Justiça Militar segue autônoma

16 de junho de 2014

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Maria-ElizabethNova presidente do STM, Maria Elizabeth Rocha destaca a importância da decisão do grupo de trabalho do CNJ que assegura a continuidade deste segmento do Judiciário

Enfim, a Justiça Militar sai fortalecida. É o que conta à Justiça & Cidadania a ministra Maria Elizabeth Rocha, futura presidente do Superior Tribunal Militar, sobre a decisão do grupo de trabalho criado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de defender a continuidade deste ramo do Poder Judiciário. A comissão de especialistas fora reunida para propor a extinção da Justiça castrense, mas os estudos só reforçaram a importância do segmento para a boa prestação jurisdicional no Brasil.

Ao reconhecimento, segue-se agora a necessidade de investir na modernização do Judiciário Militar, tanto na esfera da União como dos Estados. Maria Elizabeth enumera algumas metas que tem para esse segmento. “Esperamos poder julgar as infrações disciplinares, tal qual a Justiça Estadual; deter assento no CNJ, órgão ao qual nos submetemos sem, contudo, termos voz ou representação; e, ainda, apreciarmos as causas cíveis”, afirmou.

Maria Elizabeth toma posse como presidente do STM no dia 16 de junho. O mandato será de um ano. Primeira mulher a dirigir a instituição, ela assume o lugar do general de Exército, Raymundo Nonato Cerqueira Filho, que se aposenta neste mês em razão da idade limite de 70 anos para a aposentadoria compulsória. A ministra é mineira de Belo Horizonte e, antes de ingressar no tribunal superior, fez carreira como procuradora federal. Confira a íntegra da entrevista.

Revista Justiça & Cidadania – Em fevereiro, uma oficina realizada pelo Conselho Nacional de Justiça sobre a Justiça Militar concluiu que este ramo do Judiciário deve permanecer autônomo. Qual é a importância dessa decisão?
Maria Elizabeth Rocha – A disciplina e a hierarquia são pilares fundamentais das Forças Armadas e Auxiliares. Foram instituídas pela Constituição para preservar a estrutura verticalizada e a cadeia de comando, tanto no Exército, na Marinha e na Aeronáutica, quanto nas Polícias Militares e no Corpo de Bombeiros. Some-se a inarredável necessidade de uma resposta célere e efetiva por parte da jurisdição castrense diante dos delitos praticados nesta esfera. Na justiça penal especializada, as ações são julgadas em curtíssimo espaço de tempo, o que é fundamental para a estabilidade nos quartéis. Imprescindível a efetivação do primado da razoável duração do processo, tão prestigiado pela doutrina e pela Lei Maior, mas tão acutilado pela morosidade forense, para a preservação da autoridade. Mais que isso, o Estado Democrático de Direito passa, inexoravelmente, pela manutenção da ordem e pela contenção de levantes ou insurgências de homens armados. Na estrutura castrense, hierarquia e disciplina emergem como meta-valores, hodiernamente concebidos, lato sensu, como segurança da pátria e segurança pública. A função militar se diferencia de todas as demais em razão da nobre missão que encabeça. Daí, a noção de subordinação hierárquica destacar-se por preservar a eficiência e a obediência no seio da tropa. E é nesse cenário que os tribunais militares ganham preponderância e prevalência na garantia dos pilares fundantes do Estado Nacional e do Poder Judiciário.

