“A advocacia está forte e unida para superar a crise” _ Entrevista com o presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz Scaletsky

19 de outubro de 2015

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Felipe_SantaCruzCom apenas dois anos de idade, Felipe Santa Cruz conheceu a face mais cruel do regime militar brasileiro. Seu pai, o advogado pernambucano Fernando Santa Cruz, funcionário público do Estado de São Paulo e militante da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), foi preso no Rio de Janeiro onde viera passear com a família. Detido no sábado do carnaval de 1974 por agentes do DOI-Codi, foi levado de volta a São Paulo e nunca mais foi visto. Desde então, seu nome integra a lista de desaparecidos políticos. Em 2013, aos 40 anos de idade, Felipe tomou posse como presidente da seção fluminense da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/RJ), uma das entidades que mais lutou contra os crimes políticos da ditadura e pela redemocratização do País. 

Àquela altura, Felipe era presidente da Caixa de Assistência dos Advogados do Rio de Janeiro (Caarj) e já acumulava vasta experiência na advocacia. Presidiu o Centro Acadêmico de Direito e o Diretório Central dos Estudantes antes de se formar pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), em 1997. Na época, lutou por melhorias no ensino e participou de atos em defesa da democracia, como o movimento pelo impeachment do então presidente da República Fernando Collor de Mello. Felipe traçou, ao longo de mais de 15 anos, bem-sucedida carreira como advogado trabalhista. Tornou-se titular do escritório Santa Cruz Scaletsky Advogados, foi professor universitário e fez mestrado em Direito e Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), no qual defendeu tese sobre o Direito do Trabalho. 

Casado com a advogada tributarista Daniela Gusmão, foi eleito em 2006 para o cargo de conselheiro da seccional fluminense da OAB, na chapa encabeçada por Wadih Damous. Dirigiu o Departamento de Apoio às Subseções (DAS) entre 2007 e 2009, coordenando a implantação do projeto OAB Século 21, que modernizou as representações da Ordem em todo o estado, e foi também responsável pela criação do Recorte Digital e pelo oferecimento do plano odontológico, entre outros serviços.

Em sua gestão na Caarj, iniciada em 2010, Felipe escalonou e renegociou o pagamento de débitos com fornecedores, sanou dívidas bancárias, reduziu custos e ampliou a rede de serviços e benefícios aos advogados. Criou projetos como o “Nascer”, que auxilia advogadas que se tornam mães, e o “Aprender”, voltado à educação dos filhos dos causídicos. 

Apesar da dor pela perda, Felipe nunca usou o desaparecimento do pai como bandeira política e tampouco fez do seu atual posto na OAB uma trincheira revanchista. No entanto, ele quer conhecer a verdade sobre as violações dos direitos humanos ocorridas nos anos de chumbo. Nesse sentido, honrando as tradições da Ordem, manteve a entidade a serviço da democracia e contribuiu intensamente com os trabalhos das comissões da verdade estadual e nacional.

Sua gestão na seccional também é marcada por uma série de vitórias em defesa das prerrogativas da advocacia e dos interesses corporativos da categoria. Conquistas que beneficiaram advogados de todo o País, não apenas os do Rio de Janeiro. Nesta entrevista à Revista Justiça & Cidadania, ele apresenta um retrato de sua gestão na OAB e comenta temas de grande interesse nos meios jurídicos.

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Justiça & Cidadania – Uma marca da atual gestão da OAB Nacional é a valorização dada à apuração dos crimes contra a humanidade que ocorreram na história recente do Brasil. Em agosto, na passagem dos 35 anos da carta bomba que atingiu a Ordem, foi emblemático o batismo do memorial da OAB em Brasília como Museu Lyda Monteiro da Silva. Qual foi a contribuição da entidade, em especial da seccional fluminense, para o direito à memória e à verdade?

