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O Ministério Público e a investigação criminal

5 de julho de 1999

Promotor de Justiça,Coordenador do Centro de Estudos Jurídicos do MP/RJ e Professor de Direito Penal da Universidade Cândido Mendes

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Poucas instituições cresceram tanto quanto o Ministério Público com o advento da Constituição de 1988. A sociedade, sem sombra de dúvidas, ganhou com o Parquet um grande aliado na defesa dos legítimos interesses dos menores, deficientes físicos, consumidores, população indígena, vítimas da violência.

Talvez, por isso, com os Promotores de Justiça contrariando interesses no exercício de suas funções, o Ministério Público seja constantemente atacado e certos setores estejam sempre tentando reduzir, felizmente sem sucesso, sua importância constitucional, com argumentos equivocados, quando não mal intencionados. O maior deles é o de que o Ministério Público é hoje poder incontrolável.

Ora, o Ministério Público é instituição que vive e floresce na democracia, cuja defesa, aliás, lhe compete por força de mandamento constitucional. Este poder, considerado por alguns incontrolável, nada mais é do que a capacidade de postular junto ao Poder Judiciário em defesa da sociedade, ainda que contra o próprio Estado, infelizmente fonte de arbítrio, principalmente contra os menos favorecidos.

É certo que na área criminal o Ministério Público é detentor da exclusividade da propositura da ação penal pública e este monopólio, a primeira vista, pode parecer um poder excessivo. Contudo, o controle está no próprio ordenamento jurídico, mormente na consagração do princípio da obrigatoriedade, que garante ao cidadão a submissão do órgão encarregado, com exclusividade, da persecução criminal em juízo, a ordem jurídica legal e legitimamente constituída. Sempre que este órgão, o Parquet, decide pela não promoção da ação penal, seja no inquérito policial, seja no procedimento investigatório interno, submete esta decisão ao Poder Judiciário, por força do art. 28 do Código de Processo Penal.

O mencionado artigo 28 da Lei de Ritos e a ação penal privada subsidiária da pública são verdadeiras e salutares formas de controle externo da atividade ministerial ante o princípio da obrigatoriedade. É claro que a decisão final cabe ao Procurador-Geral de Justiça, isto porque, como já dito, só o Ministério Público tem a função estatal de promover a ação penal pública e não teria sentido que outro órgão estatal pudesse fazê-lo, o que geraria insegurança jurídica, principalmente naqueles que estão sendo alvo da persecução estatal.

Poder incontrolável teria o Ministério Público se vigesse em nosso sistema jurídico o princípio da oportunidade; este sim daria ao Ministério Público a decisão de propor ou não a ação penal, sem dar satisfação de seus atos. Aliás, outra coisa não faz a autoridade policial quando acautela VPI’s ou sindicâncias, ao invés de instaurar o inquérito policial. Felizmente, no Rio de Janeiro, a própria Polícia Civil remete ao Ministério Público a relação de VPI’s Instauradas e respectiva situação, permitindo, assim, acompanhamento pelo Promotor de Justiça.

Contudo, o mais grave efeito do errôneo entendimento preconizado pelo ilustrado mestre é a verdadeira imobilização do Ministério Público, que, segundo ele, deveria assistir inerte a produção de elementos de prova que servirão única e exclusivamente à propositura de ação penal. Tal entendimento é de todo absurdo, ilógico, totalmente contrário a sistemática processual vigente e carente de amparo legal; até porque não poderia a Constituição outorgar ao Ministério Público a privacidade na promoção da ação penal pública e, ao mesmo tempo, negar-lhe os meios para fazê-lo com a eficiência e equilíbrio necessários.

