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A contradita de Juarez Távora

5 de outubro de 2004

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Acabo de receber sua carta de 25 deste, bem como o manifesto que a acompanha. Foi com imensa tristeza que concluí a leitura deste. Há, nele, muitas coisas com que concordo; e muitas outras de que discordo completamente.

A revolução não pode ser feita com o programa anódino da Aliança. Está certo. Concordo. Sou radicalíssimo, diante desse programa. Admito que, num país de 8,5 milhões de km², se forneça terra gratuita a quantos quiserem lavrá-la. Mas discordo de que seja preciso confiscar o latifúndio honestamente adquirido. Confisquem-se, sim, os que houverem sido desonestamente apropriados; e os há muitos em mãos de estrangeiros e de nacionais. Os outros, que se desapropriem, se for necessário.

Sou contra o imperialismo, suas ambições e ganâncias. Mas, por isso mesmo, nós, que mal podemos levantar do nosso pescoço a canga que nos impuseram os senhores indígenas, não devemos antes de quebrá-la, revoltar-nos contra a outra, dos alienígenas.

Reconheço que a ultima atividade do capital estrangeiro é absorvente e voraz. Mas poderá ser limitada e regulada por um governo verdadeiramente patriota, sem que se hajam de confiscar bancos, empresas e empréstimos que, no fim de contas, são propriedades legítimas, que merecem ser estudadas sob outro ponto de vista. Penso, a propósito, que os ingleses e os americanos não têm culpa de que os nossos governos tenham andado a pedir-lhes esmolas.

À revolução vencedora competiria coibir o abuso: mas não pretender sana-lo com uma desonestidade. Sou partidário decidido da nacionalização das quedas d´água e das riquezas do subsolo. Mas discordo de que isso se faça por simples confisco. Mesmo porque não teríamos força para fazê-lo…

Concordo que o proletariado tenha direito a um lugar sob o sol: limitação de horas de trabalho; regulamentação e proteção do trabalho de mulher e de crianças; seguros contra acidentes, desemprego, velhice, invalidez e doença; direito de greve, de reunião e de organização.

Tudo isso acho justíssimo e indispensável que a revolução defenda e realize. É o que tem feito os povos civilizados.

Vou mais adiante: quero que se legisle sobre salários e sobre interesse dos operários nos lucros auferidos pelas empresas em que trabalham. Mas discordo de que se estabeleça um governo em nome exclusivo de proletários, soldados e marinheiros. Isso é um idiotismo comunista. Prefiro um governo de gente esclarecida e honesta, estabelecida em nome de todas as classes, capaz de regular, imparcialmente, os interesses de cada uma dela. Sou contra a atual ordem de coisas, porque resulta de um governo de capitalistas, que tudo monopoliza em detrimento das demais classes. Sou contra igualmente, um governo de operários, camponeses e soldados, porque será, da mesma forma, o governo de uma classe, contra as demais. E – excesso por excesso – prefiro o que ai está, por me parecer mais esclarecido e menos feroz que o outro.

Vou desinteressar-me do rumo que você quer imprimir à revolução – porque não alimento a pretensão de poder modificar seu pensamento: nem cometerei vileza de sacrificar-me e a amigos, na defesa de uma causa que me repugna.

Anexo nº 4

Nós, os da velha guarda revolucionária, acreditamos que o mal não reside apenas na deficiência dos homens – mas, sobretudo, na perniciosa mentalidade ambiente que a pratica defeituosa de uma Constituição, divorciada das realidades da vida nacional, permitiu surgir, medrosa, na aurora do regime, e agravar-se, intoleravelmente, sob o consulado dos últimos governos.

O remédio contra essa diátese política não pode consistir, pois, logicamente, na simples substituição dos homens. Penso que um estadista esclarecido, assumindo hoje um governo da República, encontraria tais óbices opostos à sua vontade pela injunção dos precedentes legais, que teria de optar, ao cabo de algum tempo, por uma das duas alternativas: corromper-se, para adaptar=se ao meio envolvente, ou renunciar o mandato para conservar-se reto.

