Edição

A crença no direito

31 de março de 2012

Compartilhe:

“Para encontrar a Justiça, é preciso ser-lhe fiel. Como todas as divindades, só se manifesta àqueles que nela crêem”
(PIERO CALAMANDREI, in Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados, Lisboa, Livraria Clássica Editora, trad. Ary dos Santos, 7a ed., p. 22).

Em meados do século vinte, GEORGES RIPERT analisava os aspectos fundamentais da ordem jurídica do regime capitalista de produção e condenava a abundância de leis, porque estas se afastam do ideal de justiça, afirmado no preceito romano, de que se deve dar a cada um o que é seu. Isso caracterizava o que designou “decadência do Direito”. O progresso jurídico não passaria de ilusão vã e perigosa em que não se deve crer (apud ORLANDO GOMES, in Raízes históricas e sociológicas do Código Civil Brasileiro, São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp. 101-102).

O tema permanece atual. Segundo os constitucionalistas uruguaios JOSÉ ANÍBAL CAGNONI e GROS ESPIELL, assistimos hoje, junto com outros fenômenos preocupantes, à desvalorização cultural e ética do Direito pela opinião pública e alguns governantes e políticos. Essa depreciação é acompanhada pelo ceticismo quanto ao seu valor e de dúvida sobre sua importância e seu significado. Ao interesse pelo fenômeno jurídico sobrepõe-se a valorização predominante, obsessiva e excludente do fenômeno econômico. Contudo, não se pode olvidar a proteção devida aos direitos fundamentais. Não se despreza o Direito e nem se endeusa a economia sem limites morais e humanos (in Estado-Administración. Su Reforma en el Presente, Montevidéu, Fundación de Cultura Universitaria, 2005, p. 101, trad. livre).

Nesse contexto, o magistrado contemporâneo enfrenta um avassalador dilema intelectual: De um lado, ecoa a preleção de FÁBIO KONDER COMPARATO:

No apogeu do Renascimento, quando a perspectiva exaltante de que o homem, enfim, graças à extraordinária acumulação de conhecimentos, tornar-se-ia “senhor e possuidor da natureza”, Rabelais advertiu, pela boca de um de seus personagens, que “ciência sem consciência é a ruína da alma”. (…)

A ciência jurídica, despida de consciência ética, arruína a sociedade e avilta a pessoa humana. E esse resultado funesto produz-se de modo ainda mais humilhante e ignominioso quando os agentes da desumanização jurídica são justamente aqueles a quem se confiou a missão terrível de julgar os seus concidadãos (in Saudação aos Novos Juízes, São Paulo, Revista Cidadania & Justiça, Associação Juízes para a Democracia, no 3, 1997, pp. 291-293).

 De outra banda, sem menos razão, adverte o ministro LUIZ FUX, do Supremo Tribunal Federal:

Se nós oferecemos uma justiça caridosa, se nós oferecemos uma justiça paternalista, se nós oferecemos uma justiça surpreendente que se contrapõe à segurança  jurídica prometida pela Constituição Federal, evidentemente que isso afasta o capital estrangeiro, como afasta o capital das grandes corporações. É o que sucede com o não-cumprimento de tratados, o não-cumprimento de laudos arbitrais convencionados previamente… Isso aumenta o que se denomina “Risco Brasil”(Impacto das Decisões Judiciais na Concessão de Transportes, Brasília, Revista da Escola Nacional da Magistratura, Associação dos Magistrados Brasileiros, no 5, maio de 2008, pp. 8-21).

Para prestigiar a segurança jurídica, o Tribunal de Justiça de Minas Gerais assentou:

