Segurança jurídica nos contratos de concessão e permissão no transporte público e terrestre de passageiros

15 de fevereiro de 2016

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Ricardo Villas Bôas CuevaA reflexão sobre a segurança jurídica nos contratos de concessão e permissão no transporte público e terrestre de passageiros deve começar pela discussão do próprio conceito de segurança jurídica. O que significa segurança jurídica no Estado de Direito? Como se protege a confiança legítima de que o sentido das normas não será alterado? Como isso se dá nos contratos administrativos e, particularmente, nos contratos de concessão e permissão de transporte coletivo de passageiros?

Segurança jurídica remete à relação entre tempo e Direito. Em um mundo no qual há incertezas e contingências incontroláveis, o Direito tem uma função estabilizadora das expectativas normativas que procura fazer que o que foi superado no passado não possa ser ressuscitado. No Brasil e na maioria dos ordenamentos, há uma proibição geral, uma cláusula geral ou princípio geral de irretroatividade, que é aplicado, sobretudo, na área penal. Esse princípio não é absoluto, mas traz consigo a proteção tradicionalmente atribuída ao direito adquirido, ao ato jurídico perfeito, à coisa julgada e à anterioridade tributária.

Não há uma proteção absoluta contra a retroatividade da lei, que é admitida em algumas hipóteses. Mas a estabilização das expectativas normativas, conquanto seja uma função primordial do Direito, também pode gerar injustiça. Segurança jurídica e justiça são dois vetores do Direito que podem conflitar. Gustav Radbruch, um grande filósofo do Direito, ensina que, embora sejam valores de igual peso, que se opõem em muitos momentos, a segurança jurídica, ou seja, a estabilidade normativa, é de tal importância que acaba tendo uma precedência prima facie sobre os princípios de justiça não positivados do Direito. Essa precedência, entretanto, não se sustenta se a injustiça da norma de direito positivo for insustentável.

A tensão entre dois valores até certo ponto antagônicos – a estabilidade do Direito pela segurança jurídica e o valor de Justiça – está presente também na reflexão mais contemporânea. Na doutrina alemã, a segurança jurídica deve refletir um estado de coisas no qual não pode pairar nenhum tipo de dúvida sobre os deveres e direitos do cidadão. É um elemento essencial do Estado de Direito, que se presta a proteger o cidadão das surpresas e de eventuais exigências descabidas do Legislativo, do Executivo ou do Judiciário. No Brasil, esse debate tem sido travado sobretudo no Direito Tributário. O professor Humberto Ávila, por exemplo, sustenta que a ideia de segurança jurídica está atrelada a todo o sistema jurídico, a todas as fontes do Direito, às leis, aos atos administrativos e às decisões judiciais. São três os seus elementos fundamentais: o primeiro é a possibilidade de conhecer as normas jurídicas, a cognoscibilidade das normas jurídicas, o que significa acessibilidade às normas, sua inteligibilidade e sua capacidade de serem percebidas e interpretadas por métodos que sejam intersubjetivamente controláveis; em segundo lugar, confiabilidade, ou seja, a proteção do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido; há também uma terceira dimensão, a da calculabilidade, que se traduz na proteção da confiança e a proibição da arbitrariedade (Teoria da Segurança Jurídica. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2014).

A proteção da confiança é particularmente delicada nas relações verticais entre o Estado e os particulares. É que
no Direito Público, prevalecem as noções de supremacia do interesse público, e de sua indisponibilidade. Tais conceitos asseguram à Administração, em princípio, o direito de anular seus próprios atos. A questão que se põe, então, é como disciplinar os efeitos retroativos da anulação dos atos administrativos. Para tanto, a doutrina distingue a retroatividade autêntica da retroatividade aparente. Vale lembrar, a propósito, que o Supremo Tribunal Federal (STF) já teve oportunidade de classificar a retroatividade em máxima, média e mínima, de acordo com seu grau de intensidade. De todo modo, a retroatividade autêntica é aquela que se verifica quando a lei nova retroage para alcançar as consequências jurídicas de ações pretéritas, enquanto na retroatividade aparente a lei nova produz efeitos para o futuro, mas alcança atos ou relações jurídicas que começaram no passado e que ainda subsistem. O princípio da proteção da confiança legítima, reconhecido no direito alemão (artigos 48 e 49 da lei do procedimento administrativo) e no direito comunitário europeu, proíbe a retroatividade autêntica, com algumas exceções, como quando a confiança do particular for adequadamente tutelada ou quando não houver confiança a proteger, quando a retroatividade for benéfica ou ainda quando houver interesse público preponderante. A retroa­tividade aparente, contudo, em regra, é admitida. Ainda assim, a confiança legítima pode ser protegida, se ficar demonstrado que a alteração normativa foi súbita e imprevisível, que havia base objetiva a gerar expectativa de estabilidade normativa, que houve prejuízo e que a confiança do particular deve preponderar sobre o interesse público subjacente.