Impõe-se, portanto, como base de nosso saneamento político, a eliminação dessa atmosfera de corrupção que nos envolve. Como, porém poder eliminá-la, corrigir-lhe as conseqüências – substituí-la, enfim? É esse justamente o nosso grave problema nacional.

Disse – e disso estou firmemente convencido – que tal ambiente nasceu da prática defeituosa de uma Constituição política inadequada às nossas tendências, à nossa cultura, às nossas realidades. Esse diagnóstico impõe, por si mesmo, o remédio exigido pelo caso: – Reforme-se, criteriosamente, a Constituição. Reforme-se uma, duas, vinte vezes – se tantas forem necessárias, para conseguir adaptá-la à mentalidade do povo cuja vida social e política ela deve espelhar com um padrão.

E, ao elaborar tais reformas – nada de fetichismos doutrinários, de dogmas de política clássica, de transplantações exóticas brilhantes, de liberalismos de fachada – tudo, porém, pela lição prática do nosso século e pouco de existência independente, no afã inflexível de consultar, antes de tudo, as nossas realidades de raça em formação, de meio especialíssimo e de cultura quase embrionária.

Nacionalizar a nossa Constituição – isto é, torná-la capaz de ser bem executada pela elite deficiente que possuímos – eis o remédio prático para os nossos males.

Nós, revolucionários, não cremos que uma tal reforma possa processar-se pelo menos em um futuro próximo, por uma pacífica evolução legal.

Efetivamente: Os homens que ora dirigem nossa Pátria consideram quase intangível a Constituição de 91, e julgam perfeitamente normal e eficiente a mentalidade política, dentro da qual a executam. Ora, está provado, praticamente, que, sob o império de tal mentalidade, nenhuma força partidária que se lhes oponha, pelo caminho legal do voto, será capaz de destroná-los. O suborno, a fraude e, em último caso, a violência impune garantirão, sempre, a vitória dos que dispões do poder. Nessas condições, o ambiente político que nos asfixia, só permitirá a ascensão, ao poder, dos tutelados da atual situação; e estes, por estreiteza mental, ou instinto de conservação, nunca pensarão em destruir esse meio que lhes é propício.

Mas a revolução por que me tenho batido e pela qual – honrando a memória dos nossos mortos, entre os quais figura agora esse bravo, nobre e generoso Siqueira Campos – espero poder ainda consumar novos sacrifícios, não é a revolução que acaba de preconizar, em manifesto político, o meu prezado amigo, camarada e ex-chefe, General Luís Carlos Prestes.

Sinto, sinceramente ter de dizê-lo, pois, de há muito, me habituei a admirá-lo, ouví-lo e atacá-lo, como a um verdadeiro guia, por sua experiência, sua cultura, sua ponderação.

Mas a encruzilhada que ele acaba de abrir no roteiro até agora comum, de nossa peregrinação revolucionária, força-me, por um dever de razão e de consciência, a dele separar-me.

Não creio da exeqüibilidade da revolução desencadeada pela massa inerme do proletariado das cidades, dos colonos das fazendas, dos peões das estâncias, dos habitantes esparsos dos nossos sertões. A essa massa, faltam-lhe todos os atributos essenciais para realizar uma insurreição generalizada, nos moldes da que preconiza o manifesto do General Prestes: – coesão, iniciativa, audácia e, sobretudo, eficiência bélica.

É essa, aliás, a única revolução que os nossos políticos profissionais admitem como sendo popular – justamente porque sabem ser impraticável, na época da metralhadora e do canhão de tiro rápido…

Mas não creio que lá cheguemos, adotando o exotismo dos conselhos de operários, marinheiros e soldados, que nos aconselha o General Luís Carlos Prestes.

