanto, não pressupõe necessariamente a decretação da interdição, que implicará inclusive em outras providências, como a nomeação de curador ao interdito, indisponibilidade temporária do patrimônio do curatelado e tutela dos filhos menores do mesmo.

O que se propõe aqui é algo diverso, uma inovação, a qual implica em verdadeira medida restritiva da liberdade, consistente na internação compulsória do portador de transtornos mentais que, por força disso, encontre-se incapacitado de preservar a sua segurança e a de terceiros, situação que com frequência atinge os usuários de “crack”, em razão do elevado poder dessa droga em privar o seu consumidor da capacidade de controlar a si mesmo.

O problema que se coloca para o Poder Judiciário, na quadra atual, reside na existência de questões que a Lei no 10.216/01 é absolutamente incapaz de responder. A lei não esclarece qual o tipo de ação ou requerimento que deve ser dirigido ao juiz para determinar a providência protetiva (?) de internação e, consequentemente, torna inviável a determinação de qual é o juiz competente. Igualmente, não esclarece quem ostenta legitimidade para requerer a medida, nem tampouco se é possível ao requerido, usuário da droga, impugnar o pedido de internação compulsória.

Outras tantas dúvidas e questionamentos não são esclarecidos pela lei, como o prazo da internação e os requisitos para liberação do usuário do “crack”, concorrendo para um clima de incerteza e insegurança jurídica.

Por outro lado, o Judiciário, colocado como protagonista dessas relações sociais complexas e conturbadas, não tem se furtado a discipliná-las, porém, para tanto, necessita
de instrumentos e ferramentas que o habilitem a tal fim.

Impõe-se, portanto, que conjuntamente à adoção de uma verdadeira política pública sobre a questão maior, o consumo de “crack” e o elevado poder de incapacitação dessa droga, sejam criadas ferramentas que possibilitem ao Judiciário agir na defesa e proteção daqueles desvalidos da sorte, que acabam presas fáceis de tão destrutiva droga, sob risco de não ser possível aos juízes, nesse caso, dar conta de tão dramática situação.

Referências bibliográficas ___________________________________________________

BARROSO, Luis Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo. 1. ed. Saraiva, 2009.

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