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A importância da reinserção social dos apenados

4 de fevereiro de 2022

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Introdução

Há ideias difundidas na sociedade que, depois de espalhadas, cristalizam-se e tornam-se muito difíceis de combater, muito embora não tenham base fática ou jurídica. Entre essas ideias, uma das mais resistentes é a de que a solução da criminalidade é o aumento das prisões.

Destarte, ainda que a atuação repressiva e punitiva do Estado tenha sua importância e, por conseguinte, mostrar-se salutar o aumento da presença policial ostensiva, câmaras, etc., o combate à insegurança pública não deve se restringir ao aumento das prisões e seu tempo de duração. Aliás, é essa ideia de que o crime se combate, exclusivamente, pela prisão que leva a tanta repulsa ao instituto da audiência de custódia, pois, também, resta cristalizado na sociedade o entendimento de que tal audiência serve apenas para soltar criminosos.

Semelhantemente, toma-se por verdade que, no Brasil, a reincidência alcança o índice de 80%, quando, na realidade, nunca foi realizada nenhuma pesquisa da reincidência em âmbito nacional.

De outra sorte, muito embora as prisões no Brasil tenham quase dobrado em dez anos, passando de 401.200 em 2006 para 726.700, em 2016, consoante pode ser observado no Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, que entre 2006 e 2016, 553 mil pessoas perderam suas vidas devido à violência intencional no Brasil, alcançando a média de 30 homicídios por 100 mil habitantes, como consta no site do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). 

Ressalte-se que, dado o aumento nas prisões, pelo mesmo Infopen se observa que o Brasil tem hoje 700 mil presos para 450 mil vagas, com 350 mil mandados de prisão ou recaptura sem cumprimento, o que, se ocorresse, explodiria ainda mais a superlotação das unidades prisionais, sendo público e notório, pela divulgação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que, no Brasil, gasta-se, em média, R$ 2.500,00 por preso a cada mês.

Aliás, a superlotação também existe, e de forma expressiva, no Piauí, onde há 4.900 presos, para 3.000 vagas em presídios, como a Penitenciária José Ribamar Leite, em Teresina, com capacidade para 336 presos, porém, com 830 presos, mais de duas vezes a lotação e, pior, a Penitenciária de Parnaíba, com capacidade para 175 presos, mas com cerca de 600 ali recolhidos, mais de três vezes a lotação.

Reincidência

Em 2012, através do Acordo de Cooperação Técnica 001/2012, o CNJ firmou parceria com o IPEA para o levantamento da reincidência em sete estados da Federação, pesquisa que, ao final, por problemas na base de dados, acabou por se limitar aos estados do Paraná, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Alagoas e Pernambuco, alcançando uma média de 24% de reincidência.

Tal pesquisa, bastante abrangente e com sólida base científica, resultou no Relatório de Pesquisa de Reincidência Criminal no Brasil, publicado em 2015. Registre-se, entretanto, que essa média de 24% corresponde à reincidência legal, com base no entendimento de Julião (2009), que diferenciou quatro tipos de reincidência

i) reincidência genérica, que ocorre quando há mais de um ato criminal, independentemente de condenação, ou mesmo autuação, em ambos os casos;

ii) reincidência legal, que, segundo a nossa legislação, é a condenação judicial por novo crime até cinco anos após a extinção da pena anterior;

iii) reincidência penitenciária, quando um egresso retorna ao sistema penitenciário após uma pena ou por medida de segurança; e

iv) reincidência criminal, quando há mais de uma condenação, independentemente do prazo legal.

Convém ressaltar, outrossim, que o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí, por meio de seu Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário (GMF), está realizando pesquisa sobre as ditas reincidências genérica e legal na Vara de Execuções Penais de Teresina, cujos resultados devem ser obtidos e divulgados logo após o término da pandemia de covid-19.

A reincidência genérica, porém, que é a que interessa à sociedade, por ser mais facilmente compreendida, é bem maior e pode ser observada no dia a dia das varas de execução penal, tendo sido observada, também, nos estados do Maranhão e do Espírito Santo, quando ali estivemos, em 2019, pelo CNJ.

Por outro lado, conforme amplamente divulgado na imprensa, há países na Europa Ocidental, no caso, Holanda e Suécia, que, segundo a revista Superinteressante, de 13 de fevereiro de 2017, em virtude da redução do número de presos, estavam recebendo presos de outros países e fechando presídios.