Esse regime é uma inovação apenas adotada na Rússia, e cujos resultados práticos ainda não permitem a indução de postulados políticos próprios, incontroversos. Mesmo que ele houvesse produzido ali resultados excelentes – seria leviandade pretender transplantá-lo para o nosso meio, como o tentou a Monarquia com sua evolução para o parlamentarismo inglês e o fez a República, copiando o presidencialismo norte-americano. É temerário alegar que nos prendem ao povo russo maiores afinidades que ao inglês ou ao americano – a não ser que baste, para tal equiparação, a existência, lá como aqui, de massas populares ignorantes, diluídas numa vasta extensão territorial…

Mas, mesmo partindo desse ponto, bastaria um superficial estudo da luta secular, travada na Rússia, entre o despotismo dos czares e a miséria do proletariado – luta que lhe incubou, com o tempo, apesar de sua ignorância, o sentimento de solidariedade de classe, que estamos longe de possuir – para dissipar qualquer ilusão de paridade. E, ademais, o simples fato da prevenção generalizada, que o povo brasileiro vota aos excessos do regime soviético russo – bastaria para desaconselhar a sua transplantação para o nosso meio.

Evidentemente não foram motivos filiados a essa ordem de idéias que induziram o General Prestes a pugnar pela adoção, entre nós, de um tal sistema político. Outras razões o impeliram a isso. Adivinha-se, aliás, nas entrelinhas de seu recente manifesto, a revolta franca com que encara as injustiças da atual organização burguesa da nossa sociedade. Ele não se conforma com a monstruosidade de uma minoria insignificante de potentados burgueses tanger a coice de armas – amarrada ao jugo de sua legislação unilateral e egoística – a maioria formidável dos que trabalham e produzem. E pretende poder reparar essa injustiça pela inversão da atual ordem social.

Reconheço a iniqüidade dessa ordem de coisas, em que a maioria proletária se estorce, sem amparo prático, sob o tacão de leis que a minoria burguesa de banqueiros, industriais e fazendeiros, de patrões, em suma, amassa e amolda ao sabor de suas ambições e egoísmos. Concordo que essa preeminência absoluta de uma classe sobre a outra, na elaboração das normas que ambas hão de reger, é maléfica e injusta.

Mas não será invertendo a ordem existente – pela anulação sistemática da burguesia e ascendência universal, incontrastável do proletariado – que se chegará ao almejado equilíbrio social. Isso apenas inverteria os pólos da injustiça combatida.

Creio, sim, no equilíbrio e excelência de um regime baseado na representação proporcional de todas as classes sociais, e erigidos em regulador imparcial de suas dependências e interesses recíprocos. E suponho que o regime republicano democrático (democrático num sentido menos amplo e mais real do que até hoje lhe temos conferido) – é aquele que mais facilmente nos permitirá aproximar-nos desse equilíbrio ideal.

Não penso que devamos preocupar-nos, por ora, com o espantalho do imperialismo anglo-americano. Curemos-nos, antes, das mazelas e incapacidades do nosso caciquismo indígena, para vermos, sem seguida, a que proporções se terá reduzido esse aparatoso duende da opressão externa.

Tal o meu modo de pensar. Fiel a ele, não posso acompanhar o General Luís Carlos Prestes, no novo rumo que acaba de imprimir às suas idéias.

Anexo nº 5

Carta de Juarez Távora

A Luís Carlos Prestes, encerrando a polêmica por eles mantida, em meados de 1930.

Oscar (nome então usado por Prestes),

O nosso lugar não poderia, nem deveria ser à sombra do triclínio, onde se fossem banquetear os políticos vencedores – mas à frente da tropa que houvéssemos comandado e cujo comando haveríamos de manter com o nosso prestígio moral, para alijara, a ponta de sabre, os incapazes, de qualquer categoria, que desonrassem o poder. A aliança galgaria o governo à nossa custa; mas nós cobraríamos, com o preço do nosso sacrifício, a execução, pelo menos nos seus pontos mais essenciais, do nosso programa de restauração nacional. Nessas condições, pouco importaria que fosse parar à frente do governo (naturalmente ditadura) um Getúlio, um Washington Luís ou um Bernades.