 APELAÇÃO CÍVEL – AÇÃO DE REVISÃO DE CLÁUSULAS Contratuais – JUROS – NÃO LIMITAÇÃO – ENUNCIADO DA SÚMULA 596 DO STF – CAPITALIZAÇÃO MENSAL – POSSIBILIDADE – CONTRATO CELEBRADO APÓS 30/3/2000 – APLICAÇÃO DA MP 2.170/36 – COMISSÃO DE PERMANÊNCIA – COBRANÇA – LEGALIDADE – ENUNCIADO DAS SÚMULAS 30, 294 E 296 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – CUMULAÇÃO DA COMISSÃO DE PERMANÊNCIA COM ENCARGOS DE MORA – IMPOSSIBILIDADE – COBRANÇA DE TAXAS DE ABERTURA DE CRÉDITO E DE EMISSÃO DE BOLETO – POSSIBILIDADE – ABUSIVIDADE NÃO COMPROVADA. A legislação pertinente ao Sistema Financeiro Nacional não sujeita as instituições, que o integram, às limitações da Lei de Usura, a teor do que vem assentando a jurisprudência pátria. As disposições do Dec. 22.626/33 não se aplicam às taxas de juros e aos outros encargos cobrados nas operações realizadas por instituições públicas ou privadas que integram o sistema financeiro nacional (enunciado da súmula no 596 do Supremo Tribunal Federal). Em contratos celebrados a partir de 30 de março de 2000, vale o artigo 5o da Medida Provisória no 2.170-36/2001, o qual afasta a imposição do limite anual à capitalização de juros e a aplicação do artigo 591 do Código Civil. É perfeitamente válida a cláusula que estabelece que a comissão de permanência é calculada pela taxa média de mercado apurada pelo Banco Central do Brasil, limitada à taxa do contrato, conforme enunciado das Súmulas 30, 294 e 296 do Superior Tribunal de Justiça. Não se cumula a comissão de permanência com outros encargos de mora, sob pena de incidência de bis in idem. Não é abusiva a cobrança da Taxa de Abertura de Crédito (TAC) e da Taxa de Emissão de Boleto, desde que a mesma se dê em patamares condizentes com aqueles praticados pelo mercado financeiro, quando se observa que tais encargos visam reembolsar a instituição financeira pelas despesas que teve a este título, para a concessão de empréstimo para a aquisição de veículo por parte do tomador. O julgador não pode desprezar o impacto macroeconômico das suas decisões. Em tempos de globalização econômica, aos agentes de poder é incumbida a tarefa de recriar, em nível global, as tradicionais garantias de segurança jurídica própria do direito privado nacional. (Edoardo Greblo, Globalización, Democracia, Derechos). Historicamente, dividem-se os ordenamentos jurídicos de tradição romanística (nações latinas e germânicas) e de tradição anglo-americana (common law). Contudo, essas expressões culturais diversas passaram a se influenciar reciprocamente. Enquanto as normas legais ganham cada vez mais importância no regime do common law, por sua vez, os precedentes judiciais desempenham papel sempre mais relevante no Direito de tradição romanística. A influência recíproca tende a se intensificar na esteira do fenômeno globalização. O juiz não deve julgar contrariamente ao que, em lides semelhantes, decide o Supremo Tribunal Federal, porque criaria esperanças infundadas para as partes. (…) (TJMG, Apelação Cível no 1.0672.08.318956-9/003, des. Rogério Medeiros, julg. 21.7.2011, por maioria de votos).

 Não se olvide, todavia, a vertente principiológica. Segundo J. J. GOMES CANOTILHO, hoje a subordinação à lei e ao Direito, por parte dos juízes, reclama a “principialização da jurisprudência”. O Direito do Estado de Direito do Século XIX e da primeira metade do Século XX é “o Direito das regras dos códigos”. O Direito do Estado Constitucional Democrático e de Direito “leva a sério os princípios, é um Direito de princípios”. O tomar a sério os princípios implica mudança profunda na “metódica OK de concretização do Direito” e, por conseguinte, na atividade jurisdicional dos juízes (in A principialização da jurisprudência através da Constituição, São Paulo, Revista de Processo, Editora RT, no 98, abril-junho de 2000, pp. 83-89).

Prossegue o constitucionalista luso afirmando que a existência de regras e princípios permite a descodificação, em termos de um “constitucionalismo adequado” (Alexy), de “estrutura sistêmica”. Isto é, possibilita a compreensão da Constituição como “sistema aberto de regras e princípios”. Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras nos conduziria a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática; exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalismo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia, assim, um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para a complementação e  para o desenvolvimento de um sistema, como constitucional, que é necessariamente aberto (CANOTILHO, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, Almedina, 6a ed., 1993, pp. 168-169).