Quais seriam os prejuízos caso a interpretação fosse no sentido de extinguir a Justiça Militar?
Seriam muitos os prejuízos para a democracia, para a sociedade e para o próprio Poder Judiciário. Isso porque as justiças militares, tanto a da União quanto a dos Estados, esta última com competência para processar e julgar os crimes militares praticados pelos policiais e bombeiros militares, constituem um ramo especializado da judicatura, tal qual as justiças do Trabalho e a Eleitoral, e detêm a expertise necessária para assegurar a incolumidade dos bens jurídicos penalmente tutelados, bem como para avaliar a legalidade do exercício do poder disciplinar. As instituições armadas têm por escopo a proteção do Estado e da incolumidade física dos indivíduos, valores mais elevados do que a própria vida, uma vez que, sob determinadas circunstâncias, impõe-se aos militares o dever de matar ou morrer. A tal valor especialíssimo correspondem regras especialíssimas de conduta, que devem ser rigorosamente observadas sob pena de comprometer a estabilidade do regime político. Nessa linha, a eficácia e a certeza dos julgados criminais se fragilizariam caso estes fossem apreciados pela Justiça Ordinária, podendo provocar uma desuniformização da jurisprudência. Afinal, as decisões emanadas por uma Justiça inegavelmente mais preparada para lidar com as causas que envolvam seus membros prestigiam a jurisdição. Aliás, as técnicas de boa gestão recomendam a especialidade e não a generalidade como caminho a seguir. Indago: qual o sentido de extinguir-se uma justiça célere, eficiente e que sempre prestigiou a razoável duração do processo, muito antes do advento da Emenda no 45/2004, para declinar sua competência ao foro comum já tão sobrecarregado? Porém, a mais grave consequência de tal medida seria a supressão de um rigoroso controle sobre homens armados, em face de uma sociedade desarmada e vulnerável. Relembro os episódios ocorridos com os policiais militares do Rio de Janeiro, Bahia, São Paulo e outros estados da federação, bem como o motim dos controladores de tráfego aéreo, que desestabilizaram a nação. Não tenho dúvidas de que a extinção das justiças Militar, Federal e Estadual configuraria grave ameaça à legitimidade do regime político e à estabilidade social, na medida em que, reafirmo, Polícia Militar e Forças Armadas devem estar submetidas à uma criteriosa aferição. Nesse sentido, saliento o rigor dos julgados nas cortes militares, com elevado índice de condenação, ao contrário do que levianamente costumam afirmar aqueles que as desconhecem, atribuindo-lhes a pecha de justiça corporativa. Uma análise superficial dos acervos jurisprudenciais desmente tal inverdade e lança luzes sobre suas valorosas atuações.

Considerando o desfecho do grupo de trabalho do CNJ, quais são as perspectivas da Justiça Militar?
As respostas consolidadas pelo grupo de trabalho confirmaram a importância da manutenção da Justiça Militar da União e dos Estados como ramo especializado do Poder Judiciário. As discussões empreendidas são significativas e relevantes, uma vez que buscam propor um novo modelo de funcionamento destas instituições. Nesse sentido, os grupos de trabalho de cada oficina teceram considerações que se alinham ao defendido por juristas e pelos magistrados que as integram, no tocante à renovação e à ampliação de competência, mormente, da Justiça Militar da União, que foi esquecida pela Emenda Constitucional n45/2004. A pauta do dia passou a ser, em verdade, a modernização das justiças penais especiais. Temas como a inclusão do processo eletrônico, a alteração das atribuições dos conselhos de justiça e dos juízes-auditores a nível federal, bem como a ampliação da competência federal e estadual para lides cíveis afetas à corporação, exsurgiram ao longo dos trabalhos. Quanto às perspectivas da Justiça Militar da União, esperamos poder julgar as infrações disciplinares, tal qual a Justiça Estadual; deter assento no Conselho Nacional de Justiça, órgão ao qual nos submetemos sem, contudo, termos voz ou representação; e, ainda, apreciarmos as causas cíveis. Adequado seria que o caput do artigo 124 e o parágrafo 4o do artigo 125 da Constituição Federal autorizassem o julgamento das matérias administrativas capituladas no artigo 142, parágrafo 3o, inciso X, tais como inatividade, promoção, prerrogativas, para englobar todas as questões inerentes à situação dos militares, exceção da remuneratória, atribuições que deveriam estender-se aos entes federados.

Como seria essa ampliação da competência da Justiça Militar para julgar infrações disciplinares e matéria civil? A legislação atual precisaria ser alterada?
Sim. A ampliação, como disse anteriormente, é uma reivindicação antiga da Justiça Militar da União, olvidada pelo constituinte derivado na reforma do Poder Judiciário e que a Proposta de Emenda Constitucional 358-A/05 busca reparar. A especificidade da legislação militar, as peculiaridades da carreira e todas as implicações que possam afetar a estrutura das Forças Armadas, das Polícias e dos Corpos de Bombeiros Militares são argumentos preponderantes para o alargamento da competência. Noutras palavras, hão de ser consideradas as regras regentes da caserna, bem como as características sui generis da carreira das armas, para se determinar sob qual jurisdição deveriam submeter-se os conflitos dela provenientes. Certo é que os militares são agentes administrativos diferenciados daqueles outros que não se encontram sob os auspícios dos regulamentos marciais, não podendo suas causas ser apreciadas sem considerar ditas especificidades. Ao contrário das demais carreiras de Estado, nas quais inexistem relações especiais de sujeição a traduzirem-se em obrigações legais constritivas de direitos, deles se exige um rigoroso atuar de fidelidade à pátria. Nesse universo, ampliar a competência reservada à justiça castrense solveria causas que demandam a necessária adequação dos litígios concernentes à vida nos quartéis. Para tanto, fundamental o conhecimento legal específico aliado à experiência militar, só passíveis de serem alcançados por meio da especialização e do escabinato. O elastecimento de atribuições atenderia, outrossim, aos ditames da eficiência e da otimização, tanto da judicatura quanto da própria administração pública. Nesse propósito, a racionalização deveria avançar em direção às ações cíveis, de cunho administrativo, vinculadas aos militares nos dois níveis federativos. Tais mudanças, contudo, somente serão viáveis por meio de reforma constitucional. E, nesse conspecto, a atuação do Conselho Nacional de Justiça será de extrema valia para acelerar e levar a cabo o processo legislativo.