A vitória material da revolução teria de suceder necessariamente o fortalecimento do seu prestígio moral – porque nenhum dos seus verdadeiros revolucionários macularia a sua fé, transigindo com desvarios do novo poder – e, de qualquer forma, haveríamos de reagir contra eles, com muito mais eficiência material, do que estamos reagindo, hoje, contra os crimes e infâmias da ditadura disfarçada. Assim, poderíamos, na pior hipótese, ressalvar a nossa responsabilidade e manter nosso prestígio, eximindo-nos de quaisquer contágios indefensáveis, nessa aliança forçada com os políticos.

Disse-lhe, em minha carta de 27 de maio p.p, que a publicação de seu anunciado manifesto iria encerrar o ciclo de verdadeiro prestígio da NOSSA revolução. Hoje, mais do que ontem, estou convencido disso. Você interpretou, entretanto, ali, mau o meu pensamento. Não atribuí tal declínio ao fato de você pretender escalpelar a Aliança e afastar-se de quaisquer ligações com ela. Isso poderia, quando muito, ser considerado de gesto impolítico, capaz de provocar, no momento, um sensível enfraquecimento material da revolução – mas que, de forma alguma, lhe afetaria o prestígio moral.

A minha afirmação se referia e refere, inteira, àquilo a que tenho chamado “o desarrazoado extremismo” de suas idéias. A revolução tem prestígio próprio, e tê-lo-á, necessariamente, enquanto condensar sem seus propósitos reivindicadores as aspirações médias da coletividade nacional. Enquanto isso se der, ela poderá marchar junta com os políticos descontentes, ou separada deles, sem que lhe força alguma humana lhe possa roubar menor partícula do seu prestígio, no seio das massas sofredoras. Penso que as aspirações dessas massas vão muito além do programa anódino da Aliança – mas ficam, também, bastante aquém do radicalismo extremado de suas idéias. Creio, mesmo, que a média da consciência brasileira tem tanta opriza ao escravigismo tacanho dois nossos déspostas quanto às excessivas “liberdades” do sovietismo russo. Não discutirei, aqui, se lhe assiste razão para tal equiparação. Digo-lhes apenas que ela existe, e que será, talvez, mais fácil fazer do Sr. Washington Luís um republicano liberal e democrático do que fazer da massa de nosso povo, cidadãos conscientes do “comunismo”. Eis por que divergi e divirjo da orientação que você entendeu imprimir à revolução. Você se ilude quando pensa que ela apenas nos veio livrar as “zumbaias” dos politiqueiros liberais e de seus jornalistas venais. Ela afastou de seu comando toda a oficialidade moça e sincera do Exército, e também um apreciável contingente de civis que, vindos ou não da política, tem estado, sincera e decididamente, ao nosso lado. Dentro do seu ponto de vista, ficaríamos, conforme já lhe disse noutra carta, adstritos ao concurso irrisório aos comunistas. E há ainda uma restrição. Não creio que os Otávio Brandão e outros medíocres se entreguem, de coração aberto, a um homem do seu talento…

Também não creio na eficiência bélica do proletariado rural ou urbano, ainda que se lhe pudessem juntar, aqui e ali, alguns troços de soldados e marinheiros acéfalos. Por esse desalento material e por aquela repulsão moral foi que eu previ o declínio da NOSSA revolução. Enganaram-me as aparências? Parece-me que não.

