A Efetividade do Processo – Parte 1

23 de janeiro de 2012

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(Artigo originalmente publicado na edição 129, 04/2011)

Não há como se desconhecer que a consciência jurídica de cada magistrado, diante de cada fenômeno jurídico depende, à evidência e, não raro, de uma multiplicidade de fatores, que se estendem desde a sua formação técnica até a formação filosófica.

Na obra Curso de Deontologia da Magistratura, sob coordenação do jurista NALINI1, o ex-Ministro do STF, Sidney Sanches, discorrendo sobre o tema “O Juiz e os valores dominantes. O desempenho da função jurisdicional em face dos anseios sociais por justiça”, pontua que:

A consciência jurídica de cada juiz depende de sua formação técnica e filosófica, no sentido mais amplo, abrangendo-lhe a cultura jurídica, a visão política, econômica, social, moral, e, até, eventualmente religiosa (se professar religião). E como essa formação se dá com enorme diversidade entre as pessoas, oriundas das mais distintas classes econômicas e sociais, é inevitável que, mesmo juízes independentes, isto é, que só decidem de acordo com sua consciência jurídica, cheguem, apesar disso, a conclusões parcial ou totalmente divergentes.

E mais:

Mas a constatação leva também à necessidade de cultuar o respeito pelo entendimento alheio, sempre que ditado pela consciência jurídica.

Muita embora a diferença de posição seja algo imanente à atividade judicante, devendo haver o necessário respeito mútuo, o Poder Judiciário não pode e não deve abrir mão de pensar a si mesmo, refletir sobre seus resultados, entabular a necessária autocrítica e, dessa forma, assegurar o aperfeiçoamento funcional e institucional. Afinal, a atividade jurisdicional representa o exercício de uma função pública, remunerada com recursos do povo, da sociedade.

Daí porque, com esse espírito, passo a analisar um estilo de exercício da função jurisdicional, representado pelos “normativistas”, sempre com o propósito de contribuir para uma reflexão construtiva.

Nesse sentido, segundo respeitável corrente doutrinária, há no Poder Judiciário uma velha prática, associada ao “legalismo formalista”, em que se rende um verdadeiro culto à forma, encampada por muitos magistrados e que, portanto, merece análise, sobretudo pelos efeitos projetados junto ao princípio da efetividade do processo.

Com efeito, em sua obra “O Poder dos Juízes”, o respeitável jurista DALLARI2, assinala que:

Por um vício que se liga a anacronismos do ensino jurídico e que se agrava pela mentalidade dos juízes, é comum que os julgadores se preocupem quase que exclusivamente com os aspectos formais de suas decisões. São frequentes as sentenças e os acórdãos recheados de citações eruditas, escritos em linguagem rebuscada e centrados na discussão de formalidades processuais, dando pouca ou nenhuma importância à questão da justiça das decisões.

A religião das formas, secundada por um segmento expressivo de membros do Poder Judiciário, conforme ensina corrente doutrinária respeitável, revela que o problema da crise de legitimidade das decisões judiciais possuí raízes muito mais profundas do que comumente se imagina, começando pela dominante origem social dos magistrados, associada, em seguida, a respectiva formação familiar e social voltada para o individualismo, passando pelo anacronismo do ensino jurídico acrítico e alienado e desaguando na ideologia reinante no âmbito do Poder Judiciário.

A crise do processo é, antes de tudo, uma crise de mentalidade, de visão cultural do processo, dos valores mórbidos trazidos pelo individualismo e elitismo, como também, por último, da ausência de uma visão estratégica de “nação” pelos membros do Poder Judiciário.

Aliás, essa ausência de visão estratégica impede que o Poder Judiciário imprima um ritmo diferenciado e adequado à sua jurisprudência em face de cada mudança decorrente da dinâmica social. De fato, não há como se deixar de estabelecer uma relação entre a atividade de interpretação e aplicação das normas jurídicas e a situação concreta das condições de vida da população, em cada contexto histórico.

Nesse passo, o jurista ALVIM3, na obra Manual de Direito Processual Civil, com muita propriedade assinalou que:

(…)No entanto, frise-se uma vez mais, esta modificação substancial no pensar e aplicar o Direito somente poderá realmente operar melhoria do Estado, na medida e na proporção exatas em que haja melhoria concreta das condições de vida da população, ou seja, em função de uma melhoria da Nação.

Não há reforma processual que possa curar as feridas abertas pela morosidade e pelo excesso de formalismo, sem que haja uma refundação da mentalidade dos membros do Poder Judiciário, que deverá se operar em homenagem ao princípio da efetividade do processo.

Não foi à toa que a eminente Ministra do e. STJ, Eliana Calmon4, ao tomar posse no cargo de Corregedora Nacional de Justiça, junto ao e. CNJ, pontuou:

Não está sendo fácil corrigir os rumos, implantar práticas administrativas modernas, desalojar os vilões do Poder e, sobretudo, mudar os usos e costumes de um Judiciário desenvolvido à sombra de uma sociedade elitista, patrimonialista, desigual e individualista. Este não é um trabalho de poucos e para pouco tempo. É meta arrojada a exigir esforço concentrado de todos os atores da atividade judicante, especialmente dos magistrados.

