Os processos criminais nos escândalos da Sudene e da Sudam

5 de julho de 2001

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Nos regimes de exceção, vigentes em momentos sofríveis da História do Brasil, propagou-se uma série de processos abusivos contra perseguidos por motivos ideológicos ou políticos.

A utilização de processos judiciais, contudo, com a finalidade exclusiva de se fazer política ainda é matéria atualíssima, oportunamente localizada num contexto de conturbações provocadas pela má gestão da coisa pública que culminou com a recente transformação da SUDENE e SUDAM em agência reguladora, uma forma eufemística de ditar-lhes a própria morte.

Enquanto as diversidades econômicas se encontram cada vez mais latentes entre as regiões, estiagens sem o prévia planejamento governamental nos conduziram a mais grave crise energética de que se tem noticia.

Os fatos agravam-se pela continua violação a Constituição Federal, mormente quando se passa a ignorar os princípios fundamentais acerca da produção legislativa e separação dos Poderes, e o Executivo se auto investe de Legislador procurando governar por medidas provisórias, ofuscando os requisitos de relevância e urgência, que se assemelham bastante – se é que apresentam algum traço distintivo – aos famigerados atos institucionais, tão freqüentes num pretérito não muito distante, cujas sombras nocivas insistem em nos perseguir.

Trata-se de verdadeiro atentado ao Estado Democrático de Direito, uma afronta aos direitos e garantias individuais consagrados na Carta Política.

Inadmissível, todavia, em tempos de “apagão” generalizado, permitir-se a utilização da velha técnica que busca dissuadir a opinião pública, desviando-lhe a atenção de fatos relevantes da crise do Estado. Insufla-se a “caça as bruxas”, aos famosos “bodes expiatórios” de mazelas que, inegavelmente, em nada contribuíram para sua formação, vindo, a contrario sensu, a engrossar as fileiras de suas vítimas.

Com efeito, lanço-se Mão de expediente ardil e corriqueiro, oportuna e convenientemente utilizado pelos que não conseguem ocultar sua ingerência maléfica, a gestão retrograda e, no afã de ludibriar a população, só não conseguem esconder o seu próprio ato-falho, incorrendo nas conhecidas políticas de manipulação das massas que os romanos chamavam de “pão e circo” ou, sem ir muito longe, mais uma vez empreende-se a visita fúnebre ao “Brasil do Milagre”.

Na verdade inúmeros e recentes processos tramitam nas Varas Federais de todo o país, buscando-se punir a todo custo possíveis beneficiários das fraudes praticadas contra a SUDAM e SUDENE. O Ministério Público, no afã de evitar a extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva – as investigações só agora chegaram à Justiça – tipificam as condutas na legislação que lhes se tornou mais cômoda, em virtude da gravidade da pena aplicada.

Faz-se imperioso tecer alguns esclarecimentos acerca da previsão constitucional dos incentivos fiscais nos financiamentos de projetos agropecuários e industriais, notadamente os destinados a aplicações específicas através do Fundo de Investimentos do Nordeste – FINOR.

Numa clara política legislativa de fomento ao desenvolvimento econômico das Regiões Nordeste e Norte do pais, foram criadas, no governo do Presidente Juscelino Kubitschek, duas Superintendências de desenvolvimento SUDENE e SUDAM. Historicamente massacradas pelas disparidades em relação as demais regiões do país – não só por fatores físico-climáticos, mas, sobretudo pelas notórias distinções de tratamento econômico que lhes fora dispensado –, acentuando a distribuição irregular de renda em detrimento do Centro-Sul, sucessivas medidas foram adotadas no ensejo de atenuar os contrastes regionais.

Portanto, reconhecendo que a história brasileira registra um incontestável processo de concentração de riquezas e de desenvolvimento econômico nas Regiões Sul e Sudeste, cuidou o constituinte de 1988 de, conferindo concreção ao sistema legislativo, estabelecer como um dos princípios reitores da ordem econômica e do sistema tributário nacional a imperiosidade da redução das desigualdades regionais.

Dentre os mecanismos que integram o tratamento diferenciado a região Nordeste, destaca-se o FINOR – Fundo de Investimentos do Nordeste, administrado pela SUDENE. cujos recursos provem, basicamente da receita mencionada no art. 159, inciso I, alínea c, da Carta Magna.

Trata-se, pois, de norma constitucional de eficácia limitada a produção de outras espécies legais, atinentes a distribuição da receita tributaria do Estado.