Antes de mais nada é preciso deixar claro que não quer e não pode o Ministério Público prescindir do inquérito policial e muito menos da atividade exercida pela polícia. Contudo, a função investigatória não é privativa da polícia judiciária. O artigo 144, § 4º, da Constituição Federal não confere à polícia o monopólio da investigação. Nele não figura qualquer referência a exclusividade, como acontece, por exemplo, nos arts. 51, 52, 96 e 129, I, todos da Lei Maior. O constituinte quando quis conferir privatividade, fê-lo expressamente e tal não ocorreu no referido art. 144, em seu parágrafo 4º.

O Ministério Público pode e deve investigar sempre que isto se fizer necessário a apuração do evento criminoso, não só para possibilitar a propositura da ação penal, mas também para evitar injustiças e processos precipitados.

Destaque-se, ainda, que a atividade investigatória tem apenas um destinatário: o Promotor de Justiça, e este não pode limitar-se a atuação negativa de apenas requisitar da autoridade policial as diligências necessárias a formação da opinio delicti, consoante canhestro entendimento esposado pelo nobre advogado em questão.

Soa absurdo o Ministério Público poder requisitar diligências à autoridade policial e não poder fazê-lo por conta própria. Não há razão lógica para tal vedação.

Não é difícil imaginar na prática as conseqüências desastrosas das idéias ora combatidas. Como ficariam as investigações que possibilitaram a propositura da ação penal em face de dezenas de delegados de polícia, muitos deles então na cúpula da Polícia Civil, que constavam na contabilidade da contravenção? O Ministério Público teria que requisitar as diligências necessárias a própria Polícia Civil, então gravemente comprometida? Claro que a ação penal cabível nunca teria suporte fático para ser proposta.

E o que dizer do trabalho heróico e solitário do Procurador de Justiça paulista, o hoje Deputado Hélio Bicudo, no combate ao nefando “Esquadrão de Morte”? Deveria o nobre Deputado requisitar as diligências a autoridade policial, então com sérios envolvimentos com grupos de extermínio? Seria esta a solução mais adequada aos interesses da sociedade?

E o inquérito policial que embasou a ação penal que resultou na histórica condenação da cúpula do “jogo do bicho” em nosso Estado? Deveria o Promotor de Justiça deixar as investigações a cargo da autoridade policial? Ora, quando tal aconteceu, o que se viu foi a inércia da Polícia, sempre se dizendo ocupada com outras atividades mais graves.

Imaginemos, ainda, a seguinte situação: Advogado experiente endereça ao Promotor de Justiça notícia de crime devidamente embasada em farta documentação, bastando, apenas, a requisição de um determinado documento para o oferecimento da denúncia. O Promotor dever remeter a notícia de crime à Delegacia para que esta instaure o inquérito policial e requisite o documento faltante? Estaríamos diante de um verdadeiro procedimento kafkiano, que só interessaria àqueles que não querem a ágil apuração do fato.

Como se vê, não é difícil imaginar as conseqüências para o cidadão e para a sociedade do manietamento a que querem submeter o Promotor de Justiça. Contudo, felizmente, não há embasamento legal e jurisprudencial para tanto. Vejamos porque:

Inicialmente, e só ela já seria suficiente, temos a Constituição Federal, que em seu art. 129, inciso VI, estabelece que é função ministerial a expedição de notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da Lei Complementar respectiva.

O emérito constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho em comentário ao preceito ora exposto afirma que a norma em tela “destina-se a agilizar o desempenho por parte do Ministério Público de suas atribuições, particularmente das que dizem respeito ao inquérito civil e mesmo as investigações na esfera policial” (Comentários à Constituição Brasileira de 1988, III, São Paulo, 1994, pag. 49).

Por sua vez, o art. 8º da Lei 8625/93 dispõe que as normas da Lei Orgânica do Ministério Público da União aplicam-se, subsidiariamente, aos Ministérios Públicos estaduais. Assim, temos que o art. 8º, incisos I, V e VII, da Lei Complementar nº 75 (Lei Orgânica do Ministério Público da União), referida no dispositivo constitucional, comina, em síntese, que o Ministério Público da União pode realizar diligências investigatórias e instaurar inquéritos e procedimentos, estendendo·se estas funções aos Ministérios Públicos Estaduais, por força da mencionada aplicação subsidiária.

