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Responsabilidade civil indireta

5 de dezembro de 2004

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RESPONSABILIDADE OBJETIVA DOS PAIS POR DANOS CAUSADOS PELOS FILHOS MENORES NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

RISCO DA PATERNIDADE?

Introdução

A lei atribui a todas as pessoas os deveres jurídicos primários, genéricos, de agir com cautela nas relações civis, de modo a não prejudicar e não causar danos a ninguém. Os negócios jurídicos em geral também são fontes de obrigações, e através deles ficam as partes, vinculadas ao dever jurídico primário de adimplir as obrigações assumidas.

A violação de um dever jurídico primário, seja este oriundo de lei ou de negócio jurídico, faz nascer o dever jurídico secundário de reparar o prejuízo causado a outrem. Assim, a Responsabilidade Civil nada mais é do que este dever jurídico secundário imposto pelo legislador de reparar o prejuízo causado em virtude da violação de deveres jurídicos primários, contidos em lei ou em negócio jurídico.

O Código Civil Brasileiro de 1916 adotou o princípio da culpa como fundamento da responsabilidade, estabelecendo, em seu artigo 159, verdadeira Cláusula Geral de Responsabilidade Subjetiva. Nestes termos, a responsabilidade se configura com a prática de um ato ilícito em sentido subjetivo, cuja noção envolve a violação de um dever jurídico preexistente: o dano, o nexo de causalidade (relação de causa e efeito entre a ação ou omissão do agente e o dano) e a culpa em sentido amplo, que abrange o dolo e a culpa em sentido estrito (situação em que o agente não tem sua vontade dirigida para o resultado, mas este ocorre em virtude da conduta do agente, que atua com negligência, imperícia ou imprudência).

Com o passar do tempo, percebeu-se, entretanto, que a técnica da responsabilização subjetiva não atendia às necessidades de uma sociedade em que se revelavam cada vez mais freqüentes as violações de direitos subjetivos, o que levou, conseqüentemente, à busca de meios que facilitassem a obtenção, pela vítima, do devido ressarcimento, eis que esta arcava com o ônus de demonstrar a culpa do agente.

Assim, em um primeiro momento, a jurisprudência passou a admitir, em algumas hipóteses, a culpa presumida do agente. Posteriormente, a própria lei passou a prever hipóteses em que o dever de reparar o dano se imporia em virtude do risco criado pela atividade da qual teria resultado o dano, independentemente, portanto, de conduta culposa. Desenvolvia-se, assim, a noção de Responsabilidade Civil objetiva, com fundamento na Teoria do Risco.

A Constituição de 1988 e a Lei n.º 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) sobrelevam-se, assim, como importantes marcos na evolução do sistema de Responsabilidade Civil no Direito brasileiro, eis que viabilizaram a aplicação da teoria objetivista a largo espectro de situações, que, até então, seriam forçosamente apreciadas à luz do artigo 159 do Código Civil de 1916, de índole subjetiva, como já se ressaltou.

A tendência foi confirmada com a edição do Código Civil de 2002, que, além de prever a responsabilização objetiva em hipóteses pontuais, tratou, também, de estabelecer importantes cláusulas gerais de Responsabilidade Civil objetiva, tais como aquelas veiculadas nos artigos 927, § único, e 931, em que pese a intensa discussão doutrinária que já se instaurou a respeito da real abrangência destes dispositivos, e de eventuais deficiências de redação.

Os atuais contornos da Responsabilidade Civil no Direito pátrio não podem, no entanto, ser bem delineados sem que se promova a necessária conexão axiológica com os princípios constitucionais, uma vez que neles estão consubstanciados os valores fundamentais de nossa sociedade, balizamento hermenêutico necessário e indispensável às atividades do intérprete.

Neste particular, preciosa a lição de Gustavo Tepedino, apontando que os princípios da solidariedade social e da justiça distributiva, capitulados no artigo 3º, incisos I e III, da Constituição Federal, retiram da esfera meramente individual os riscos da atividade econômica, riscos que, com os avanços tecnológicos de nossa era, se apresentam cada vez mais exacerbados. Impõe-se, assim, a intensificação de critérios objetivos de reparação de danos, e a criação de novas formas de seguro social.

Rompe-se, assim, com a idéia tradicional desenvolvida pela ideologia liberal que marcou o século XIX, segundo a qual o Direito Público e o Direito Privado estariam separados por contornos nítidos, por fronteiras bem definidas. Inaceitável tal ponto de vista, já que não se concebe hoje a existência de qualquer instituto ou espaço de atuação privada que permaneça estanque aos princípios difundidos pelo texto constitucional.