Ao simples com pulsar dos projetos inscritos no FINOR, pode-se, assim, sintetizar o procedimento: arrecadado o imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza, uma parcela equivalente a 3% de tal receita será repartido entre os programas de financiamento de setores produtivos das Regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, a serem administrados pelos respectivos órgãos de desenvolvimento regional.

Definida a parte que caberá ao Nordeste, estes recursos são alocados no FINOR e passam a ser geridos pela SUDENE, a época autarquia Federal, tendo como mero agente intermediário o BNB – Banco do Nordeste SA.

Buscando, então, fortalecer atividades produtivas nos Estados que compõem a área de atuação da SUDENE (especial mente empreendimentos agroindustriais e industriais), o recurso será dividido em dois blocos básicos, conhecidos como art. 5.° e art. 9°, em referencia as previsões legais constantes na Lei n.º 8.1671 91. Confere-se a pessoas jurídicas que tenham imposto de renda a recolher, a possibilidade de converter tal tributo em investimento – projetos aprovados pela SUDENE – dos quais tenham participação societária.

O referido Fundo foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 1376/74, cujas disposições que disciplinam os recursos oriundos do Fundo restringem-se aos arts. 2.° e 3.°.

O sistema de incentivo fiscal mostra-se, portanto, dotado de uma ordem lógica fechada, uma vez que os recursos vindos do imposto de renda recolhidos em todo o país são utilizados para a promoção da diminuição das desigualdades regionais, propiciando que o Nordeste (no caso da SUDENE), o Norte e o Centro-Oeste experimentassem uma industrialização incentivada, garantida pela adequada escolha dos projetos. Os recursos, depois de aplicados, voltam na forma de melhoria das condições econômicas dos Estados favorecidos, bem como, instalado o empreendimento, com a devolução do valor aplicado, remunerado por taxas de juros menores que as praticadas por instituições financeiras.

Com efeito, todos os recursos componentes do FINOR advêm de uma política fulcrada em incentivos fiscais, com recursos provenientes do imposto de renda recolhido. Resta sobejamente comprovado que a viabilidade dos projetos apresentados à SUDENE está diretamente atrelada a entrega do percentual da receita tributaria arrecadado a partir de impostos sobre a renda e proventos de qualquer natureza.

Consoante se denota, claramente, a origem do Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR) está intimamente relacionada aos incentivos fiscais, podendo a pessoa jurídica optar pela aplicação de parcelas do imposto sobre a renda devido. Assim, inicialmente, a pessoa jurídica que eleger a via da dedução do imposto sobre a renda prevista no art. 1.° da Lei n.º 8.167/91, recolherá nas agências arrecadadoras de tributos federais o valor correspondente a cada parcela ou ao total do desconto.

Dando continuidade ao sistema, o Departamento do Tesouro Nacional autoriza a transferência dos recursos ao banco operador, no prazo de quinze dias de seu recolhimento, para crédito ao fundo correspondente, a ordem da respectiva Superintendência de Desenvolvimento Regional, nos termos do art. 3.°, § 1° da Lei n.º 8.167/91.

Destarte, resta incontestável, data vênia, o equívoco do Ministério Público Federal ao denunciar os acusados de desvio de recursos proveniente destes fundos pela conduta descrita no art. 20 da Lei n.º 7.492/86. Ora, segundo o sistema FINOR/SUDENE/BNB e conforme se depreende da interpretação das normas legais aduzidas, a aplicação, ad argumentandum tantum, em desacordo com o estatuído, dos recursos provenientes de incentivos fiscais caracterizaria crime contra a ordem tributaria, e não crime contra o sistema financeiro nacional, como pretende fazer crer o Ministério Público em todo o país.

Frise-se, outrossim, que o legislador buscou-se cercar de todos os meios para garantir a perfeita operacionalidade do sistema, inclusive prescrevendo as sanções penais cabíveis. O sistema do FINOR ensejava riscos ao Erário Público, visto que o Estado reservava percentual de sua receita tributaria a investimentos em projetos de desenvolvimento, através de incentivos fiscais. O Estado não deixaria o possível infrator a margem de qualquer punição penal, ratificando-se, ainda, o caráter preventivo da sansão penal. O advento da Lei n.º 8.167, de 16 de janeiro de 1991, que alterou a legislação do imposto sobre a renda relativa a incentivos fiscais e estabeleceu novas condições operacionais dos Fundos de Investimentos Regionais, foi prudentemente precedido da Lei n.º 8.137 de 27 de dezembro de 1990 que, por sua vez, definiu os delitos de sonegação fiscal, inclusive os tipos penais relacionados a aplicação de incentivos fiscais.