Tal realidade do sistema prisional europeu ocidental pode ser explicado pela mentalidade existente na Noruega, que, ainda que sem resultados tão expressivos, tem baixa reincidência, não superior a 20%: “Fundamentalmente, acreditamos que a reabilitação do prisioneiro deve começar no dia em que ele chega à prisão”, explicou a ministra júnior da Justiça da Noruega, Kristin Bergersen, à BBC. “A reabilitação do preso é do maior interesse público, em termos de segurança”, disse. O sistema de execução penal da Noruega exclui a ideia de vingança, que não funciona, e se foca na reabilitação do criminoso, que é estimulado a fazer sua parte através de um sistema progressivo de benefícios dentro das instituições penais.

Reinserção social

Recuperação, ressocialização, readaptação, reinserção, reeducação social, reabilitação de modo geral, são sinônimos que dizem respeito ao conjunto de atributos que permitem ao indivíduo tornar-se útil a si mesmo, à sua família e a sociedade. No contexto prisional, o termo ressocialização é alvo de críticas, inclusive com muita pertinência, como a de Baratta, que, afirmando denotar uma postura passiva do detento e ativa das instituições, seria herança anacrônica da velha criminologia positivista:

“…que tinha o condenado como um indivíduo anormal e inferior que precisava ser (re)adaptado à sociedade, considerando acriticamente esta como ‘boa’ e aquele como ‘mau’. Em oposição, o termo reintegração social pressupõe a igualdade entre as partes envolvidas no processo, já que requer a ‘abertura de um processo de comunicação’ e interação entre a prisão e a sociedade, no qual os cidadãos reclusos se reconheçam na sociedade e esta, por sua vez, se reconheça na prisão”.
(Baratta, 2007, p. 3).

A discussão sobre o termo mais correto, porém, foge do escopo deste artigo, sendo utilizados reinserção social e ressocialização porque são os mais comuns.

Convém salientar, porém, rapidamente, que, na atualidade, as consequências danosas do aprisionamento são por demais conhecidas e que não há como o segregado fugir das influências do recolhimento à prisão, vez que está preso naquele ambiente até o cumprimento de sua pena. Nas palavras de Bitencourt, “não há como fugir do sistema. O recluso encontra-se não só fisicamente encerrado, impedido de sair, como também se encontra preso a um contexto de comportamento e usos sociais dos quais não pode fugir”. (BITENCOURT, 201, p. 175).

Assim, a ressocialização, em seu sentido amplo, mostra-se ainda mais necessária, especialmente no contexto atual, em que as facções criminosas surgiram e se acham cada vez maiores e mais poderosas, dentro e fora dos presídios.

Por fim, enquanto a pena tem os fins repressivo e punitivo, segundo o entendimento clássico, a execução da pena tem, expressamente, como um dos seus objetivos, a reinserção social. Esse objetivo está expresso no art. 1o da Lei de Execução Penal (LEP/ Lei no 7.210/1984): “Art. 1o– Execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”.

De acordo com o artigo supramencionado, resta evidente a dupla finalidade da execução penal, qual seja, dar sentido e efetivação ao que foi decidido na sentença criminal, além de dar ao apenado as condições efetivas para que ele consiga aderir novamente ao seio social e assim não cair nas antigas malhas do crime.

A reinserção social tem como objetivo a humanização da passagem do detento na instituição carcerária, segundo uma perspectiva humanista, colocando a pessoa que delinquiu como centro da reflexão cientifica.

De acordo com Nélson Ney (2006, p.164):

“Presos e direitos humanos. Tanto quanto possível, incumbe ao Estado adotar medidas preparatórias ao retorno do condenado ao convívio social. Os valores humanos fulminam os enfoques segregacionistas. A ordem jurídica em vigor consagra o direito do preso ser transferido para local em que possua raízes, visando a indispensável assistência pelos familiares”.

Destarte, a reinserção social passa, obrigatoriamente, pela humanização dos presídios, acabando-se com sua superlotação e criando um ambiente de respeito aos direitos humanos, com instalações e alimentação dignas, pelo cumprimento dos direitos estabelecidos na lei, quais sejam a remição, as visitas, as saídas temporárias (aos presos do regime semiaberto), pela efetivação dos benefícios prisionais na época devida, e, de modo especial, por meio do incentivo ao estudo, à capacitação profissional e às oportunidades de trabalho.

