O perigoso artifício da ponderação entre princípios

31 de julho de 2009

Membro do Conselho Editorial, advogado e ministro aposentado do STF

Compartilhe:

Pretendi, no voto que proferi na ADPF 101, firmar posição a respeito do perigo que enfrentamos ao operar a chamada ponderação entre princípios. Não poderia ter deixado de fazê-lo. Acompanhei a conclusão da relatora, a Ministra Cármen Lúcia, entendendo, contudo, ser outra a fundamentação da afirmação de inconstitucionalidade das interpretações judiciais que autorizaram a importação de pneus. Isso de um lado porque recuso a utilização da ponderação entre princípios para a decisão da questão de que se cuidava naqueles autos. De outro porque, tal como me parece, aquela decisão havia de ser definida desde a interpretação da totalidade constitucional, do todo que a Constituição é. Desse último aspecto tenho tratado, reiteradamente, em textos acadêmicos[1]. Não se interpreta o direito em tiras; não se interpretam textos normativos isoladamente, mas sim o direito, no seu todo — marcado, na dicção de Ascarelli, pelas suas premissas implícitas. A reprodução do que então afirmei neste espaço, que a generosidade intelectual de Orpheu Salles me concede, permite ganhe horizonte mais amplo a minha angústia.

A Ministra Relatora afirmou que, “[a]pesar da complexidade dos interesses e dos direitos envolvidos, a ponderação dos princípios constitucionais demonstra que a importação de pneus usados ou remoldados afronta os preceitos constitucionais da saúde e do meio ambiente ecologicamente equilibrado e, especificamente, os princípios que se expressam nos arts. 170, inc. I e VI e seu parágrafo único, 196 e 225, da Constituição do Brasil” (negrito meu).

Tenho, porém, que a ponderação entre princípios é operada discricionariamente, à margem da interpretação/aplicação do direito, e conduz à incerteza jurídica[2].

Interpretar o direito é formular juízos de legalidade, ao passo que a discricionariedade é exercitada mediante a formulação de juízos de oportunidade. Juízo de legalidade é atuação no campo da prudência, que o intérprete autêntico desenvolve contido pelo texto. Ao contrário, o juízo de oportunidade comporta uma opção en­tre indiferentes jurídicos, procedida subjetivamente pelo agen­­te. Uma e outra são praticadas em distintos planos lógicos[3].

Mas não é só. Ocorre também que a ponderação entre princípios se dá no momento da formulação da norma de decisão, não no quadro, anterior a este, de produção da[s] norma[s] jurídica[s] resultantes da interpretação[4]. Este é o aspecto que a doutrina não tem considerado, mas indispensável à compreensão da prática da ponderação. A interpretação do direito é inicialmente produção de normas jurídicas gerais. A ponderação entre princípios apenas se dá posteriormente, quando o intérprete autêntico decidir o caso, então definindo a solução que a ele aplica. A atribuição de peso menor ou maior a um ou a outro princípio é, então, opção entre indiferentes jurídicos, exercício de discricionariedade, escolha subjetiva estranha à formulação, anterior, de juízos de legalidade.

A explicitação desses dois momentos — o das normas jurídicas gerais e o da norma de decisão — não obstante expletiva, deixa bem claro que a ponderação entre princípios é pura expressão de subjetivismo de quem a opera, optando por um ou outro, escapando ao âmbito dos juízos de legalidade.

A ponderação consiste, segundo RICARDO GUASTINI[5], em estabelecer-se uma hierarquia axiológica móvel entre os princípios em conflito. Isso implica em que se atribua a um deles uma importância ético-política maior, um peso maior do que o atribuído ao outro. Essa hierarquia — prossegue GUASTINI — é móvel porque instável, mutável: vale para um caso (ou para uma classe de casos), mas pode inverter-se, como em geral se inverte, em um caso diferente.

O juiz, para estabelecer essa hierarquia, não determina o “valor” dos princípios em abstrato, de uma vez por todas, não determina uma relação fixa e permanente entre eles. Daí que o conflito não é resolvido definitivamente: cada solução vale para uma só controvérsia particular, já que não se pode prever a solução do mesmo conflito no quadro de diversas controvérsias futuras.

Tem-se, destarte, que a ponderação entre princípios implica o exercício, pelo juiz, de uma dupla discricionariedade: [i] em um momento inicial, quando ele cria uma hierarquia axiológica entre os princípios de que se trate; [ii] em um momento seguinte, quando o mesmo juiz altera o valor comparativo desses mesmos princípios à luz de outra controvérsia a resolver.