Felipe Santa Cruz – Por uma dor pessoal, de difícil compreensão para muitos, sempre preferi deixar essa importante bandeira nas mãos de colegas que teriam maior isenção para tratar do tema, pois, pela falta de distanciamento, seria um péssimo advogado da causa. Para conseguir viver, seguir em frente, criar meus filhos, optei pelo perdão e sou feliz com isso, mas acompanho com esperança a busca da verdade sobre o paradeiro dos corpos e, claro, em especial o do meu pai. Essa busca foi uma luta central da gestão de Wadih Damous como presidente da OAB/RJ e sempre teve meu apoio e entusiasmo. Ele fez um belo trabalho na Ordem e isso o levou ao comando da Comissão da Verdade do nosso estado, cujo resultado mais expressivo foi desvendar os assassinos de Dona Lyda Monteiro, os autores da bomba dirigida ao nosso icônico presidente Eduardo Seabra Fagundes. Aqui a luta pela verdade se confunde com a OAB/RJ.

J&C – Além dos militares diretamente envolvidos nas violações de direitos humanos, o senhor cobrou apuração sobre o papel das lideranças civis e econômicas que tinham influência sobre o aparelho repressor. Esse item foi devidamente apurado nos relatórios apresentados pela Comissão Nacional da Verdade e pelas comissões estaduais?

Felipe Santa Cruz – Não foi. Há um arremedo, um pastiche, o falso debate sobre punições e o abandono do que importa, que seria informar os familiares sobre as circunstâncias das mortes de seus entes e, quando possível, sobre o paradeiro dos corpos. Falta fechar a página com o esclarecimento sobre o envolvimento de cada um e seu papel sobre a dinâmica e os beneficiados pelo regime de exceção. Falta erguer um monumento ao processo democrático. Isso, sim, seria relevante, pedagógico, de grande estética democrática. Devemos construir uma memória coletiva que reprove o vil oportunismo de uns e a perigosa ingenuidade inculta de outros que acreditam em projetos totalitários.

J&C – O senhor defende a revisão da Lei da Anistia? O que mais pode ser feito para que não mais aconteçam violações dos direitos humanos como aquelas que ocorreram na ditadura?

Felipe Santa Cruz – Lembro Tancredo Neves, em sua última grande aventura, que foi a ida à Europa como presidente eleito. Na ocasião, ele respondeu ao mesmo questionamento frisando que houve no Brasil uma anistia geral, ampla e recíproca. Por conta dela, conquistada em muito pela OAB, as oposições votaram pela anistia aos cassados, condenados, banidos, demitidos ou aposentados. A oposição votou a lei sabendo que era uma lei de anistia recíproca. Optamos por devolver filhos ao seu país. Fosse eu, teria feito o mesmo. Nosso futuro não carece de velhos torturadores na cadeia, a verdade seria um bem maior. Fechar a página do arbítrio deve ser nossa luta. O debate sobre punições desvia o olhar do que verdadeiramente interessa, enquanto isso jovens vão aos protestos carregando cartazes contra a democracia.

J&C – O que o senhor tem a comentar sobre o projeto de lei que propõe revogar a Lei de Segurança Nacional?

Felipe Santa Cruz – Esse projeto é de autoria do ex-presidente da OAB/RJ e hoje deputado federal Wadih Damous. A Lei de Segurança Nacional é aquela mesma da ditadura, que ainda não foi revogada. Em que pese a duvidosa recepção desse texto pela atual Constituição, acredito que é importantíssimo lutar pela sua revogação, como forma de consolidarmos a legislação democrática pós-ditadura, em que rechaçamos quaisquer resquícios de autoritarismo provenientes daquele período. Trata-se de mais um passo para consolidarmos um sistema jurídico que supere a ordem autoritária. Vale ressaltar que a Lei de Segurança Nacional foi usada como instrumento de tortura e mortes durante aquele período.

J&C – O Brasil é um dos países mais violentos do planeta, concentrando mais de 10% dos homicídios mundiais. Mortes que muitas vezes ocorrem em decorrência da própria ação do Estado, por meio de nossas polícias, que estão entre as que mais matam e mais morrem no mundo. A opressão e o desrespeito aos direitos humanos no sistema prisional amplificam esta violência, e hoje a população carcerária vive em péssimas condições de alojamento, higiene e justiça. Para completar o quadro, a tortura faz que nossas prisões e outras instituições de privação de liberdade sejam comparadas às masmorras medievais, na definição do próprio ministro da Justiça. O que pode ser feito para evitar que a tortura e outros tratamentos cruéis continuem a ser uma realidade em nosso país?

