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A composição do júri e o feminicídio

6 de setembro de 2023

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Está em curso projeto de lei do Senado (PLS nº 1918/2021), de autoria do Senador Flavio Arns (Podemos-PR), que pretende estabelecer paridade de gêneros na composição dos integrantes da lista periódica de jurados dos tribunais do júri.

De acordo com a justificativa apresentada, com a nova disposição se suplantaria o “machismo” que “influencia decisões importantes do tribunal do júri”, acreditando o proponente que nas hipóteses de feminicídio há mais complacência no julgamento “quando o conselho de sentença é composto, em sua maioria, por homens”.

Importante mencionar que o subscritor do PLS não apresentou quaisquer dados estatísticos ou pesquisas acadêmicas capazes de suportar minimamente os argumentos ali aportados. A despeito dessa insuperável carência empírica, o senador considera que, para atingir a paridade pretendida, o corpo de jurados deve ser selecionado na sociedade de modo a conter, a cada mês, idêntico número de homens e de mulheres e, quando se tratar de julgamento pela prática de feminicídio, deve o conselho ser formado com maioria de mulheres (em 2015 o Código Penal passou a contemplar este figura, caracterizando-se quando a vítima for mulher, por razões da condição do sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar, menosprezo ou discriminação à condição de mulher).

A alteração legislativa apresentada pelo parlamentar paranaense vem assim redigida: 

Art. 433. O sorteio, presidido pelo juiz, far-se-á a portas abertas, cabendo-lhe retirar as cédulas até completar o número de 25 jurados, para a reunião periódica ou extraordinária, sendo que, no mínimo, 13 jurados serão mulheres.

Art. 447.

Parágrafo único. Dos sete jurados que constituirão o conselho de sentença, no mínimo, três serão homens e três mulheres, com exceção do julgamento dos crimes em que a vítima for mulher, no qual haverá no conselho, no mínimo, quatro mulheres.

Nos termos do art. 425 do Código de Processo Penal (CPP), a cada ano devem ser alistados pelo presidente do tribunal do júri de 800 a 1.500 jurados nas comarcas de mais de um milhão de habitantes; de 300 a 700 nas comarcas de mais de cem mil habitantes e de 80 a 400 nas comarcas de menor população.

Será desse contingente de pessoas, todas maiores de 18 anos e dotadas de “notória idoneidade” (art. 436, CPP), que o desenho de lei busca instituir paridade de gênero, escalando entre os 25 jurados a serem sorteados a cada sessão mensal periódica 13 mulheres e 12 homens, para a atuarem no tribunal do júri.

O PLS foi distribuído à relatoria do Senador Jorge Kajuru (PSB/GO), que emitiu parecer opinando pela sua aprovação, acrescentando pequena emenda para alteração ao §1º do art. 469, do CPP:

Art. 469.

§ 1º. A separação dos julgamentos somente ocorrerá se, em razão das recusas, não for obtido o número mínimo de sete jurados para compor o conselho de sentença, na forma prevista pelo parágrafo único do art. 447 deste Código.

Em sua justificativa, o senador goiano dirigiu sua argumentação com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD/IBGE) de 2021, segundo os quais “as mulheres representam 51,1% da nossa população, enquanto os homens, 48,9%”. Aludiu também a informações obtidas no Tribunal Superior Eleitoral, nas quais “essa mesma equivalência é encontrada entre os eleitores brasileiros, dos quais 52,63% são mulheres e 47,35%, homens”. O parecer do Senador Kajuru filia-se ao entendimento de que, habitando no País mais mulheres do que homens, deveria a lista de jurados atender à mesma proporção.

Com base em idênticos argumentos, ingressou no debate o Senador Carlos Viana (Podemos/MG), com a apresentação da Emenda nº 1 ao PLS. Para o parlamentar mineiro, já que as mulheres formam a maioria da população, “justo é que o conselho de sentença do tribunal do júri represente essa paridade”. Sustenta, então, que para “garantir que a equidade e a imparcialidade sejam preservadas nos julgamentos do tribunal do júri em que os casos tenham vítima mulher, de forma equânime deve ser assegurado ao réu um conselho de sentença igualitário, e não com maioria de mulheres, ao menos não por imposição legal, que viola o princípio da paridade de armas no processo penal e extrapola o dispositivo constitucional que trata do tribunal do júri”.

“Art. 447. Parágrafo único. Dos sete jurados que constituirão o Conselho de Sentença, no mínimo, três serão homens e três mulheres”.