Nesta ordem de idéias, afasta-se de imediato, a tese de que no Direito Civil prevaleceria a responsabilidade subjetiva, enquanto que a responsabilidade objetiva teria seu campo de incidência no Direito Público, como, por exemplo, no caso da Responsabilidade Civil das pessoas jurídicas de direito público e de direito privado prestadoras de serviços públicos, em relação aos danos causados por seus agentes.

Temos, atualmente, a consolidação de um sistema dual, em que convivem a Responsabilidade Civil subjetiva, que tem sua Cláusula Geral estampada no artigo 186 do atual Código Civil, ao lado da Responsabilidade Civil objetiva, que encontra seu fundamento nas cláusulas gerais acima indicadas, além de outras hipóteses específicas previstas em lei.

Da Responsabilidade Civil por Fato de Outrem

No sistema subjetivista prevalece a idéia de que só responde pelo dano aquele que efetivamente lhe deu causa, afinal, a culpa é pessoal. No entanto, mesmo sob a égide do Código Civil de 1916, já se admitia a responsabilidade indireta ou por fato de outrem, atribuída a alguém que estivesse de alguma forma vinculado ao responsável direto, como se verifica das hipóteses elencadas no artigo 1521 do referido Código.

Deve ser ressaltada, no entanto, a crítica de alguns autores que nunca vislumbraram em qualquer dos casos apontados naquele dispositivo, genuína responsabilização por fato de outrem, já que as pessoas ali indicadas responderiam, em realidade, por terem efetivamente contribuído para o fato danoso. Assim, em relação à responsabilidade dos pais pelos danos causados pelos filhos menores que estivessem sob seu poder, que nos interessa em particular nestas breves anotações, defendia-se que a responsabilidade era direta, derivada de culpa própria, por violação do dever de guarda e vigilância.

Controvérsias à parte, importa salientar que as hipóteses de responsabilidade indireta foram mantidas pelo Código Civil de 2002, que no artigo 932, praticamente, reproduziu o referido artigo 1521, ressalvando-se, no entanto, que o artigo 933 do Novo Código atribuiu responsabilidade objetiva às pessoas mencionadas no artigo 932.

Da Responsabilidade Civil dos Pais Pelos Danos Causados Pelos Filhos Menores

Quando se cogita da responsabilidade dos pais por atos de seus filhos menores, tem-se em vista o inadimplemento real ou presumido de certos deveres que se incluem na órbita do exercício do poder familiar.

Pode-se citar, inicialmente, o dever de assistência, traduzido não apenas na satisfação de necessidades econômicas, mas também espirituais e morais, incluindo a instrução e educação dos filhos menores. Portanto, além da obrigação de propiciar ao menor, acesso a conhecimentos básicos e condizentes com a situação social da família, têm os pais o dever de criar e educar os filhos em ambiente sadio, capaz de assegurar o pleno desenvolvimento da personalidade de cada um.

Complementa-se o dever de assistência com a obrigação de vigilância, que se insere no contexto do exercício do poder familiar. É bem verdade que a vigilância se fará mais ou menos necessária conforme a atuação dos pais no desempenho do dever de assistência.

Assim, quando o atual Código atribui aos pais a responsabilidade pela reparação dos danos causados por seus filhos menores, que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia (artigo 932, I), independentemente de culpa (artigo 933), estabelece, obviamente, mais uma hipótese de Responsabilidade Civil objetiva, que, como sabemos, fundamenta-se na Teoria do Risco.

Partindo desta premissa, seria razoável admitirmos que a obrigação dos pais deriva do risco criado, ou seja, seria correto admitirmos o “risco da paternidade”?

Não nos parece que esta seja a abordagem mais adequada ao tema em debate. Antes de prosseguir nesta análise devemos tecer breves comentários acerca do direito à procriação.

Do Direito à Procriação. Princípios e Limites

O direito à procriação, ou seja, o direito de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e o intervalo entre eles, sempre foi encarado pela doutrina norte-americana como uma das manifestações da liberdade individual, sendo um dos múltiplos aspectos do direito à vida privada. No entanto, ainda que se trate de uma doutrina fortemente arraigada nas concepções liberais, reconhecem seus representantes que o direito de procriar não tem caráter absoluto, temperando o tradicional parental rights doctrine com outro mais recente e já dominante, best interest of the child doctrine.