Felipe Santa Cruz – A OAB é a principal entidade da sociedade civil organizada. Então, devemos reconhecer que boa parte deste modelo incivilizado, punitivo e assassino é fruto do que a própria sociedade deseja. Temos uma cultura violenta, de eliminação do outro. Uma comunidade assustada acaba naturalmente apoiando em massa medidas como a redução da maioridade e a pena de morte. Nas conversas de calçada ainda ouvimos piadas sobre as condições das cadeias, defesas de uma polícia que atire antes e depois faça perguntas, e não raro encontramos defensores dos métodos mais brutais de interrogatório. Nossa polícia é fruto do que ainda somos como coletividade e ela avança no nosso ritmo de mudanças. Não posso deixar de lembrar que já melhoramos bastante, não é possível comparar a Polícia Civil do Rio com o que era em meus tempos de faculdade, a Delegacia Legal acabou com o “xadrez lotado”. São avanços oriundos dos 26 anos da nossa Constituição.

J&C – Os movimentos sociais organizados, sobretudo os movimentos negros, denunciam insistentemente a existência de um extermínio da juventude negra nas comunidades populares das grandes cidades brasileiras. O fim dos autos de resistência nas abordagens policiais é uma reivindicação destes movimentos, como forma de frear parte da violência homicida que atinge os jovens negros do sexo masculino entre 15 e 24 anos de idade. A OAB está atenta a este debate?

Felipe Santa Cruz – Em nossa gestão criamos o movimento “Desaparecidos da democracia” exatamente para tratar do tema dos autos de resistência e do desaparecimento de pessoas em pleno Estado Democrático de Direito. A verdade é que, ao contrário dos desaparecidos da ditadura – muitos filhos das classes médias – temos números inaceitáveis de desaparecimento de pobres nas comunidades carentes do Brasil. Isso diante do silêncio condescendente de muitos. Há uma dívida óbvia com a população negra. Basta olhar ao nosso redor e comparar com outros países. Hoje é comum o brasileiro voltar do exterior impressionado com o papel social dos negros em sociedades mais avançadas. Ainda não há igualdade racial no Brasil e, apesar de óbvio, esse reconhecimento é fundamental. Contudo, novamente lembro dos avanços da democracia. Sou constantemente convidado para aulas inaugurais de cursos de Direito. Só a má-fé pode não enxergar a mudança no perfil universitário. As cotas mudaram o perfil das universidades e a ascensão social mudou o perfil das salas de aula. Isso é muito positivo e trará grandes frutos no futuro.

J&CO Plenário da Câmara dos Deputados aprovou em dois turnos a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que reduz a maioridade penal de 18 para 16 anos, nos casos de crimes hediondos, homicídio doloso e lesão corporal seguida de morte. A PEC, que já tramita há 22 anos, seguiu para o Senado. A OAB tem uma posição histórica no sentido de que a Constituição Federal prevê como garantia da pessoa humana a maioridade penal aos 18 anos. Como está encarando esse debate?

Felipe Santa Cruz – Nas minhas andanças, estive em uma grande aula inaugural de um curso de Direito em Realengo. Falando em redução da maioridade, perguntei quantos lá aprovavam a redução. Era a maioria. A sociedade quer tal redução, mas entendo que ela não foi devidamente esclarecida. Pontuei os números do nosso sistema carcerário, quase 43 mil presos e a reincidência que hoje é de 75%, ou seja, o preso ingressa no sistema, normalmente por um crime de baixa gravidade, como furto, e três em cada quatro regressam após a liberdade. Toda vez que o preso regressa há um aumento da gravidade do crime praticado, até que o número de homicidas explode. Pronto: formamos um assassino. Temos a tão falada “universidade do crime” financiada com nossos tributos e falar em matricular jovens mais cedo é um debate que pode atender à sanha compreensivelmente punitiva de alguns, mas só vai gerar frustração. Trata-se de demagogia. O que não significa que não possamos aprimorar o Estatuto da Criança e do Adolescente e ajustar medidas que lá já existem. Ao fim da minha aula inaugural, um professor emocionado contou sua história: havia cometido um erro em uma briga de torcidas e, à época, foi condenado a uma pena alternativa de serviço comunitário. Hoje é doutor. Caso estivesse em Bangu no início da juventude, sua vida seria outra. Teria cursado a tal escola do crime. Ao terminar a aula, pude vislumbrar a dúvida no olhar daqueles jovens que inicialmente aprovavam a redução. Falta debate.