Note-se bem que a ponderação não consiste em atribuirem-se significados aos textos dos dois princípios de que se cuide [= interpretação desses textos], mas em formular-se um juízo de valor comparativo entre eles, seguido da opção por um ou outro. Há aqui, digo eu, inicialmente um juízo não de legalidade; no instante seguinte, uma opção subjetiva entre indiferentes jurídicos.

Dizer juízo não de legalidade é dizer juízo de valor que exclui a legalidade. Excluindo-a, os juízos de ponderação entre princípios não decorrem da interpretação de textos integrados no âmbito da legalidade, a partir do que se vê inicialmente que a criação de uma hierarquia axiológica entre princípios escapa ao âmbito do jurídico, é subjetiva; após, que a opção por um deles é escolha entre indiferentes jurídicos, procedida uma vez mais subjetivamente, pelo juiz. Discricionária, pois, no sentido acima indicado.

Que se trata aí de discricionariedade, isso é dito nas afirmações de que a co­lisão entre princípios transcorre fora da dimensão da validade, vale dizer, na dimensão do valor — observação de ALEXY — e de que o juiz, ao ponderá-los, toma os princípios não como norma jurídica, porém como valores, preferências intersubjetivamente compartilhadas, na dicção de HABERMAS.

Daí que os juízos de ponderação entre princípios de direito extirpam seu caráter de norma jurídica. Pretendo afirmar, com isso, que princípios de direito não podem, enquanto princípios, ser ponderados entre si. Apenas valores podem ser submetidos a essa operação. Dizendo-o de outro modo, a ponderação entre eles esteriliza o caráter jurídico-normativo que os definia como norma jurídica. Curiosamente, os princípios são normas, mas, quando em conflito uns com os outros, deixam de sê-lo, funcionando então como valores. A doutrina tropeça em si mesma ao admitir que os princípios, embora sejam normas jurídicas, não são normas jurídicas

Juízes, especialmente os chamados juízes constitucionais, lançam mão intensamente da técnica da ponderação entre princípios quando diante do que a doutrina qualifica como conflito entre direitos fundamentais. Como, contudo, inexiste, no sistema jurídico, qualquer regra ou princípio a orientá-los a propósito de qual dos princípios, no conflito entre eles, deve ser privilegiado, essa técnica é praticada à margem do sistema, subjetivamente, de modo discricionário, perigosamente. A opção por um ou outro é determinada subjetivamente, a partir das pré-compreensões de cada juiz, no quadro de determinadas ideologias. Ou adotam conscientemente certa posição jurídico-teórica, ou atuam à mercê dos que detém o poder e do espírito do seu tempo, inconscientes dos efeitos de suas decisões, em uma espécie de “voo cego”, na expressão de RÜTHERS. Em ambos os casos, essas escolhas são perigosas[6].

O que há em tudo de mais grave é, no entanto, a incerteza jurídica aportada ao sistema pela ponderação entre princípios. É bem verdade que a certeza jurídica é sempre relativa, dado que a interpretação do direito é uma prudência, uma única interpretação correta sendo inviável, a norma sendo produzida pelo intérprete. Mas a vinculação do intérprete ao texto — o que excluiria a discricionariedade judicial — instala no sistema um horizonte de relativa certeza jurídica que nitidamente se esvai quando as opções do juiz entre princípios são praticadas à margem do sistema jurídico. Então a previsibilidade e calculabilidade dos comportamentos sociais tornam-se inviáveis e a racionalidade jurídica desaparece.

O direito moderno, posto pelo Estado, é racional, porque cada decisão jurídica é a aplicação de uma proposição abstrata munida de generalidade a uma situação de fato concreta, em coerência com determinadas regras legais. Eis o que define a racionalidade do direito: as decisões deixam de ser arbitrárias e aleatórias, tornam-se previsíveis. Racionalidade jurídica é isso: o direito moderno permite a instalação de um horizonte de previsibilidade e calculabilidade em relação aos comportamentos humanos, sobretudo àqueles que se dão nos mercados.

Pois é precisamente essa racionalidade que perece sempre que juízes operam a ponderação entre princípios. Daí a aguda observação de HABERMAS: enquanto uma corte constitucional adotar a teoria da ordem de valores e nela fundamentar sua práxis decisória, o perigo de juízos irracionais aumenta, porque os argumentos funcionalistas ganham prevalência sobre os normativos.

