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Poder Judiciário Guardião e intérprete da Constituição e das Leis

5 de julho de 1999

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(Discurso proferido por ocasião da posse do novo presidente do STF, Ministro Carlos Velloso, em 1999)

“É  com grande honra e dentro das melhores expectativas de uma convivência democrática e sobretudo profícua que a Ordem dos Advogados do Brasil participa deste ato solene de posse do presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Carlos Mário Velloso, bem como de seu vice-presidente, Ministro Marco Aurélio Mello.

Cabe-nos, magistrados  e  advogados, principais protagonistas da cena Judiciária, o dever de estabelecer permanente sintonia e compreensão, tendo em vista o bem comum e o Interesse público, sobretudo neste momento de tantas e tão intensas transformações na vida política, econômica e institucional do país. O processo de aprimoramento democrático que estamos a experimentar desde o fim do regime militar, tem-se mostrado bem mais complexo em seus desafios e desdobramentos que a luta anterior, contra o arbítrio. Naquela ocasião, tínhamos um adversário bem definido e uma meta nítida a conquistar. Queríamos o restabelecimento do estado democrático de direito e o fim do regime de exceção.

Hoje, nosso desafio não é mais a conquista da liberdade, mas algo bem mais sofisticado: dar a essa liberdade conquistada conteúdo social, ético e moral. Para que isso aconteça, é preciso aprimorar as instituições e os Poderes da Republica, torná-Ios eficazes e transparentes, sob efetivo controle da sociedade. E é preciso que a sociedade civil acompanhe e influencie esse processo. Não pode ser mero agente passivo, sob a tutela de Iideranças políticas ou de interesses meramente corporativos.

Através de suas entidades organizadas – e a Ordem dos Advogados do Brasil é sem dúvida uma dentre as mais experientes e representativas – a sociedade brasileira precisa interferir e ser ouvida nos debates, na discussão das reformas, no processo de aprimoramento das instituições, sabê-las efetivamente voltadas para o cumprimento de seus deveres, a altura da missão que lhes é atribuída.

O estado democrático de direito é, sem duvida, uma conquista fundamental em nosso processo de evolução política. Mas não é um fim em si mesmo, senão ponto de partida para a construção de uma civilização digna desse nome, em que os fundamentos básicos e elementares da cidadania – aqueles que já estavam estabelecidos há mais de 200 anos pela Revolução Francesa – sejam incorporados ao cotidiano dos brasileiros.

Quando refletimos sobre nossos deveres institucionais, entre os quais avulta a conquista efetiva da cidadania, constatamos que ainda temos muito a caminhar. Estamos convencidos, porém, que esse movimento já se iniciou e é irreversível. A sociedade civil brasileira, em que pesem todos os problemas e limitações que ainda enfrenta, é hoje bem mais madura e consciente de seus deveres e direitos. Apesar disso, há sinais preocupantes, como os revelados por recente pesquisa elaborada com a juventude do Rio de Janeiro, segundo a qual a maioria questiona a eficácia do regime democrático, optando claramente por soluções autoritárias.

Não tenho duvida, porém, de que a partida já foi dada. Toda a confusão aparente do nosso processo político atual, com suas contradições e perplexidades, insere-se nesse movimento evolutivo, de construção de uma sociedade melhor. Dentro dele, e com o destaque indiscutível que lhe cabe no cenário institucional, está o Poder Judiciário. Dos três Poderes da República, é o que detém as atribuições mais proeminentes no nosso sistema político-institucional, pois além de exercer a mediação sobre os demais, cabe-lhe de igual modo o papel de guardião e intérprete da Constituição e das leis. Bastam essas prerrogativas para situá-lo numa posição incontrastável no cenário institucional do país.

E é essa posição singular que, paradoxalmente, realça suas limitações e fragilidades. Não por acaso, a demanda por reformas estruturais no Judiciário é mais forte e mais antiga exatamente dentro da magistratura e da advocacia. Somos nós, advogados e magistrados, protagonistas principais deste cenário, os mais atingidos pelo anacronismo estrutural do Poder Judiciário brasileiro. E a responsabilidade – moral, social e política – que nos cabe, nesta questão, é intransferível e por demais grandiosa. A ineficiência da Justiça alimenta a impunidade, que, por sua vez, é o combustível do descrédito das instituições. Quando a sociedade descrê de suas instituições – e sobretudo quando descrê da Justiça – rompe-se a linha divisória entre ordem e caos. Como a demanda por justiça supera, neste momento, em muito, a capacidade estrutural do Judiciário, predomina na sociedade brasileira o sentimento de impunidade, não raro convertido em impressão de ineficiência e ineficácia.