No Brasil, a confiança legítima também é tutelada. O art. 2o da lei do processo administrativo (Lei no 9.784/1999), por exemplo, vincula a Administração Pública ao princípio da segurança jurídica e proíbe interpretação retroativa da norma administrativa (inciso XIII). Além disso, o art. 54 da mesma lei limita o direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários ao prazo decadencial de cinco anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. A proteção da confiança legítima se manifesta, ainda, na norma que permite ao STF declarar a inconstitucionalidade de lei com efeitos ex nunc. Em regra, a declaração de inconstitucionalidade em controle abstrato implica retirar do ordenamento a norma invalidada pela decisão judicial. Mas o art. 27 da Lei no 9.868/1999 faculta ao STF, em vista de “razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social”, “por maioria de 2/3 de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. No novo Código de Processo Civil (NCPC), a possibilidade de modulação dos efeitos de decisões judiciais passa a alcançar também as hipóteses de “alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos” (art. 927, § 4o, NCPC).

Passamos agora ao exame do regime jurídico aplicável aos serviços públicos. Os serviços públicos, como estabelecido no artigo 175 da Constituição Federal, devem ser prestados pelo Estado, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre por meio de licitação, por meio de contratos administrativos.

Tradicionalmente, permissão é ato unilateral, precário e revogável a qualquer tempo, praticado no desempenho de competência discricionária. Concessão é ato bilateral, que gera direitos e obrigações para ambas as partes. A distinção entre essas duas modalidades de outorga administrativa, outrora muito clara, foi esmaecendo com o tempo, já que o Estado Democrático de Direito pressupõe a existência de direitos e garantias. Tanto uma como outra podem ser revogadas a qualquer tempo. Mas pode-se dizer que a permissão destina-se a situações precárias, enquanto a concessão se destina a situações que envolvem investimentos maiores e com maior prazo. A concessão é adequada para a transferência da prestação de serviço ao setor privado, quando isso implicar atuação de médio e longo prazo, com a exigência de investimentos em bens reversíveis ao patrimônio público.

A autorização, por outro lado, na lição de Marçal Justen Filho (Concessões de serviços públicos: comentários à Lei no 8.987 e no 9.074/95. São Paulo: Dialética, 1997. p. 90), “pressupõe atividade econômica em sentido estrito, que não caracterize serviço público, tal como consta do art. 170, parágrafo único, da CF. Existem serviços, que não são públicos, cujo desempenho pelos particulares sujeita-se à fiscalização estatal”. Exemplos são os serviços médicos, atividade bancária ou, ainda, o aproveitamento de potenciais hidráulicos de pequeno porte para fins privados, mediante autorização prevista na Lei no 9.074/1995, bem como a exploração de portos (Lei no 8.630/1993). Recentemente a ANTT, com fundamento na Lei no 10.233/01, com as alterações da Lei no 12.996/2014, editou a Resolução no 4.770, de 25 de junho de 2015, que dispõe sobre a prestação do serviço regular de transporte interestadual e internacional de passageiros sob o regime de autorização.

As outorgas para prestação de serviços públicos por particulares, mediante concessão ou permissão, materializam-se em contratos administrativos. Neles, a proteção da confiança legítima é particularmente complexa, pois deve-se levar em conta a supremacia do interesse público, a indisponibilidade do interesse público, bem como a ausência de autonomia da vontade. Não há vontade livre a autônoma do Estado. A vontade do Estado decorre diretamente da lei. A vontade do particular tampouco é autônoma, na medida em que lhe cabe preencher os brancos deixados pela administração. Como lembra Marçal Justen Filho, na obra acima referida, há cláusulas mutáveis e imutáveis. Podem ser alteradas as cláusulas que dizem respeito à definição quantitativa e qualitativa do objeto, às condições de execução da obrigação, à fiscalização das atividades do contratado para cumprimento da obrigação por ele assumida e à extinção do contrato. O que é imutável é a equação econômico-financeira sobre a qual se funda o contrato. Ou seja, em princípio, todas as cláusulas são mutáveis. É certo que alteração unilateral pela Administração obriga-a a compensar o contratado pelos encargos adicionais que venha a sofrer. As chamadas cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos devem ser interpretadas no contexto do Estado Democrático de Direito, ou seja, o poder-dever da Administração de alterar unilateralmente os contratos administrativos não pode se confundir com direito subjetivo, ilimitado e incondicionado. A faculdade ou prerrogativa de alterar unilateralmente o contrato administrativo deve destinar-se à “melhor adequação às finalidades do interesse público” (art. 58, I, da Lei no 8.666/1993).