Como se não bastasse a Constituição Federal, temos ainda o art. 26, I, da Lei nº 8625/93. que dá ao Ministério Público o poder de “instaurar inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes e, para instruí·los …”. Ora, ao referir·se a procedimentos administrativos, estava o referido diploma legal a cogitar de procedimento administrativo pertinente a todas as atribuições ministeriais, dentre as quais está a persecução penal, e não apenas ao inquérito civil.

Finalmente, a possibilidade de investigação ministerial não provoca um desequilíbrio de forças entre acusação e defesa. O equilíbrio entre as partes é requisito essencial do due process of law, razão pela qual durante o processo as partes têm as mesmas prerrogativas. Inconcebível qualquer entendimento contrário. Porém, na fase investigatória a participação do Ministério Público é defendida por todos, embora queiram relegar o Promotor de Justiça à condição de mero assistente inerte.

A realização de diligências pelo Promotor de Justiça ou sua intervenção no inquérito policial, não lhe retira a capacidade de exame imparcial dos fatos, nem privilegia sua atuação na fase processual, totalmente distinta.

Recentemente o Pretório Excelso assim decidiu: “Indeferida liminar requerida em ação direta pela Associação dos Delegados de Polícia do Brasil – ADEPOL, contra resolução baixada pelo procurador-geral de Justiça do Paraná, instituindo, na Comarca de Curitiba, Promotoria de Investigação Criminal, com poderes para requisitar exames, documentos e informações de qualquer órgão, repartição ou entidade pública ou privada, bem como a condução coercitiva, pela polícia civil ou militar, de quem tendo sido notificado para prestar depoimento, deixar de comparecer injustificadamente. O Tribunal considerou destituída de plausibilidade a alegação de contrariedade aos arts. 60, I, II, III, e 129, VI, VII, e 144 da Constituição, ausente, ainda, o periculum in mora ADIN – 1336 – PR, rel. Min. Octavio Galloti, 11/10/95.

Igual entendimento já havia sido abraçado pelo Superior Tribunal de Justiça, que, em decisão unânime enfrenta a questão nos termos enunciados na ementa a seguir transcrita: “A atuação do Promotor na fase investigatória – pré-processual – não o incompatibiliza para o exercício da correspondente ação penal. Não causa nulidade o fato do Promotor, para a formação da opino delicti colher preliminarmente as provas necessárias para ação penal. Recurso improvido. (RHC 0003586, 09.05.94, 6ª Turma, Rel. Min. José Candido de Carvalho Filho)

Outra nao foi a decisao do TJRS:

Ministério Público. Investigação policial. Colheita de provas para servir de base a denúncia ou ação penal. Admissibilidade. Procedimento amparado na lei. Inteligência do art. 144, § 1º, IV, c/c o art. 4º, parágrafo único, do CPP. Declarações de votos. (HC 690000351,4.1.90, in Revista dos Tribunais, 651, pp. 313 e segs.)

Como se vê, não há respaldo legal e jurisprudencial, para a tese defendida com o brilhantismo costumeiro pelo seu patrono. É preciso deixar claro que não estamos aqui a defender o Ministério Público por mero corporativismo. O Parquet não está acima do bem e do mal; é uma instituição pública com as carências materiais típicas desta condição, mas que usufrui de credibilidade junto a sociedade, principal destinatária, e deve usá-la para a promoção da justiça, principalmenle na área criminal, sem abrir mão de suas prerrogativas, garantias e funções, e de preferência atuando em conjunto com a Polícia, como vem acontecendo com frequência no Rio de Janeiro, cujas instituições policiais lutam exemplarmente para banir o arbítrio e a corrupção de seus cotidianos.

Manietar o Promotor de Justiça em sua atuação na área criminal, além de ser tese que não encontra suporte legal, é, na verdade, manietar o cidadão.