Necessário passar em resumida revista o contexto normativo em que se apresenta ao Congresso Nacional o PLS destinado a alterar a fórmula modernizadora introduzida pelo legislador na ampla reforma de 2008.

A disposição prevista no art. 439 do CPP de 1941 facultava ao juiz alistar os jurados “mediante escolha por conhecimento pessoal ou informação fidedigna”, podendo “requisitar às autoridades locais, associações de classe, sindicatos profissionais e repartições públicas” os nomes para composição da listagem anual.

Ampliando esse leque, mas suprimindo o arbítrio judicial, a redação da disposição hoje em vigor (art. 426 do CPP) inclui, além das entidades previstas no texto legal originário, as associações de classe e de bairro, culturais, instituições de ensino em geral, universidades e núcleos comunitários.

O que se exige dos jurados é o compromisso de julgar com “imparcialidade”, decidir de acordo com “a consciência e os ditames da justiça” (art. 472, CPP) e manter a “incomunicabilidade” entre si durante o julgamento (art. 466, §1º).

Demonstra a experiência que as requisições expedidas para formação da lista anual de jurados raramente são enviadas para associações de moradores de favelas, quilombos, sindicatos de trabalhadores domésticos, etc.; tampouco vão para country, iate ou golfe clubes. Invariavelmente são destinadas a repartições públicas e órgãos estatais, sendo a seleção de jurados, em razão disso, formada por servidores civis, funcionários, bancários, comerciários, professores e profissionais liberais.

Significa dizer que a seleção dos jurados não é procedida de modo a abranger todo o arco socioeconômico da população, cingindo-se aos segmentos com níveis superiores de educação, renda, riqueza, qualificação ou treinamento, excluindo-se tanto os que se encontram na base quanto no topo da pirâmide social, mesmo sendo distintos os motivos que levam a essa exclusão.

Apesar do §1º do art. 236 do CPP estabelecer que “nenhum cidadão poderá ser excluído dos trabalhos do júri ou deixar de ser alistado em razão de cor ou etnia, raça, credo, sexo, profissão, classe social ou econômica, origem ou grau de instrução”, é a classe média, aquela em que se incluem “desde os profissionais liberais, como médicos, contadores, advogados, acadêmicos e assim por diante”, mas também “pessoas ocupando empregos relativamente rotineiros e menos especializados”, que finda por alimentar o rol de cidadãos que julgarão todos os crimes dolosos contra a vida.

A confirmar-se o que se anota, a lista de jurados titulares e suplentes que atuarão na 8ª sessão judiciária perante o IV Tribunal do Júri do Rio de Janeiro reúne grupo de cem jurados formado em grande maioria por mulheres, quase todas servidoras públicas. Destaque para a incomum circunstância de que, entre os 25 jurados que integrarão a lista como titulares, 24 são do sexo feminino e apenas um do sexo masculino (DJe de 19/7/2023, p. 106).

Trata-se, certamente, de coincidência momentânea, razão pela qual não se pode generalizar. Inegável, por outro lado, cuidar-se de expressivo reflexo da emancipação feminina havida no País, revelando que mulheres vêm ocupando postos de relevo da sociedade.

Independentemente destas observações, a proposição em apreço poderá resultar em sérios inconvenientes para a seleção do corpo de jurados e, mais ainda, para a composição do conselho de sentença em cada julgamento. O sorteio de três homens e três mulheres em cada sessão de julgamento e, nos casos em que a vítima for mulher, por quatro mulheres e três homens, poderá inviabilizar a realização dos julgamentos.

A lei processual em vigor estabelece que devem ser selecionados 25 jurados por mês, independentemente do gênero (art. 462, CPP). A presença de 15 jurados será bastante para abertura dos trabalhos em cada julgamento, já considerados os impedimentos legais (art. 447, CPP) e também as ausências justificadas (art. 463, CPP).

Demais disso, como cada parte pode recusar até três jurados, sobrariam apenas nove, de onde devem ser escolhidos sete. Dificilmente será possível que desse número se extraiam pelo menos três mulheres, ou, na hipótese de vítima mulher, quatro.

Ainda que se faculte convocar jurados suplentes, estes somente poderão participar do julgamento na sessão seguinte, o que pode gerar adiamentos sucessivos, acarretando excessiva demora na submissão do réu a julgamento, sobretudo quando se tratar de preso, propiciando ocorrência de constrangimento ilegal por excesso de prazo, haja vista a violação da garantia individual que assegura a todos “razoável duração do processo” (Constituição da República, art. 5º, LXXVIII).

O PLS, com a devida vênia, não merece prosperar.