A objetividade jurídica do tipo é a ORDEM TRIBUTÁRIA. Cuida-se de conflito aparente de normas penais a que o órgão ministerial, constatado o decurso do prazo extintivo da punibilidade, furtou-se inescusavelmente a dirimir. Os fatos geralmente narrados, sem qualquer vestígio de duvida, descrevem os elementos constitutivos do tipo do art. 2.°, inciso IV, da Lei n.o 8.137/90. A adequação típica ao art. 20 da Lei n.º 7.492/86 não merece acolhimento, vez que o bem jurídico tutelado nesta espécie não atende à mens legis de salvaguardar a ordem tributaria nacional.

Verificada a equivocada tipificação do Ministério Público Federal, cumpre observar a existência de conflito aparente de normas, cuja solução ocorre pela aplicação do príncipio da especialidade.

O parquet acaba por incorrer em grave equívoco, vez que numa capitulação incorreta, os gravames trazidos aos acusados são imensuráveis. A tipicidade a elemento essencial do crime. De acordo com a conduta típica culminada na denuncia, tem-se uma série de nuances peculiares a cada caso, aspectos sutis decorrentes da adequação típica entre a conduta do agente e o crime previsto.

Nessa ordem de idéias, tem-se a posição pacifica da doutrina no sentido de que a tipicidade é elemento essencial a caracterização do crime, dai decorrendo as particularidades que serão observadas em cada delito, no caso concreto. É pressuposto de validade da antijuridicidade e da culpabilidade, o que demonstra a gravidade que o erro na adequação típica acarreta ao suposto sujeito passivo do delito, elidindo os caracteres essenciais e peculiares a cada tipo penal.

Logo, percebe-se que a conduta a o objeto do Direito Penal, seu estudo e suas variações constituem a pedra angular da Teoria do Delito. Qualquer variação mínima que seja acarretara conseqüências à configuração do tipo, podendo retirar do individuo direitos subjetivos decorrentes da culpabilidade e da antijuridicidade que mantém uma relação de dependência, de validade em relação a correta tipificação da conduta.

O legislador buscou atender à previsão do art. 159 da CF, produzindo os instrumentos legais permissivos da constituição dos Fundos de Investimentos a partir de recursos da receita corrente do Estado, especificamente da receita tributaria. A conduta dos destes acusados, na hipótese de ser considerada criminosa, só encontra a perfeita correlação típica ao crime do art. 2.°, inciso IV, da Lei n.º 8.137/90.

Destarte, o Direito Penal tutela valores específicos, bem jurídico que, no caso vertente, não a outro senão a ordem tributaria. Cuida-se de objetividade jurídica própria, visando a proteção do Erário Público contra a evasão fiscal, crime de sonegação fiscal cuja disciplina legal encontra-se inteiramente contida na Lei n.º 8.137/90.

Dentre os critérios oferecidos pela pragmática, o que se apresenta a solução do presente conflito é o principio da especialidade. Diz-se que uma norma penal incriminadora a especial em relação a outra, geral, quando possui em sua definição legal todos os elementos típicos desta, mais alguns, de natureza objetiva ou subjetiva, denominados especializantes, apresentando um minus ou um plus de severidade. A norma especial é a que acresce elemento próprio a descrição legal do crime previsto na geral. Invoca-se, pois, o Princípio Geral do Direito “lex specialis derogat generali”.

Por outro lado, força observar que, além da aplicação da especialidade dirimente, a mesma solução a alcançada pelo intérprete com a incidência do critério cronológico lex posterior derogat priori. Assim, a lei dos crimes contra a ordem tributaria disciplina a mataria sob ângulo diferente e especifico, sendo mais recente em relação ao diploma legal de que se valeu o órgão ministerial. Daí a impossibilidade se amoldar a conduta do Paciente ao tipo do art. 20 da Lei n.º 7.492/86.

Não há que se cogitar de outra espécie típica distinta do art. 2.°, inc. IV da Lei n.º 8.137/ 90 para descrever a alegada aplicação desconforme dos recursos oriundos de incentivos fiscais. Tal premissa a igualmente falsa se levada a efeito para justificar a ausência de celeridade que provocaram a extinção da punibilidade em grande parte dos casos em apreciação.

Enganam-se, entretanto, os que pensam que a equivocada tipificação não tem um motivo de ser, além de evitar a decretação imediata da prescrição na grande maioria dos crimes em apuração. O que se procura na verdade não é a punição pelos delitos praticados, até porque a negligencia e a morosidade nas investigações falam por si só. O que se quer na verdade é dar “pão e circo” aos que clamam pela moralidade e ética no tratamento da coisa pública.