Mas como garantir a intangibilidade do núcleo econômico do contrato? Na Lei no 8.666/1993, o reajuste é determinado de acordo com índices pré-fixados no contrato, que podem ser específicos ou setoriais (art. 40, XI). A atualização se dá quando a Administração atrasa pagamentos, devendo o contrato fixar o critério desde a data do vencimento até a de efetivo pagamento (art. 4º, XIV, c). Já a revisão ou recomposição está condicionada à ocorrência de fatos imprevisíveis ou previsíveis mas de consequências incalculáveis, para manter o equilíbrio econômico financeiro inicial do contrato (art. 65, II, d).

A revisão dos contratos administrativos com base na teoria da imprevisão é complexa, pois põe em xeque a própria ideia de licitação, já que admite a alteração de contrato que resultou quase sempre de concorrência na qual, em princípio, sagrou-se vencedora a proposta mais vantajosa para a Administração. Contratos de obra pública ou de prestação de serviços contínuos, que podem vigorar até cinco anos, já apresentam enorme dificuldade para admitir a recomposição do valor originalmente contratado. Contratos de concessão de serviços públicos, bem como os de Parceria Público-Privada (PPP), apresentam dificuldade especial, pois os prazos são maiores, 10, 15 anos ou mais, com muito mais incerteza e fatores imprevisíveis, com estruturas de custos mais complexas, que acabam por impor a elevação das tarifas pagas pelos usuários ao longo do tempo. Como acentuado por Lucas Furtado, “as decisões acerca dos aumentos das tarifas decorrentes da recomposição do equilíbrio financeiro dos contratos devem ser bem fundamentadas, técnica e juridicamente, de modo a permitir o controle e a comprovação da legitimidade do processo de execução da política tarifária previamente definida. Do contrário, as revisões tarifárias decorrentes dos processos de recomposição de equilíbrio desses contratos tendem a ser constante fonte de insegurança para as concessionárias, para a Administração Pública e, principalmente, para os usuários” (Curso de licitações e contratos administrativos. Belo Horizonte: Fórum, 2007. p. 622).

A Lei da Mobilidade Urbana (Lei no 12.587/2012) deixa entrever que a questão do equilíbrio econômico-financeiro nos contratos de concessão de transporte coletivo de passageiros é mais mais complexa do que em outros contratos de concessão, uma vez que a política pública relativa a transportes urbanos, de que trata a lei, contempla, para a fixação da tarifa, vários componentes que não dizem respeito, diretamente, à prestação do serviço. O art. 8o, por exemplo, que cuida das diretrizes da política tarifária, prevê elementos muito heterogêneos, como a promoção de equidade no acesso, a ocupação equilibrada da cidade, entre outros. Ainda assim, no art. 9o, a lei é muito clara quanto à existência de um regime econômico-financeiro da concessão e da permissão, que são estabelecidos como o resultado de uma licitação, reproduzidos em contrato. Quem fixa os índices tarifários é o poder concedente, mas há possibilidades de reajustes, revisões ordinárias ou de revisões extraordinárias da tarifa.

No Resp 976.836/RS, julgado no rito dos recursos repetitivos e relatado pelo Ministro Luiz Fux, ficou assentado:

1. A Concessão de serviço público é o instituto através do qual o Estado atribui o exercício de um serviço público a alguém que aceita prestá-lo em nome próprio, por sua conta e risco, nas condições fixadas e alteráveis unilateralmente pelo Poder Público, mas sob garantia contratual de um equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela própria exploração do serviço, e geral e basicamente mediante tarifas cobradas diretamente dos usuários do serviço. 2. O concessionário trava duas espécies de relações jurídicas a saber: (a) uma com o Poder concedente, titular, dentre outros, do ius imperii no atendimento do interesse público, ressalvadas eventuais indenizações legais; (b) outra com os usuários, de natureza consumerista reguladas, ambas, pelo contrato e supervisionadas pela Agência Reguladora correspondente”.

O recurso tratava da possibilidade, ou não, de haver repasse às tarifas – no caso, relativas à prestação do serviço de telefonia – das imposições tributárias da União e deixou claro que o equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão é uma cláusula-pétrea. O julgado deixa claro que a Lei das Concessões protege de maneira inequívoca o núcleo econômico do contrato.

Em resumo, pode-se dizer que o princípio da segurança jurídica é norma de sobredireito que paira sobre o sistema e que protege a certeza (vigência, conteúdo e efeitos temporais) e a estabilidade (direito adquirido, ato jurídico perfeito, coisa julgada e confiança jurídica) das normas e das relações jurídicas. E que nos contratos administrativos, aí incluídos os contratos de concessão e permissão para prestação do serviço público do transporte coletivo de passageiros, quase tudo pode mudar. O que é imutável e constitui cláusula-pétrea é o equilíbrio econômico-financeiro, tutelado pela Constituição e por leis específicas, tal como reconhecido na jurisprudência.