Diz-me você, em sua carta, que a publicação de seu manifesto foi feita em caráter individual, e, nessas condições, suas conseqüências ficariam limitadas ao seu prestígio pessoal. Discordo disso. Você era, então o chefe sabido e prestigiado da revolução; e, em torno de seu nome, nós, seus auxiliares de imediata confiança, estávamos preparando um movimento de larga envergadura, cuja explosão era esperada a cada momento, e cujos intuitos eu, pelo menos, nunca suspeitei que fossem a implantação, entre nós, de um regime político baseado em conselhos de operários e soldados. Nessas condições, você não podia nem devia publicar tal manifesto de seus colaboradores. Ora, pelo que estou informado, a maioria, sem prévia consulta e acordo de, pelo menos, a maioria destes discordava e discorda de suas idéias. Não enxergo, portanto, razão plausível (e isso já lhe disse em minha carta de 30 do mês p.p.) para que tal publicação se fizesse, sem que você, antes, renunciasse, publicamente, à chefia do movimento que se preparava. Sem esse passo prévio, as suas declarações só podiam ser tomadas como um ponto de vista comum aos seus comandados. E teria de provocar, como provocou, desagradáveis constrangimentos, ou manifestações públicas de discordância que vieram, no fim de contas, regalar os nossos eternos adversários.

Esse o aspecto que condeno na publicação de seu manifesto. O fato de você possuir as idéias nele expendidas e desassombradamente publicá-las, esses é um direito que só um cretino, lhe poderia negar. Aprendi a respeitar as idéias dos outros, como exijo que me respeitem as minhas. Mas, como no caso em questão, como lhe acabo de explicar, havia um forçado entrelaçamento de interesses, que desaconselhava a publicação do seu manifesto, nas condições em que foi feita.

Você me pede, em sua carta, que leia, com isenção de ânimo, o seu manifesto e medite sobre a exatidão das causas que você nele estabelece para os males que nos afligem. Já o havia lido e meditado suficientemente, quando recebi esse apelo. Ao contrário do que você pensa, já ultrapassei em muito a superficialidade política brasileira, para penetrar no âmago dos motivos sociais e econômicos de onde promanam, essencialmente, as mazelas nacionais.

No capítulo “CAUSAS”, tenho idéias muito semelhantes as suas, quando não inteiramente coincidentes. Sei que o latifúndio é um mal; que a exploração semi-servil do proletário é um crime; que a escravidão econômica ao estrangeiro é uma insânia; e que a organização política, sustentada sobre essa trempe, só pode ser iniqüidade. Concordo, portanto, que será vão buscar um razoável aperfeiçoamento político, sem modificar aquelas bases defeituosas, em que se tem apoiado o regime atual. Mas discordo da propriedade e eficácia dos remédios V. receita, para extirpá-las. Uns não devem ser aplicados, porque encontrariam, por parte do doente, idiossincrasias ou incompatibilidades insanáveis; outros porque exigem instrumental cirúrgico de que ora não dispomos.

Explico-me. Pretender resolver o problema social, econômico e político interno, pelo confisco sumário do latifúndio e organização de um governo de conselhos de proletários e soldados, não me parece coisa mais sensata do que receitar grandes doses de “neo salvarsan”, para curar a sífilis de um nefrítico. E querer libertar-nos da opressão externa, pelo confisco das empresas estrangeiras e desconhecimento das dívidas internacionais, seria assim como pretender salvar um enfermo de apendicite, tentando operá-lo com um caco de vidro rombudo e infecto… Acredito sinceramente que, num e noutros casos, o remédio violento liquidaria o paciente, antes mesmo que disso se encarregasse a própria doença. Em tais casos, o que o bom senso e a prudência aconselham, não é, evidentemente, a extirpação do mal pela raiz, mas que se procure aliviá-lo, até que o estado geral do enfermo permita a aplicação do específico, ou tenha podido obter o instrumental cirúrgico adequado à operação radical.