Atualmente há uma composição mista nos órgãos de julgamento da Justiça Militar. Isso deve ser revisto na proposta de mudança estrutural?
Penso que não. A propósito, assinalo que a estrutura do escabinato não está sendo questionada. Nenhuma das propostas de alteração da estrutura dos tribunais castrenses cogita o abandono da composição mista. Indiscutível que os julgamentos dos crimes militares só são exercidos com justiça e acuidade graças à valiosa interveniência dos magistrados militares, pois eles dispõem de aprofundada vivência na caserna. A ideia é que as decisões prolatadas não o sejam, apenas, com base na letra fria da lei, mas utilizando-se o senso de equidade desenvolvido por aqueles que partilharam experiências comuns. Inarredável, portanto, o suporte dos oficiais para auxiliar e indicar as especificidades desse mundo desconhecido da sociedade civil. Nas palavras do ministro Moreira Alves: “Sempre haverá uma Justiça Militar, pois o juiz singular, por mais competente que seja, não pode conhecer das idiossincrasias da carreira das armas, não estando, pois, em condições de ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas”. O escabinato é uma forma antiga e eficiente de tomada de decisões. Ele alia a práxis militar com o saber jurídico dos magistrados togados. Nada mais republicano, porquanto esta composição múltipla reforça os valores democráticos, tal como ocorre no Tribunal do Júri.

Há alguma proposta de mudança relativamente ao julgamento de civis na Justiça Militar?
Sim. Atendendo à disposição magna, caso um civil ofenda bens jurídicos das Forças Armadas, será julgado pela Justiça Militar da União, na esteira do artigo 124 da Constituição Federal. Diferentemente, na esfera estadual, caso um civil atente contra os bens jurídicos atinentes ao Corpo de Bombeiros ou à Polícia Militar, estará ele sujeito à jurisdição comum, por imperativo previsto no artigo 125, paragrafo 4o, da Constituição. Extrai-se, assim, da Carta Política, ser a competência da Justiça Militar da União ratione legis, e não, ratione personae, ratione materiae ou ratione loci, inexistindo distinção normativa entre o agente civil e o militar. Ao tipificar os crimes militares, observou o legislador ordinário ser papel fundamental das Forças Armadas a defesa da pátria, daí porque todos os cidadãos, sem distinção, devem respeitá-las, sendo-lhes vedado cometer atos atentatórios contra tão relevantes instituições. Afastar os civis da Justiça Militar da União, geraria incertezas e instabilidades institucionais, temerárias ao regime democrático arduamente consolidado. Lá são julgados narcotraficantes que metralham comboios militares ou aliciam soldados conscritos para cometerem práticas delitivas; são julgados furtos de armamento de alta letalidade, como fuzis e granadas; integrantes das FARCs que invadem o território nacional e matam militares brasileiros; poder-se-á vir a julgar o tiro de destruição, que nunca ocorreu, mas é uma possibilidade; dentre crimes outros de inolvidável gravidade para o Estado Brasileiro. Rememoro deterem as Forças Armadas poder de polícia nas extensas e despovoadas zonas de fronteiras terrestres e marítimas e a sua destacada atuação na garantia da lei e da ordem. A segurança dos grandes eventos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas, bem como as eleições, demandam a efetiva participação dos contingentes militares e ilustram a imprescindibilidade de os criminosos civis permanecerem sob a égide da jurisdição penal especial. Por essa razão, o Constituinte originário, dotado dos atributos da inicialidade, incondicionalidade e ilimitabilidade, conferiu a condição de juiz natural à Justiça Militar da União para processar e julgar civis.