J&C – Os deputados governistas acusam de golpe o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB/RJ), de uma “pedalada regimental” para recolocar o tema em votação em menos de 24 horas. A discussão na Câmara foi suficiente? 

Felipe Santa Cruz – O Congresso tenta emplacar pautas populares para reverter o descrédito da classe política. É compreensível, mas deve-se ter mais cuidado com o que não passa de espuma. O empobrecimento do perfil médio do Parlamento reflete o afastamento hoje sentido na democracia representativa. Nossa Constituição já prevê instrumentos de maior participação popular no processo decisório, o que a população quer é participar mais ativamente das instâncias decisórias. Isso é democracia, partilha do poder. Iludir a população com falsas soluções é um processo perigoso e pode ter como resultado o afastamento maior, uma queda ainda mais acentuada da credibilidade daqueles que nos representam.

J&C – Em maio deste ano, a OAB/RJ recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) para anular a autorização dada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) para a quebra do sigilo telefônico das advogadas que representam Elisa Quadros Pinto, conhecida como Sininho. As advogadas tiveram os telefones grampeados por defenderem a ativista social, como consta do processo, o que, argumentou a OAB/RJ, contraria o Estatuto da Advocacia. Qual é o significado desta decisão para a defesa das prerrogativas constitucionais da advocacia? 

Felipe Santa Cruz – É enorme, e olhe que falo isso como o presidente da OAB que condenou firmemente a violência de alguns manifestantes em junho de 2013. Defendemos o direito de manifestação com todas as nossas forças, e por isso não aceitamos a violência. Ocorre que todos têm direito ao sigilo das comunicações com seu advogado. O ovo da serpente do autoritarismo tem insistido no caminho de criminalizar o advogado pelos crimes de seus clientes. Isso atinge até os honorários em recentes casos de grande repercussão, como se alguém perguntasse ao médico a licitude da origem dos valores que recebeu por operar um paciente. Nunca vi ninguém pedir ao engenheiro a devolução do dinheiro da obra em que trabalhou para um executivo corrupto. Temos grande orgulho dessa vitória na luta pelas prerrogativas, o sigilo é proteção do cidadão, não do advogado. Sua violação não passará incólume enquanto aqui estivermos.

J&CQue outras medidas recentes a Ordem teve de tomar para assegurar as prerrogativas dos advogados?

Felipe Santa Cruz – Gostaria de chamar atenção para as pequenas intervenções, aquelas que muitas vezes são invisíveis. Todos os dias dezenas de advogados procuram nossos delegados de prerrogativas. Muitos conflitos potenciais, diria que a grande maioria, são resolvidos com diálogo e boa vontade. A verdade é que trabalhamos permanentemente submetidos ao estresse de uma Justiça que ainda está longe do ideal. A morosidade e os entraves burocráticos geram pressão enorme para os advogados, cobrados por seus clientes como os responsáveis pelos problemas do aparelho judicial. Isso naturalmente gera desgastes, embates. A maior parte resolvemos com conversa e bom senso, separando os casos realmente graves. Considero nossos delegados de prerrogativas verdadeiros heróis e tenho um ambicioso projeto de ampliação do funcionamento da Comissão de Prerrogativas.

J&CNo ano passado, a advocacia foi incluída no Simples Nacional, um mecanismo que gera incontáveis benefícios aos advogados quanto ao pagamento de tributos, especialmente aos escritórios de pequeno e médio porte. Passado quase um ano desta conquista, já é possível contabilizar os ganhos para a advocacia?

Felipe Santa Cruz – Na campanha em que fomos eleitos, escrevi um único artigo sobre nossos projetos. E foi justamente sobre a inclusão da advocacia no Simples. Ainda que não tivesse realizado mais nada, consideraria minha palavra como honrada, a gestão como um êxito. A inclusão da advocacia no Simples foi nossa maior vitória desde o Estatuto. Exigiu muita luta de todo o sistema OAB e a liderança do presidente do Conselho Federal, Marcus Vinicius Furtado Coêlho, mostrou-se exata para o momento histórico. Era naquele momento ou nunca. A mudança de tabela também deve ser ressalvada como primordial. Já aumentou o número de sociedades constituídas e inscritas, e onde vou recebo aplausos por nossa luta. A advocacia fluminense está orgulhosa da sua OAB.