Vou responder, ainda mais ao pé da letra, a sua argumentação “agrária”. Continuo pensando que o confisco sumário e total do latifúndio honestamente adquirido e cultivado é um roubo dispensável – ainda que pela sua finalidade econômica e social, a nossa razão o admita e justifique. Aceito o paralelo que V. traça, entre o confisco do latifúndio e a abolição da escravatura. Não posso negar que esta foi uma extorsão feita, violentamente, pelo Estado contra a propriedade particular. Mas ouça: ela se escudava em razões de humanidade, muito mais prementes que aquelas que se podem invocar para o confisco da propriedade territorial. O trabalho servil era uma ignomínia, enquanto a exploração do latifúndio apenas poderá, sob alguns aspectos, ser tachada de iniqüidade. Um verdadeiro estadista não se teria contentado, em 88, como os retrógrados, com a lei do ventre livre e da emancipação dos sexagenários. Mas teria também divergido do radicalismo humanitário dos abolicionistas. Pugnaria pelo meio-termo de uma solução mais eqüitativa e sábia, que estabelece, por exemplo, a alforria da mulher, garantido-lhe a constituição integral do lar; a abolição dos castigos corporais e outros direitos dos senhores sobre os escravos, que tornavam infame o regime servil; a remuneração parcial do trabalho do escravo varão, capaz de ir preparando economicamente para a futura liberdade; um prazo razoável de cinco, dez ou quinze anos, para a extinção total do trabalho servil. Isso teria evitado, da mesma forma, a hediondez da vida das senzalas; teria melhor preparado o negro para os encargos de futuro cidadão; teria evitado a desorganização econômica que liquidou, de chofre, muitos “senhores” e perturbou consideravelmente a própria economia nacional. Quem percorrer hoje várias zonas do Estado do Rio, e cotejar sua atual miséria econômica com a atual vitalidade de outrora, poderá bem aquilatar o que foi para o Brasil, como resultado total, o extremismo da Lei de 13 de Maio. É baseado nesses fatos reais, e não em sentimentalismos ou abstração da inteligência, que descreio do acerto de sua tese do confisco integral e imediato do latifúndio e da entrega de seus fragmentos aos atuais assalariados.

O latifúndio é um mal. A pequena propriedade é um bem. Está certo. Mas esse mal e esse bem estão sujeitos, como tudo neste mundo, à lei geral da relatividade. Penso, por exemplo, que é um grave erro de visão objetiva querer extinguir, com uma penada, o regime econômico atual do latifúndio e, com outra penada, pretender substituí-lo, no mesmo dia, pelo regime integral da pequena propriedade. Tal como no caso da  abolição da escravatura, em 88, iríamos sofrer uma crise econômica gravíssima, de conseqüências talvez imprevisíveis.

Isso que acabo de dizer-lhe, sobre a abolição total e imediata do latifúndio, aplica-se, com maior razão ainda, à questão do confisco das empresas estrangeiras e desconhecimento das dívidas internacionais.

Volvo a falar-lhe, seguindo o fio de sua carta, contra adoção, entre nós, do regime “soviético”, que você preconiza. Disse-lhe, em minha apressada carta de 27 de maio p.p., que não acreditava na sabedoria e honestidade de um governo alicerçado sobre conselhos de operários, marinheiros e soldados. Sustento minha tese. Duvido que essa inovação exótica produza coisa melhor do que aquilo que aí temos. Efetivamente: essa massa nem possui capacidade intrínseca para exercer diretamente o governo de si mesma, nem dispõe, entre nós, de discernimento bastante para eleger, com consciência, mandatários capazes de governa-la com sabedoria.

Concordo com você que, para ser sábio e honesto, não é necessário deixar de ser trabalhador. Vou mais adiante: penso que o trabalho (evidentemente não considero trabalho apenas o esforço material de manejar a enxada ou machado – mas toda manifestação de atividade muscular ou mental) é condição básica daquelas duas virtudes. E ouça mais essa verdade palpitante: no Brasil são pouquíssimos os que vivem sem trabalhar – talvez apenas os que sugam, por obra e graça da incapacidade seletiva das massas, as tetas do tesouro público. Os próprios fazendeiros, industriais e banqueiros, não são ociosos. Muitos dentre eles se fizeram à custa do próprio esforço. A sua mocidade foi, o mais das vezes, um rosário de lutas titânicas e a sua velhice nem sempre tem sido menos sobrecarregada de trabalhos do que a de qualquer pobre proletário.