E mais, a eminente Ministra, indiretamente, profetiza: “Não podemos esperar pelo legislador ou pelo Executivo. A iniciativa da reconstrução é nossa, de magistrados responsáveis diretos pela aplicação da lei e a referência primeira da cidadania, quando agredida em seu direito.”

É preciso que o Poder Judiciário se dispa do corporativismo e das vaidades e renda ensejo a uma pronta reforma estrutural, que nasça de dentro para fora, comprometida com um projeto democrático e inclusivo de país. Do contrário, virá, certamente, uma indesejável reforma de fora para dentro, imposta por uma sociedade que agoniza a espera de um Estado que seja mais funcional, democrático, humano e eficiente. Não é incomum que nesse tipo de reforma, que nasce de fora para dentro, normalmente, a sociedade acaba sendo refém de interesses menores, voltados para amesquinhar a atividade judicante. As palavras da eminente Ministra do STJ são, antes de tudo, um “grito de alerta”.

Para o segmento que adora figurar como “escravo da lei”, olvidando-se da politicidade da atividade judicante, vale lembrar, novamente, lição do jurista DALLARI5, nestes termos:

Por influência do positivismo jurídico passou-se a considerar que só é ‘direito’ o que está contido na lei. E esta, no mundo atual, é feita segundo o jogo das forças políticas, sem qualquer consideração pela realidade social ou por aquilo que na linguagem de Montesquieu e dos teóricos do direito natural seria ‘a natureza das coisas’. De qualquer modo, o direito seria  sempre político, mas a partir da concepção do Poder Legislativo como um órgão ou conjunto de órgãos em que são produzidas as leis, essa politicidade passou a caminhar muito próxima da natureza político-partidária. Desse modo foi estabelecida uma ambiguidade, pois a lei pode ser a expressão do direito autêntico, nascido das relações sociais básicas e expressando os valores de um grupo social, mas, geralmente, passou a expressar apenas a vontade do grupo que predomina em determinado momento da vida de um povo, sendo muitas vezes um instrumento de interesses individuais ou grupais contrários aos de todo o povo.

Na mesma linha de raciocínio, o jurista FERREIRA FILHO6, na obra Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo, leciona:

Fácil é conceber que, num quadro dos conflitos de interesses tornados extremamente agudos pela questão social, a lei veio a ser encarada como uma vantagem. Sim, porque tê-la a seu lado consistia, num modelo do Estado de Direito, em ter a força do Estado como aliada. Daí o esforço de todos os grupos para obter a lei o mais favorável possível a seus interesses. Não a lei mais justa para todos. 5.3. Esta concepção da lei-vantagem deforma todo o modelo institucional da democracia moderna.

Destarte, a lei deixou de ser a expressão do interesse geral para, não raro, agasalhar interesses de grupos ou indivíduos estando, portanto, deformado um instrumento vital da democracia. Disso os “formalistas legalistas” ou “normativistas” se esquecem, ou, o que é pior, agem conscientemente, por opção política. Afinal, na esteira das melhores doutrinas, a neutralidade jurídica é uma quimera. O Direito é instrumento de uma ideologia política.

De uma forma cáustica, o consagrado doutrinador DALLARI7 assevera: “Os normativistas não precisam ser justos, embora muitos deles sejam juízes”.
Na mesma linha de raciocínio, pontifica ainda que:

É preciso que, por meio de uma discussão constante e franca, sejam definidos e apontados os meios concretos para a mudança estrutural da sociedade e do Estado, no sentido de garantir uma prática democrática. Nesse processo de mudança, a magistratura é interessada como beneficiária, pois sem democracia não existe a possibilidade de se manter magistratura independente. Mas, ao mesmo tempo, ela é moral e politicamente responsável, pois nas sociedades modernas a magistratura politicamente responsável, já tem condições para se impor como agente de avanços sociais em favor da dignidade humana e tem o dever de assumir esse papel.

Não se pode ser indiferente a esse apontamento, pois o Poder Judiciário tem um inequívoco e efetivo papel como “agente de avanços sociais em favor da dignidade humana” e, ao atuar dessa forma, não faz nenhum favor ou caridade, já que “tem o dever de assumir esse papel”.

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NOTAS


1 Curso de deontologia da magistratura/Coordenador José Renato Nalini. – São Paulo: Saraiva, 1992. p. 28.
2 DALLARI, Dalmo de Abreu. O Poder dos Juízes. 3. Ed.rev. – São Paulo: Saraiva, 2007. p. 99.
3 ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. Volume 1. 6. ed. rev. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. p. 83.
4 Trecho extraído do discurso de posse da Ministra do Superior Tribunal de Justiça, Eliana Calmon, perante o Conselho Nacional de Justiça, na qual foi investida no cargo de Corregedora do referido Tribunal, ocorrido em 08.09.2010.
5 DALLARI, Dalmo de Abreu. op.cit. p. 59. 
6 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Aspectos do Direito Constitucional Contemporâneo. – São Paulo: Saraiva, 2003. p. 36.
7 DALLARI, Dalmo de Abreu. op.cit. p. 60.