J&C – Enquanto a OAB não tem poder decisório sobre a abertura ou fechamento dos cursos de Direito, que se proliferam em todo o país, o Exame de Ordem se mantém como garantia aos cidadãos de que serão atendidos por profissionais minimamente habilitados. No entanto, volta e meia a legalidade do Exame é questionada, como vem ocorrendo atualmente. No último dia 11 de agosto, data em que é comemorado o Dia do Advogado, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania da Câmara emitiu parecer favorável a cinco projetos de lei que acabam com a obrigatoriedade. Como a OAB vai se posicionar nas próximas etapas da tramitação desses projetos?

Felipe Santa Cruz – É um erro, mas não serão vitoriosos. A sociedade apoia o Exame de Ordem e cada carteira que entrego hoje vem acompanhada da expressão de conquista que empresta ainda mais valor ao momento. Os familiares dos novos advogados choram na solenidade por saber que há conquista e qualidade de quem ingressa no corpo da OAB. Outro fenômeno que não pode ser desprezado, e é pouco comentado, é a redução dos processos disciplinares. Nos últimos três anos, diminuímos de 12 mil para seis mil o número de processos disciplinares no Rio. Claro que houve um esforço nosso, mas reputo que essa queda também diz respeito à melhor capacitação dos novos colegas. Muitos que chegavam ao Tribunal de Ética acabavam julgados por sua incapacidade, não por desvios éticos. Defender o Exame é defender um modelo de advocacia com qualidade e capacidade para responder aos complexos desafios do momento.

J&CO país é um dos que mais têm cursos de Direito no mundo, mas, na média histórica, menos da metade dos bacharéis inscritos nos últimos exames da OAB é aprovada. Os critérios de avaliação estão adequados ou são rígidos demais?

Felipe Santa Cruz – A Ordem não pode substituir o Ministério da Educação, não é nosso papel. Aceitamos e devemos participar da discussão sobre o novo currículo, sobre a criação dos cursos, mas não temos a estrutura e a expertise do Ministério para dirigir os destinos dos cursos jurídicos. Eu, ao contrário de muitos, não gosto do discurso elitista que milita por poucos cursos. Sinto que, para muitos colegas, deveríamos continuar estudando apenas em Coimbra. É anacrônico. Como quero e sonho com a formação de jovens oriundos de todas as classes, moradores de todas as regiões, luto por um Exame de qualidade e acredito que com o tempo aqueles que proporcionam ensino de qualidade serão vitoriosos.

J&CA partir de questão de ordem apresentada pelo Conselho Federal da OAB, o Conselho Nacional de Justiça adotou providências para garantir o pleno funcionamento do Judiciário durante o período de greve dos servidores. Quais foram essas providências? Elas estão sendo cumpridas a contento? Há prejuízos para a população?

Felipe Santa Cruz – Na função de representação somos submetidos a problemas áridos. Sou defensor do direito de greve e sei que os servidores estão há longo período sem aumento. Temo a queda da qualidade nas secretarias da Justiça Federal e na Trabalhista, como já acontece no Tribunal de Justiça, onde a remuneração é menor e a carreira virou um trampolim de entrada para outros concursos. No início da greve, ajustamos com o Sindicato dos Servidores condições de atendimento – como expedição de alvarás e o atendimento nos balcões – que infelizmente não foram cumpridas. O sacrifício da vida dos advogados e da população levou ao nosso posicionamento pedindo o fim da greve. Há outras formas de luta, e greves desse tipo acabam sempre sacrificando o lado mais fraco, que, no caso, é o cidadão carente de Justiça.

J&CCom 200 milhões de habitantes, o Brasil possui cerca de 100 milhões de processos em tramitação nos tribunais do País. Temos quase um processo para cada duas pessoas, cifra impressionante, que cresce de forma exponencial. Em 1988, tramitavam cerca de 350 mil processos nos vários ramos da Justiça. Vinte e sete anos depois, em 2015, esse número ampliou-se em 300 vezes. Podemos dizer que ocorre um fenômeno de “explosão de litigiosidade”. O senhor considera normal que tantos feitos venham a aportar no Judiciário?

