O vale-transporte em dinheiro, a contribuição previdenciária e a recentíssima decisão do STF

31 de março de 2010

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1. Introdução
A autarquia previdenciária, mediante instrumentos próprios (NFLDs), promoveu a cobrança de contri­buição previdenciária contra uma instituição bancária, incidente sobre o valor que essa pagou em dinheiro, diretamente a seus empregados, a título de possibilitar-lhes o deslocamento diário e pendular — casa-trabalho-casa —, por entender que tal quantia, paga com habitualidade, integra a remuneração daqueles.
A instituição bancária opôs-se à referida cobrança, mediante demanda declaratória de inexistência de relação jurídica e desconstituição das Notificações Fiscais de Lançamento de Débito lavradas pela autarquia previdenciária.
Depreende-se do teor do Relatório do douto voto que orientou o julgamento do Recurso Extraordinário nº 478.410-SP, cujo teor foi disponibilizado em 11.3.2010 pela página de “Notícias do STF”, que sua defesa lastreou-se no argumento de que a norma que veda o adiantamento em dinheiro em substituição ao vale-transporte instituído pela Lei nº 7.418, de 16.12.1986, contida no texto do artigo 5º do Decreto nº 95.247, de 17.11.1987, estaria em confronto com determinados preceitos da Constituição da República, motivo por que seria inexistente a relação de débito na qual a supracitada autarquia apoiou sua pretensão de cobrança.
Na Instância Ordinária não vingou o sobredito argumento
de defesa, e em consequência a cobrança promovida foi julgada procedente.
A instituição bancária não se conformou com o teor do Acórdão proferido pela Egrégia 2ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e contra ele interpôs o Recurso Extraordinário acima identificado. Por intermédio deste recurso excepcional, buscou obter o controle difuso, incidental ou concreto da constitucionalidade da norma que veda substituir o vale-transporte por adiantamento em dinheiro.
Neste sentido, argumentou que a exigência seria inconstitucional por ser incompatível com o disposto nos artigos 5º, II, 7º, XXVI, 195, I “a”, 201, § 11 da Constituição da República, os quais teriam sido violados pelo julgado do Tribunal Regional, como se vê no Relatório do sobredito douto voto, que capitaneou o julgamento do supracitado Recurso Extraordinário.
Na conformidade do douto voto acima referido, a Excelsa Corte deu provimento ao recurso nobre interposto pela instituição bancária, por entender que a vedação contida no texto do artigo 5º do Decreto nº 95.247/1987, inserida em diploma normativo anterior à Constituição de 1988, é incompatível com o sistema tributário disciplinado por esta.
A pretensão desse comentário visa a refletir sobre o efeito da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, se circunscrito apenas às partes em litígio ou se erga omnes, como também tem em vista analisar brevemente, a obrigação imposta ao empregador pela Lei nº 7.418/1985, com vistas a verificar se o modo como deve ser cumprida sua prestação é ou não incompatível com o sistema tributário plasmado na Constituição.

2. O controle difuso, incidental ou concreto de constitucio­nalide e os efeitos da decisão jurisdicional
Tal modelo de controle de constitucionalidade, há muito vigente entre nós, possibilita que todo Magistrado ou Tribunal do País o exercite na prática normal da jurisdição comum — daí a denominação difuso —, quando da apreciação do caso concreto submetido a exame; por isso a designação incidental. Neste modelo, como se sabe, a questão constitucional não é o objeto da demanda — diversamente do que ocorre no modelo de controle concentrado e abstrato —, mas questão prejudicial, cuja solução subordinará o pronunciamento final sobre o objeto litigioso submetido à resolução jurisdicional.
Sem outras digressões a respeito do tema, para não se extrapolarem os limites preestabelecidos a este singelo comentário, cumpre ressaltar que uma das características do modelo de controle de constitucionalidade de que cuida reside na circunstância de que a decisão proferida a respeito da questão prejudicial só produz efeito entre as partes em litígio, ao contrário do que ocorre com o controle concentrado e em tese ou abstrato da Lei, cuja decisão produz efeitos erga omnes.
É compreensível que assim seja.
Mais de uma razão justifica tal limitada vinculação, ao menos no caso. Em linha de princípio, sabe-se que a decisão judicial proferida na resolução de uma dada demanda somente vincula as partes em conflito, pois no geral das situações apenas essas se submetem aos limites subjetivos da coisa julgada, ao passo que só o objeto do pedido está sujeito aos limites objetivos dessa.
Pois bem, na conformidade da ordem processual vigente, a questão prejudicial, decidida incidentalmente no processo, não faz coisa julgada, conforme norma contida no texto do inciso III do artigo 469 do Código de Processo Civil. A coisa julgada, como antes se destacou, colhe o objeto do pedido e, na hipótese, a manifestação a respeito da questão constitucional integra os motivos do decisum, que, igualmente, não fazem coisa julgada, conforme inciso I do precitado dispositivo legal.
Importante destacar, nesta altura, que, no caso, o tema da contribuição previdenciária incidente sobre o pagamento em dinheiro do transporte dos empregados por seu empregador não é objeto de repercussão geral, o que afasta qualquer possibilidade de se estenderem os efeitos da decisão a outras pessoas e relações jurídicas.
Na minha compreensão, a decisão do Acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 478.410-SP, por tais razões, vincula, na hipótese, exclusivamente, as partes que litigaram no processo.