Esse quadro de desalento coletivo favorece as soluções alternativas que, por serem fronteiriças, podem resultar em graves riscos para ordem constitucional, além de permitir a parcela menos politizada da sociedade a idéia de que é possível absolver ou condenar fora do âmbito do Poder Judiciário e à revelia dos ritos princípios inerentes ao devido processo legal.

E o perigo aí está.

Os regimes de exceção se servem, com freqüência, de atalhos processuais para fazer justiça com as próprias mãos. Começaram por aplacar o inconformismo popular, para, na seqüência, instalar o regime da injustiça plena, que, sem qualquer exceção a regra, caracteriza os regimes autoritários. Basta ver o que nos aconteceu a partir de 1964. Ou, para mencionar exemplo mais recente e próximo a nós, o que aconteceu no inicio da década no Peru, de Alberto Fujimori. Daí a importância de se politizar cada vez mais a sociedade. Quanto mais consciente ela for, menor a chance de triunfo das ações que ultrapassem os limites da ordem jurídica. Mas de nada valerá os esforços se não tivermos, juízes e jurisdicionados, governantes e governados, um Poder Judiciário adequado ao nosso tempo e que possa em prazo razoável solucionar os conflitos que são apresentados a seu julgamento. Daí a importância e o caráter de urgência de que se reveste a reforma do Poder Judiciário, que tramita neste momento na Câmara dos Deputados.

É para ela que se voltam as atenções da advocacia brasileira, que anseia por uma Justiça moderna, funcional, transparente e acessível a toda a população. Com um Judiciário forte, a altura de seus desafios, o país aumenta sua capacidade de aperfeiçoar suas instituições e de promover a Justiça social, objetivos fundamentais da nação brasileira consagrados no art. 3º de nossa Carta Política.

Registro, com satisfação, que, quanta a essa reforma, magistrados e advogados possuem numerosos pontos de convergência. Recentemente OAB e Associação dos Magistrados do Brasil remeteram à Comissão Especial da Câmara dos Deputados, que examina a reforma do Judiciário, suas respectivas propostas que, em alguns pontos, são consensuais. Dispenso-me de relacioná-los, posto que a imprensa já as divulgou e são do conhecimento geral.

Cumpre-me a essa altura frisar que, apesar de todos os problemas suscitados nesta manifestação, sou otimista quanta ao Brasil. Constato que os agentes do processo político-institucional estão cientes desses desafios e não continuarão a retardar sua solução. Muitas das causas que nos angustiam são históricas, herdadas de muitas e muitas gerações; outras são recentes, resultantes das profundas transformações que atingem todo o planeta, entre as quais a globalização das economias. Devemos ter o necessário e permanente empenho no sentido de, sem timidez, enfrentá-las com a grandeza e a criatividade que caracterizam nosso país, fazendo-o respeitado no concerto das nações não apenas pelas vantagens que a elas possa oferecer, mas pela intransigente preservação dos inalienáveis interesses nacionais.

Em nome dos advogados brasileiros, saúdo o Ministro Carlos Mário Velloso, cujo saber jurídico, experiência profissional e profundo senso ético e democrático ajustam-se às necessidades e desafios da honra presente. Conheço Sua Excelência de longa data e posso testemunhar sobre seu apreço pela liberdade, expresso em memoráveis e corajosos votos contrários à censura e à apreensão de jornais e periódicos, ao tempo do regime militar, quando era ministro do extinto Tribunal Federal de Recursos. Acompanhamos todos as posições que S. Exa. tem assumido nas discussões que envolvem a reforma do Poder Judiciário. E, pessoalmente, com elas me tranqüilizo, na medida em que revelam equilíbrio e sensibilidade em relação as profundas transformações políticas e sociais da vida contemporânea.

Não há mais hoje, às vésperas do século XXI, em plena era da informação, condições de imaginar instituições do Estado impermeáveis à vigilância da sociedade. Instituições sem transparência correm o risco de serem dominadas pelos que não tem a dimensão de seu papel. E isso e trágico.

A independência dos Poderes têm por meta servir ao povo e não ao próprio Poder e essa evidência, nem sempre levada em conta, deve ser avaliada constantemente por todos nós, que militamos na vida pública.

Compartilho do ponto de vista do professor e jurista argentino Eugênio Raul Zaffaroni, que defende uma magistratura liberta da torre de marfim, despojada da síndrome de assepsia que historicamente a distancia da realidade social e constitui a fonte maior de seus problemas.

Saúdo igualmente o ministro Marco Aurélio Mello que assume a vice-presidência desta Suprema Corte. Sua Excelência tem-se revelado, ao longo de sua carreira, um magistrado de forte personalidade, além de estudioso atento da realidade brasileira. Com tais atributos, é natural que pague algumas vezes o ônus da incompreensão. Audácia, porém, não é defeito, mas qualidade de quem cultua a independência sem se alhear da realidade da qual emerge o fato jurídico a apreciar.”