Felipe Santa Cruz – Já há unanimidade quanto ao “enxugar gelo” que hoje ocorre. Todos, inclusive o Judiciário, parecem reconhecer a falência do modelo atual. Claro que o número de processos não é fruto do sistema, mas de um país onde os direitos são desrespeitados de forma massiva e, em especial, pelo próprio Estado. O novo Código de Processo Civil já apresenta avanços e acreditamos que muitas serão as formas de solução dos conflitos. Também precisamos fazer nosso dever de casa, moldar esse novo advogado capaz de praticar a negociação fora dos muros do Judiciário. Convencer nossos colegas de que a agilidade na solução dos conflitos é boa para todos, sobretudo para o advogado. Na construção desse profissional, com na sua capacidade, ética e postura, residirá o sucesso das novas formas de solução.

J&CAs audiências de custódia no TJRJ são procedimento que promete reduzir drasticamente o número de presos provisórios. A OAB apoia a iniciativa?

Felipe Santa Cruz – Apoiamos. Temos, hoje, cerca de 40 mil pessoas encarceradas no Rio de Janeiro. Em torno de 40% são presos provisórios. Grande parte deles ao fim do processo será absolvida, ou ao menos não será condenada à privação da liberdade. O encarceramento de um inocente, sobretudo nas condições atuais dos cárceres brasileiros, é uma violência contra a humanidade. 

J&C – O senhor viaja frequentemente para verificar as condições de trabalho dos advogados no interior do estado. A garantia do acesso à Justiça parece ser uma das marcas da sua gestão. Embora os diferentes ramos da Justiça na capital tenham incontáveis questões e necessidades de aperfeiçoamento, o interior muitas vezes é negligenciado e acaba acumulando problemas gravíssimos. Quais são as principais carências e dificuldades que o senhor tem identificado no interior? E quais são as soluções que a OAB/RJ está endereçando para resolver esses problemas?

Felipe Santa Cruz – Ser dirigente de OAB/RJ é viver o dia a dia dos 92 municípios do Rio de Janeiro. A família já sabe que serão anos de constante deslocamento. Instituí a prática de visitar todas as nossas 62 subseções no início de cada ano. É a hora em que ouço os advogados de todo o estado e estabeleço nossa estratégia para os 12 meses que se seguirão. Temos problemas variados no interior, desde o abandono de pequenas comarcas até a falta de investimento em regiões que cresceram muito. Uso sempre os exemplos da pequena Cambuci e de Rio das Ostras. A primeira não tinha juiz há seis anos e contava com 10 mil processos para 10 mil habitantes. A segunda, símbolo da explosão demográfica causada pela indústria do petróleo, tinha só dois juízes para 200 mil habitantes. Tão distantes em suas realidades e tão próximas em sua carência de Justiça. Após muita luta, conseguimos mais uma vara em Rio das Ostras e o juiz titular para Cambuci. Ainda falta muito investimento na primeira instância, em especial do Tribunal de Justiça. Por isso criamos, na OAB/RJ, a campanha “Mais Justiça”. Queremos mais servidores, magistrados e juizados especiais em todo o estado.

J&C – Implementado de maneira atabalhoada na Justiça do Trabalho em janeiro de 2013 e mais tarde na Justiça Estadual, o Processo Judicial Eletrônico (PJe) parece ser grande preocupação da OAB. O que pode ser feito para melhorar a compreensão dos advogados sobre o sistema? Serão cobradas atualizações para garantir maior acessibilidade?

Felipe Santa Cruz – Fomos cobaias de um sistema que pode melhorar a vida de todos, mas até agora se revelou uma grande dor de cabeça. No Rio, a OAB se desdobrou para qualificar quase 150 mil advogados. Modernizamos nossas salas de atendimento, criamos centrais de inclusão e, agora, escolas de inclusão digital. É certo que arcamos com um ônus, mas o sofrimento teria sido muito maior se a Ordem não tivesse assumido o papel de apoiar cada advogado, em especial os que possuem maior dificuldade de adaptação. Não podemos aceitar que a modernização do Judiciário seja pretexto para exclusão.