3. A disciplina da remuneração do emprego no plano do direito positivo
Para se verificar se o valor em dinheiro pago pelo empregador diretamente aos empregados, com o propósito de lhes proporcionar meio de transporte no deslocamento casa-trabalho-casa, integra ou não a remuneração desses, para fins previdenciários, é imprescindível ter em conta como a ordem jurídica disciplina a matéria.
A Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, há anos seguidos estabelece no seu artigo 458 que: “Além do pagamento em dinheiro, compreende-se no salário, para todos os efeitos legais, a alimentação, habitação, vestuário ou outras prestações ‘in natura’ que a empresa, por fôrça do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado. Em caso algum será permitido o pagamento com bebidas alcoólicas ou drogas nocivas.”
Vê-se, desse modo, que o legislador, ao se utilizar da expressão “ou outras prestações ‘in natura’ que a empresa, por fôrça do contrato ou do costume, fornecer habitualmente ao empregado” quis deixar claro, no que concerne à tutela do interesse dos empregados, que outras utilidades fornecidas a estes, pelo empregador, além daquelas arroladas no citado preceito legal, também configuram hipótese de salário indireto e, por isso, integram sua remuneração para todos os efeitos, inclusive previdenciário.
Em virtude disso, há tempos a remuneração dos empregados é integrada por todas as importâncias recebidas por estes, a qualquer título, conforme resulta da combinação do que dispunha o inciso V do artigo 69 da Lei nº 3.807, de 26.8.1960 com o que estatuía o inciso I do artigo 173 do Decreto nº 60.501, de 14.3.1967.
A situação não se alterou com o advento da Lei nº 8.212, de 24.7.1991. Esta, ao dispor sobre a contribuição da empresa para a Previdência Social, estabeleceu que ela incide sobre o total das remunerações pagas, devidas ou creditadas aos segurados empregados, incluindo no referido total os ganhos habituais sob a forma de utilidades, conforme preceitua o inciso I, do artigo 22, do citado diploma legal.
O Decreto nº 3.048, de 3.5.1999, ato normativo regulamentar prescreve no texto de seu artigo 214 que a remuneração dos empregados compreende a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, incluídos “os ganhos habituais sob a forma de utilidades”.
Não há dúvida, assim, que o salário indireto, como tal o derivado de ganho habitual sob a forma de utilidades, sempre integrou, historicamente, a remuneração recebida pelos empregados, nomeadamente para fins previdenciários, objeto do interesse deste comentário.