Impossível não recorrer, a esta altura, a um texto de CARL SCHMITT[7], “La tirania de los valores”, no qual recolho a seguinte indagação: quem estabelece os valores? Ora, os valores não são, existem apenas enquanto dotados de validez. Valem para algo ou para alguém. Em outros termos, existem somente enquanto valem para alguém; ou, por outra, não existem. Anota SCHMITT: “Quem diz valor quer fazer valer e impor. As virtudes se exercem, as normas se aplicam, as ordens se cumprem; mas os valores se estabelecem e se impõem. Quem afirma sua validez tem de fazê-los valer. Quem diz que valem, sem que ninguém os faça valer, quer enganar. Se algo tem valor, e quanto, se algo é valor, e em que grau, apenas se pode determinar isoladamente, desde um ponto de vista pressuposto ou de um critério particular”. E, adiante, SCHMITT cita NICOLARI HARTMANN para observar que os valores sempre valem para alguém, aparecendo, desgraçadamente, o “reverso fatal”: também valem sempre contra alguém. Mais grave é que, além de não se ter logrado superar a teoria subjetiva dos valores, segundo a lógica do valor prevalece a seguinte norma: o preço supremo não é demasiado para o valor supremo e cumpre que seja pago, justificando a submissão do valor maior ou do “semvalor”. Aí se manifesta a “tirania dos valores”, a respeito da qual diz HARTMANN: “Cada valor, se se apoderou de uma pessoa, tende a erigir-se em tirano único de todo o ethos humano, ao custo de outros valores, inclusive dos que não lhe sejam diametralmente opostos”. A apreensão do significado da expressão tirania dos valores dá-nos — a observação é de CARL SCHMITT — “a chave para compreendermos que toda teoria dos valores nada mais faz senão atiçar e intensificar a luta antiga e eterna entre convicções e interesses”.

A submissão de todos nós a essa tirania é tanto mais grave quanto se perceba que os juristas — em especial os juízes —, quando operam a ponderação entre princípios, fazem-no, repito, para impor os seus valores, no exercício de pura discricionariedade.

Dir-se-á que não obstante a ponderação entre princípios aporte irracionalidade ao sistema, é à custa dessa e de outras transgressões — disso estou bem consciente — que o sistema se mantém em equilíbrio. A flexibilização do sistema é indispensável ao seu equilíbrio e harmonia, o que permite o desempenho de sua função de preservação, em dinamismo, do modo de produção social.

Por isso mesmo conviria revisitarmos o que foi dito a respeito da oposição entre princípios, há mais de quarenta anos, por NICOS POULANTZAS[8]: o que aparece como uma “antinomia” essencial, absoluta e irredutível ao nível do direito constitui em geral, ao nível da infraestrutura, uma contradição dialética no interior de uma totalidade significativa que engloba certos interesses e necessidades da práxis; o juiz deve resolver a contradição entre dois princípios jurídicos em relação a um caso concreto referindo-se à infraestrutura, apurando qual deles assume, no caso concreto, importância mais significativa em relação aos dados da infraestrutura. Infelizmente a doutrina esqueceu as lições de POULANTZAS, para quem a ordem jurídica não compõe um sistema, é uma estrutura no interior de outra estrutura mais ampla; um todo significativo, pleno de contradições, que a lógica formal não consegue explicar, mas constitui uma totalidade de sentido, uma coerência interna de significação; a infraestrutura é o fundamento da estruturação interna do direito. O plano do dever ser é um espelho, um reflexo do plano do ser. Tudo a confirmar que, em verdade, não interpretamos apenas textos normativos — e sempre na sua totalidade — mas, além deles, a realidade. A “moldura da norma” (KELSEN) não é da norma, porém dos textos e da realidade. A interpretação da Constituição é, sempre, interpretação do texto da Constituição formal, todo ele, e da Constituição real, hegelianamente considerada[9].

Acompanhei a Relatora, ressalvando, no entanto, meu entendimento no que concerne à fundamentação do seu voto. Para que no futuro não me arrependa por não tê-lo dito no momento adequado.



[1] Por tudo quanto escrevi a respeito disso, meu: “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”, 5. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

[2] Cf. Idem, Ibidem, págs. 283/290.

[3] Vide meu: “O direito posto e o direito pressuposto”, 7. Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, págs. 191 e ss.

[4] Cf. meu: “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”,  cit., págs. 102-103.

[5] Idem, ibidem, págs. 284 e ss.

[6] Vide meu: “Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito”, cit., págs. 285 e ss.

[7] Idem, ibidem, págs. 288 e ss.

[8] Idem, ibidem, págs. 198-199.

[9] Idem, ibidem, especialmente pág. 281.