Volta à baila julgado da mais alta Corte mineira, com viés principiológico:

AGRAVO DE INSTRUMENTO – ANTECIPAÇÃO DE TUTELA DEFERIDA EM PRIMEIRA INSTÂNCIA – PLANO DE SAÚDE – RESCISÃO – DOENÇA GRAVE – DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE – CONSTITUIÇÃO FEDERAL – PROCESSO E DIREITOS FUNDAMENTAIS. BOA FÉ CONTRATUAL. AFFECTIO CONTRACTUS. Concede-se antecipação da tutela quando presentes os requisitos previstos pelo artigo 273 do Código de Processo Civil, a saber: a) existência de prova inequívoca da verossimilhança das alegações; e, b) risco de dano irreparável ou de difícil reparação. O receio de dano irreparável, ou de difícil reparação, evidencia-se na probabilidade de prejuízo grave, caso o filho do agravado não venha a ser atendido. Figura nos autos relatório médico do qual consta ser o paciente – dependente do beneficiário do plano – portador de varicocele bilateral. Necessita de tratamento cirúrgico urgente, sob risco de infertilidade. Conclusões extraídas em cognição preliminar. A antecipação da tutela, prevista pelo artigo 273 do Código de Processo Civil, atende ao postulado de Chiovenda, segundo o qual o processo deve dar a quem tem um direito tudo aquilo e exatamente aquilo que ele tem o direito de obter, e ainda,  o processo não deve prejudicar o autor que tem razão. O processo, na sua condição de autêntica ferramenta de natureza pública, indispensável para a realização da justiça e da pacificação social, não pode ser compreendido como mera técnica. É instrumento de realização de valores e especialmente de valores constitucionais (C. A. Álvaro Oliveira, in O Processo Civil na Perspectiva dos Direitos Fundamentais, 2002). De outra parte, a alegada rescisão unilateral do contrato, pela Prefeitura Municipal de Nova Lima, não era do conhecimento do segurado beneficiário e seus dependentes. Igualmente, o desequilíbrio econômico-financeiro do contrato – alegado pela agravante – é matéria pendente de dilação probatória. As partes devem agir com lealdade e confiança recíprocas. Numa palavra, devem proceder com boa fé. Entre credor e devedor é necessária a colaboração, um ajudando o outro na execução do contrato. Nos últimos anos, deixou-se de conceber o contrato como decorrente ou representativo, necessariamente, de interesses antagônicos, chegando os autores e a própria jurisprudência a admitir, inicialmente nos contratos de longo prazo mas, em seguida, em todos eles, a existência de uma affectio – a affectio contractus, com alguma semelhança com outras formas de colabo­ração como a affectio societatis ou o próprio vínculo conjugal (Arnoldo Wald, in O contrato no novo milênio, 2003). É preciso inquietarmo-nos com os sentimentos que fazem agir os assuntos de direito, proteger os que estão de boa-fé, castigar os que agem por malícia, má-fé, perseguir a fraude e mesmo o pensamento fraudulento. O dever de não fazer mal injustamente aos outros é o fundamento do princípio da responsabilidade civil; o dever de se não enriquecer à custa dos outros, a fonte da ação do enriquecimento sem causa (Georges Ripert, in A Regra Moral nas Obrigações Civis). A proteção da saúde resulta de comando constitucional. Possuem relevância pública as ações e serviços de saúde (artigos 196 e 197 da Constituição de 1988). A saúde, como bem relevante à vida e à dignidade humana, foi elevada pela Constituição Federal à condição de direito fundamental do homem. No século XXI, desponta o fenômeno da constitucionalização do direito infraconstitucional. O Código Civil deixou de ocupar o centro do sistema jurídico e cedeu espaço à Constituição. O texto constitucional passou a ser não apenas um sistema em si – com a sua ordem, unidade e harmonia – mas também um modo de olhar e interpretar todos os demais ramos do Direito. Toda a ordem jurídica deve ser lida e apreendida sob a lente da Constituição, de modo a realizar os valores nela consagrados. RECURSO NÃO PROVIDO. (…) (TJMG, Agravo de Instrumento Cível no 1.0188.10.010669-2/001, des. Rogério Medeiros, julg. 15.6.2011, por maioria de votos).