No Brasil, o direito à procriação encontra fundamento constitucional no artigo 226, § 7º da Constituição Federal, que prevê o planejamento familiar, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, como livre decisão do casal. O dispositivo é regulamentado pela Lei n.º 9.263, de 12/01/1996.

Verifica-se que também segundo a doutrina brasileira, o direito à procriação não pode ser visto em termos absolutos, devendo ser sempre ponderado com outros princípios de igual envergadura, tais como os princípios da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III) e da paternidade responsável (CF, art. 229), indicados expressamente no artigo 226, § 6º da Constituição. O intérprete não pode esquecer, ainda, do princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (CF, art. 227), em relação ao qual o constituinte atribuiu, expressamente, absoluta prioridade.

A procriação envolve, portanto, não apenas os interesses dos pais, mas também os interesses inerentes à pessoa dos futuros filhos. A Constituição garante o direito à reprodução ao mesmo tempo em que impõe limites ao exercício deste direito, conclamando os pais ao exercício de uma paternidade responsável, atribuindo-lhes os deveres de assistir, criar e educar os filhos menores.

Por outro lado, o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente impõe aos pais o dever de assegurar aos filhos menores direitos básicos inerentes à vida, educação, alimentação, liberdade e à convivência familiar. Assim, além de deveres materiais, atribuem-se aos pais deveres de ordem espiritual, afetiva, uma vez que o ambiente em que se realiza o processo educacional do menor repercute de forma decisiva na formação de sua personalidade.

Justificativa da Responsabilidade Objetiva dos Pais

Estabelecendo uma vez mais a necessária conexão axiológica entre o Código Civil e a Constituição Federal, podemos concluir que a responsabilidade objetiva dos pais em relação aos atos praticados por seus filhos menores, prevista no Código Civil de 2002, decorre intuitivamente dos princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente, e, conseqüentemente, dos deveres inerentes ao exercício do poder familiar (CC, art. 1634).

É oportuno observar que o poder familiar, ou a autoridade parental, revela seu aspecto mais relevante não quando se aborda o tema da gestão patrimonial, isto é,  a questão da administração e disposição dos bens dos menores, mas sim no enfoque da função educativa, quando vista como ofício funcionalizado à promoção das potencialidades criativas dos filhos. Trata-se de situação jurídica existencial, caracterizada pela atribuição aos pais do poder de interferência na esfera jurídica dos filhos menores, no interesse destes últimos e não dos titulares do chamado poder jurídico.

A solução encontrada pelo Código Civil de 2002, nos parece, portanto, melhor do que aquela encontrada pelo legislador de 1916. A responsabilidade objetiva dos pais em relação aos danos causados pelos filhos menores atende tanto aos interesses da vítima, que se desonera de uma eventual demonstração de culpa dos genitores, quanto aos interesses do menor, uma vez que enfatiza os deveres assumidos pelos pais diante da procriação, fortalecendo a vinculação destes últimos com o processo de educação e desenvolvimento da personalidade dos filhos, harmonizando-se, assim, com os princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente.

Por fim, o direito à procriação não pode, definitivamente, continuar a ser encarado como mais uma atribuição de poderes assegurada pela ordem jurídica para a proteção de interesse do titular, ou seja, sob à ótica tradicional dos direitos subjetivos. Tratando-se de situação existencial, não se amolda, absolutamente, ao modelo de relação jurídica consagrado pelas codificações civis para a defesa do patrimônio, atraindo, antes, um feixe de deveres e responsabilidades estabelecidos no interesse da tutela do filho a ser gerado, e da própria sociedade.

Concluindo, quando o novo Código amplia a responsabilidade dos pais em relação aos atos de seus filhos menores, estabelecendo-a em termos objetivos, confere plena atuação aos princípios da paternidade responsável e do melhor interesse da criança e do adolescente, deixando clara a importância do papel que os pais devem desempenhar no processo de educação e desenvolvimento da personalidade dos filhos.

É evidente, portanto, que a responsabilidade objetiva dos pais não encontra sua justificativa no chamado “risco da paternidade”, mas sim no rol de princípios constitucionais que fundamentam e fornecem novos contornos para o instituto da paternidade, visto agora sob a perspectiva de um Direito Civil perfeitamente integrado à tábua axiológica da Constituição Federal.