4. A lei e a atuação para se alterar a realidade
Bem, assentado isso, a partir do início da década de 1980, a grande maioria da população, principalmente nas grandes metrópoles do País, passou a se deslocar a pé, diante da incapacidade de pagar pela utilização do serviço público de transporte coletivo de passageiro por ônibus, já que a constante disparada dos preços dos insumos necessários à execução deste não era acompanhada pelo aumento da massa salarial.
Essa realidade era causa de inquietante potencialização das tensões sociais e, sem dúvida, afetava, prejudicialmente, o bem-estar social, além de ferir de morte um direito social fundamental dos empregados, garantido pelo disposto no inciso IV do artigo 7º da Constituição, pois a remuneração percebida a título de contraprestação pelo serviço prestado não lhes possibilitava satisfazer uma das necessidades vitais básicas de quem vive nas cidades, qual seja o acesso ao transporte.
Este cenário fez com que o legislador atuasse no intento de buscar um meio capaz de alterar tal estado coisa.
Foi instituído, então, o vale-transporte, pela Lei nº 7.418, de 16.12.1985, observadas as alterações introduzidas pela Lei nº 7.619, de 30.9.1987.
A medida visou a limitar, de um lado, a 6% (seis por cento) do salário básico os gastos dos empregados com deslocamento diário casa-trabalho-casa, e de outro, obrigou os empregadores a arcarem com os gastos excedentes do citado limite, gerados por tal locomoção pendular, como se vê no parágrafo único do artigo 4º do supracitado ato legislativo.
O objeto da prestação que caracteriza o cumprimento da obrigação imposta por Lei aos empregadores é a aquisição de vales-transporte comercializados pelas empresas operadoras do sistema de transporte público por ônibus, ou por quem, em nome destas, realiza tal atividade. É o que se extrai do que se contém tanto no caput do artigo 4º como na cabeça do artigo 5º, ambos do ato legislativo acima invocado.
Para que a Lei cumpra o seu desígnio, sua finalidade essencial, é indispensável que os gastos do empregador sejam destinados à “utilização efetiva em despesas com o deslocamento residência-trabalho e vice-versa”, preceitua o artigo 1º da Lei nº 7.418/1985, com a redação da Lei nº 7.619/1987.
O vale-transporte — em papel, como antigamente, ou em cartão eletrônico, como na atualidade — desempenha neste contexto relevante e decisiva função instrumental, pois é a sua utilização que possibilita a certeza de que gastos realizados pelo empregador, em cumprimento da prestação da obrigação que a Lei lhe impôs, não sofrerão desvios de finalidade, e se destinarão, exclusivamente, aos deslocamentos pendulares casa-trabalho-casa.
A norma legal, quando estabelece que o empregador antecipará o vale-transporte ao empregado para utilização efetiva em despesas de deslocamento pendular casa-trabalho-casa e determina que ele adquira tantos vales quantos sejam os necessários para que a referida locomoção se realize (artigos 1º e 4º da Lei nº 7.418/1985), está a afirmar que conduta diversa não é permitida.
Dito de outro modo: se é obrigatório o empregador adquirir vales-transporte, para que o benefício concedido aos empregados possa se concretizar, na conformidade do que foi traçado pela Lei, isto equivale dizer que a conduta oposta é proibida, consoante preleciona G. H. von WRIGHT, in Norma y Acción, Madrid, 1970, tradução de P. GARCÍA FERRERO, apud CARLOS SANTIAGO NINO (in Introducción Al Análisis Del Derecho, Editorial Ariel S.A., Barcelona, 11. ed., 2003, pág. 72).
Diante disso, vê-se que o disposto no artigo 5º do Decreto nº 95.247/1987 não extrapola o campo de ação das normas regulamentares, como alegou a instituição bancária, pois a vedação nele contida — substituir vale-transporte por antecipação em dinheiro — está contemplada na Lei regulamentada.
Acrescente-se, em reforço, que adiantamento em dinheiro, ao pretexto de se alcançar o mesmo propósito delineado para o vale-transporte, não dá o resultado visado, objetivamente, pela Lei. O dinheiro pago diretamente ao empregado, a título de utilização no seu deslocamento casa-trabalho-casa, incorpora-se ao rendimento deste e, naturalmente, ingressará no ciclo de seus gastos cotidianos, realizados para a satisfação de necessidades difusas, cada vez mais crescentes no âmbito da sociedade de consumo.
Logo, o adiantamento em dinheiro, no lugar do vale-transporte, frustra a finalidade da Lei.

5. O direcionamento da decisão do pretório excelso
Com todo o respeito que se deve devotar aos pronuncia­mentos jurisdicionais da mais Alta Corte de Justiça do País, penso que, no caso, o apego ao conceito de moeda não conduziu o desfecho da controvérsia a porto seguro.
A meu sentir, a utilização do vale-transporte pelos empre­gados não desrespeita, minimamente, o curso legal da moeda.
Na minha percepção o vale-transporte — adquirido adiantadamente pelo empregador, com o necessário respeito ao curso legal da moeda — apenas habilita os empregados a usufruírem de um serviço anteriormente contratado — no caso o de transporte — cujas prestações se realizam no futuro, à medida que ocorrem os deslocamentos diários casa-trabalho-casa.
Com outra linguagem, o vale-transporte apenas possibi­lita que o seu portador, ou seja, o empregado, se beneficie do contrato de transporte celebrado em bloco anteriormente por seu empregador e pela operadora do serviço público de transporte de passageiros por ônibus — vejo aqui um caso de estipulação em favor de terceiros — usufruindo de sua prestação a cada vez que se desloca de casa para o trabalho e vice-versa.
Assim, por não vislumbrar, na hipótese, desrespeito ao curso legal da moeda, não vejo boa razão em se admitir que possa haver adiantamento em dinheiro, diretamente pago aos empregados, a título de vale-transporte, digo com todo respeito que é devido.
A conduta judicialmente permitida, sem perceber, desqua­lificou, a meu ver, norma de natureza tributária que retirou o vale-transporte da base de incidência da contribuição previdenciária e do FGTS (artigo 2º, alínea b, da Lei nº 7.418/1985), pois somente aquele que é adquirido nas condições e nos limites estabelecidos pela citada Lei está fora do referido campo de incidência.

6. Conclusão
Com essas ligeiras considerações, ousadas, visto que ainda não se conhece o inteiro teor do Acórdão proferido no Recurso Extraordinário nº 478.410-SP, embora se saiba, de antemão, o seu direcionamento, uma vez que não houve designação de outro eminente Relator para proferi-lo, almejo suscitar o debate a respeito do vale-transporte em dinheiro, ainda oportuno por se estar diante de decisão que tem efeito apenas inter partes. E o faço por acreditar que para se atender aos desígnios da Lei não é possível que o dinheiro assuma o lugar do vale-transporte.