 Para além da “economização” decorrente da globalização, o Direito brasileiro se enfraquece em razão de fatores internos relevantes, dentre os quais destaco exemplificativamente: 1) má aplicação da legislação penal, preferencialmente em desfavor de réus oriundos das camadas mais pobres da população; 2) permissividade da Lei de Execução Penal, em virtude da qual vigora o sentimento de que “ninguém cumpre pena neste país”; 3) alto nível de corrupção nos meios políticos, ao ponto de uma destacada autoridade governamental mencionar que o “escândalo do mensalão” foi “somente” crime eleitoral; 4) extensão injustificada do “foro privilegiado” a diversos agentes públicos; 5) febril elaboração de leis que “não pegam”, porque dissociadas da nossa realidade cotidiana; 6) arcaísmo na aplicação das leis, com excessivo apego ao positivismo jurídico e insuficiente visão principiológica; 7) vigência de legislação processual barroca e excessivamente formalista, a agravar a morosidade da Justiça brasileira; 8 ) estrutura interna obsoleta do Poder Judiciário; e, 9 ) demora excessiva na prestação jurisdicional.

De resto, o cidadão brasileiro precisa contribuir para a árdua tarefa de resgatar a crença no Direito. Os brasileiros se indignam com os escândalos fartamente noticiados pela imprensa, entretanto, já pensaram que eles são a “cara” do Brasil? Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, definiu o brasileiro como “homem cordial”. Possui sociabilidade aparente para obter vantagens pessoais e evitar cumprir a lei que o contrarie (Raízes do Brasil). É o famoso “jeitinho brasileiro”. Muitos dos que xingam duramente os corruptos, são os mesmos que elegem políticos almejando benesses pessoais. Diversos homens públicos são identificados com o slogan “rouba, mas faz”. Esses eleitores não idealizam os representantes que administrarão e elaborarão leis em nome da comunidade, mas os “amigões do peito” que vão resolver seus problemas: emprego, bolsa de estudo, tratamento médico gratuito, transferência do filho para a universidade pública e congêneres. Vão livrá-los de problemas com o delegado de polícia ou o fiscal de tributos, se possível ajeitando a remoção do “incômodo” funcionário para localidade bem distante. São os mesmos “patriotas” que sonegam imposto de renda, não fornecem recibo ou nota fiscal a clientes e consumidores, subornam o guarda de trânsito e o fiscal da fazenda, compram drogas de traficantes, apostam em jogos ilícitos e buscam um meio de pedir ao juiz “uma forcinha” na decisão favorável de determinado processo. Contudo, somos todos muito bons, boníssimos. Corruptos são os outros (GARCIA DE LIMA, , Ética para principiantes, disponível em O Globo On Line, http://www.oglobo.com.br, 5.7.2007).

Em suma, OK na conjuntura global de atenção quase exclusiva ao fenômeno econômico e considerado o primitivismo institucional do Brasil, cabe invocar a lição do jurista italiano SABINO CASSESSE:

Estamos imersos em mudanças e somente podemos intuir para onde se dirigem. Porém não somos, não devemos nos resignar a ser objetos passivos dessas mudanças. Desde as cátedras universitárias, desde a judicatura e, fundamentalmente, desde o âmbito dos governos e dos legislativos, devem emanar ideias e iniciativas que possibilitem que as sociedades do nosso futuro próximo sejam sociedades menos insatisfeitas e menos desregradas que as atuais, onde as pessoas possam se sentir, ao menos em parte, construtoras do seu próprio destino e do destino da comunidade que integram (in Estado-Administración. Su reforma en el presente, cit., p. 37, trad. livre).

 O Brasil está bem melhor do que esteve há alguns anos atrás, mas ressalva ELIANE CANTANHÊDE:

Falta muita coisa para o Brasil ser toda essa cocada preta: educação, saúde, produtividade, inovação, combate à corrupção, distribuição de renda. E, enquanto os brasileiros não pararem de se matar à toa, é melhor deixar o oba-oba para a mídia estrangeira e pensar o estágio e as fraquezas do país com um mínimo de racionalidade (in Devagar com o andor, Folha de São Paulo, 29.11.2011).

A almejada racionalidade de uma grande nação não exclui a crença no Direito. Parodiando RUY BARBOSA, devemos estar com o Direito, pelo Direito e dentro do Direito, porque fora do Direito não há salvação.