Como a senhora vê os questionamentos, inclusive judiciais, acerca do julgamento de civis pela Justiça Militar?
Com certa incompreensão, na medida em que o colégio formal da soberania, atento à relevância dos delitos castrenses em uma sociedade democrática estável, entendeu por bem não restringir a competência da Justiça Militar da União para julgar civis. Efetivamente, a Constituição, podendo disciplinar de maneira exauriente a quaestio e aproximar a corte federal à estadual especializada, afastou-a, neste ponto, da segunda, para preservar o iuris dicere, numa clara definição das balizas reitoras. Reconheço, contudo, existirem demandas no tocante ao Conselho Permanente de Justiça julgar civis, objeto da ADPF no 289. A resposta correta, porém, não está no afastamento da competência, mas na interpretação sabiamente prolatada pelo ministro Gilmar Mendes (STF), no HC no 112.848. Entendeu o eminente magistrado e renomado constitucionalista, que aos artigos 16 a 26 da Lei 8.457/1992, que organizam a Justiça Militar da União e regulam o funcionamento de seus serviços auxiliares, fosse oferecida exegese consentânea à Lex Magna, a fim de que este agente seja julgado exclusivamente pelo juiz-auditor, ingresso na magistratura por concurso público de provas e títulos e cidadão civil. Concluo afirmando serem as justiças Militares da União e dos Estados uma das jurisdições mais céleres e efetivas da judicatura pátria, garantidoras dos princípios máximos assegurados pela Lei Maior e por todos os instrumentos jurídicos internacionais que, inclusive, prevalecem sobre suas normas processuais penais. Sob os auspícios do sistema acusatório, seus julgamentos são respaldados pela observância, imperiosa e inarredável, do plexo de direitos e garantias fundamentalizados pelo artigo 5o da Constituição Federal, bem assim pelas diretivas estabelecidas pela Organização das Nações Unidas para as justiças militares no mundo.

A Justiça Militar é a mais antiga do Brasil. Qual o seu legado ao Poder Judiciário?
Por dever de ofício e de consciência, esclareço que Justiça Militar da União nunca foi uma justiça de exceção. Instituída em 1808 pelo Príncipe Regente D. João, ainda no Império, e não por um ato institucional após 1964, é a Justiça mais antiga do Brasil e foi integrada ao Poder Judiciário pela Carta liberal e democrática de 1934, e não pela Constituição autocrática de 1967/69. Sua jurisprudência, ao longo da história, sempre deu exemplos de independência e coragem, em decisões memoráveis como a prolatada em 1936, quando o então Supremo Tribunal Militar reformou a sentença condenatória proferida pelo Tribunal de Salvação Nacional instituído pelo Estado Novo Varguista e concedeu ordem de habeas corpus à João Mangabeira; ou, ainda, quando deferiu a primeira liminar em sede deste mesmo writ, decisão que serviu de precedente para o próprio Supremo Tribunal Federal. Cito, ainda, o julgamento dos presos políticos proíbidos de manter contato com seus advogados pela Lei de Segurança Nacional, que teve na histórica decisão da Representação no 985 solução lapidar, ao observar os princípios do direito de defesa. Nessa linha, entendeu o STM, na década de 1970, que a greve, mesmo quando declarada ilegal pelo Poder Executivo, se perseguisse melhoria salarial, não constituía, segundo o Recurso Criminal no 5.385-6, delito contra a segurança nacional. No Recurso Criminal no 38.628, assentou a Corte que a mera ofensa às autoridades constituídas, embora feita em linguagem censurável, não configurava crime contra a segurança do Estado, resguardando a liberdade de imprensa e de expressão. Todas essas decisões, dentre outras que poderiam ser nomeadas, descortinam um legado judicial dignificante, testemunhado por advogados ilustres, defensores da liberdade, como Sobral Pinto, Heleno Cláudio Fragoso, Paulo Brossard, Fernando Fragoso e Técio Lins e Silva. Lembro que os defensores públicos, quando atuaram pela primeira vez no Judiciário pátrio, o fizeram no Superior Tribunal Militar. Não fosse tudo isso suficiente, reproduzo o Manifesto em Defesa dos Direitos Humanos, subscrito a unanimidade pelos ministros do Superior Tribunal Militar, em 19 de outubro de 1977, período mais duro da ditadura, contra as torturas e sevícias praticadas pelo regime autoritário; única Corte de Justiça a fazê-lo: “Nós, juízes desta Casa, deste templo de Justiça, todos nós, indistintamente, somos visceralmente contrários às torturas e sevícias aplicadas aos detidos, como um atentado à própria dignidade humana. […] Pouco importam os antecedentes e as suspeitas que possam recair sobre os acusados da prática de crimes, recolhidos à prisão. Na obtenção de suas confissões, não é lícito a nenhuma autoridade policial, sendo-lhe mesmo defeso, empregar métodos medievais e cruéis, sejam ou não procedentes as acusações que lhe são imputadas.” Este é o legado da Justiça Militar ao Poder Judiciário pátrio e à história do Brasil.