Nessas condições, o regime de justiça social que você propõe não terá virtude de aumentar, como você teoricamente imagina, a soma total de trabalho realizado pela sociedade. O que ele pretende de fato realizar é o nivelamento da capacidade de trabalho de todos os indivíduos, buscando a vã quimera de evitar que haja ricos e pobres, patrões e assalariados, exploradores e explorados…

Mas esse nivelamento a que você aspira é uma utopia. Os homens têm nascidos e continuarão a nascer desiguais no físico, no moral e no intelectual. A humanidade não será nunca uma planície monótona de tipos homogêneos – mas, agora, como sempre, uma superfície oceânica revolta, onde contrastarão sábios e broncos, ricos e pobres, esforçados relapsos, avaros e pródigos, bons e maus, vencedores e fracassados. É uma lei inelutável da natureza. Querer suprimi-la, a golpe de decretos humanos é tão insensato como ordenar ao mar que se achane e se prive do relevo de suas vagas.

O fim que você visa é justo e nobre. Mas o caminho escolhido para alcançá-los é ilusório, porque assenta sobre a miragem da igualdade humana.

Apresentei-lhe, como argumento de peso, em minha carta de 27 de maio p.p., contra a publicação de seu manifesto, o fato, hoje positivado, de 99% de seus leitores o identificarem como “comunista”. Você me responde que essa razão é apenas aparente. Eu lhe replico que ela é essencialmente real. A grande Maioria (poderia dizer a quase totalidade)  do Brasil que lê  e pensa é infensa aos postulados políticos do comunismo. Razões de filosofia, razões de crença – pouco importa a natureza  dessas razões. O fato é que existe essa repugnânncia. E ela, que é temperada na consciência da elite, pela natural tolerância da cultura, assume o caráter de uma idiossincrasia, em se tratando de massa popular ignorante. As razões disso? Não as sei dizer. Talvez influencia da educação católica, talvez incompatibilidade ingênita da própria raça… Mas  o fato positivo, certo, incontestável, é que essa repugnância do nosso povo, pelo comunismo, existe. Você culpa disso os aproveitadores burgueses, que infamaram com uma campanha torpe as idéias  dos extremistas russos. Talvez um pouco. Mas a culpa caberá, antes de tudo, aos próprios comunistas, com os seus excessos. Os confiscos sumários, as ligeirezas de organização da família, a campanha anti-religiosa e outros extremismos foram e serão a pedra de toque da repugnância que nossa gente vota ao regime soviético.

Você apela para nós, achando que devemos todos desmascarar os embustes dos que combatem tais doutrinas. Eu deixo de atender a esse apelo, porque sou um céptico da ideologia comunista e, por vários motivos respeitáveis, um decidido adversário de sua transplantação para o nosso meio. Ademais não creio que essa preparação possa frutificar, dado o caráter eminentemente conservador da nossa gente. Quer um exemplo? Há quarenta anos que a República estabeleceu a obrigatoriedade do casamento civil. Pois bem, ainda há muito sertanejo que, apesar dos conselhos dos próprios padres, refugam essa inovação republicana…

De qualquer forma quero repetir-lhe, aqui, o que já lhe disse, fechando a minha carta de 27p.p.: Dentro do seu programa, não voltarei a terçar armas, porque as suas idéias me repugnam; e não cometerei a vileza de combater por uma causa contra a qual clamem a minha razão e a minha consciência. Preferirei volver humildemente ao seio da família, para onde já levaria bastantes feridas que curar.