Assim, faz-se necessária a atuação, efetiva e conjunta, do Poder Executivo, federal e estadual, na construção e estruturação de mais estabelecimentos prisionais, para a melhoria das condições dos presos, dando-lhes espaço condigno, conforme estabelecido na lei e nas resoluções do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (CNPCP), alimentação adequada, espaço para visitação e lazer e as assistências estabelecidas na LEP.

De igual modo, deve o Executivo efetivar o número adequado de policiais penais e demais servidores, proporcionando-lhes a segurança devida e, criar condições, inclusive através de parcerias com a iniciativa privada, para implantação de unidades de capacitação e trabalho remunerado nas unidades prisionais.

O Judiciário, com a imprescindível atuação do Ministério Público, da Defensoria Pública e dos advogados, deve se esforçar para garantir a efetivação dos benefícios prisionais na época devida e acompanhar de perto, cobrando a efetivação dos demais direitos e obrigações dos presos.

Ressocialização no Piauí

No Estado do Piauí, lamentavelmente – ao contrário do que foi observado, na prática, no Espírito Santo e no Maranhão, em que foram visitados os complexos penitenciários de Vila Velha (ES) e de São Luís (MA), este, o antes denominado de Complexo de Pedrinhas, de chocante memória pelas mortes ali ocorridas, onde existem unidades de empresas privadas dentro dos complexos, com incentivo estatal, capacitando e empregando presos – somente há políticas de incentivo à educação e, voltadas, especificamente, à aprovação no ENEM, não havendo nenhuma parceria com empresa privada em qualquer dos 18 estabelecimentos prisionais do Piauí.

Tais parcerias não exigiriam muito esforço para sua efetivação, ainda que haja o fundado receio de contratação de presos no seio da sociedade, receio, porém, que não tem base fática, pois, há benefícios para todos. Para as empresas privadas, há o benefício dos menores salários a serem pagos aos presos. Para estes, as vantagens da capacitação e da remuneração, para o sustento de suas famílias, quase todas pobres e, para a sociedade, a redução da reincidência e, consequentemente, da violência e da criminalidade.

Faz mister registrar que, muito embora o Piauí, de forma inovadora no Brasil, disponha de uma lei que incentiva a reinserção social, a Lei no 6.344/2013, tal norma não vem sendo cumprida pelo Poder Executivo e, nem menos pelo Legislativo, que a aprovou, apenas pelo Tribunal de Justiça, de forma louvável. O Judiciário, através da Vara de Execuções Penais de Teresina, criou e tem em prática o Sistema de Apreciação Antecipada de Benefício (SAAB), escolhida prática vencedora, na categoria juiz, do Prêmio Innovare de 2017, pelo qual as progressões de regime e o livramento condicional são concedidos antes de completado tempo necessário, condicionados à manutenção do bom comportamento, para serem efetivados no dia exato em que atingido o requisito objetivo.

Conclusão

A situação atual do Brasil, de crescente criminalidade, muitas vezes dirigida de dentro dos estabelecimentos prisionais, com o aumento da atuação das facções, que chegam a dominar, na prática, o território de algumas cidades e, por outro lado, o aumento do número de presos, concomitantemente com o aumento do total e violência dos crimes, mostra a necessidade de se buscar o cumprimento da Lei de Execução Penal, adotando-se medidas para a harmônica integração social do condenado.

Referências_________________________________

BARATTA, Alessandro. “Ressocialização ou controle social: uma abordagem crítica da reintegração social do sentenciado”. Alemanha: Universidade de Saarland, 2007. Disponível em: <http://goo.gl/E4zA8o>. Acesso em: 14/05/2013.

BITENCOURT, Cezar Roberto. “Falência da pena de prisão – Causas e alternativas”. 4a Ed. São Paulo. Editora Saraiva, 2011.

IPEA. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Ministério da Justiça, 2021. Disponível em: <www.ipea.gov.br >. Acesso em 16/06/2021.

JULIÃO, Elionaldo F. “Ressocialização através da educação e do trabalho no sistema penitenciário brasileiro”. Tese (Doutorado) em Ciências Sociais – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ. Orientador: José Ignácio Cano Gestoso. 2009.

JUNIOR, Nelson Nery; NERY, Rosa Maria de Andrade. “Constituição Federal comentada e legislação constitucional”. São Paulo, 2006.

Lei de Execução Penal. Lei no 7210 de 11 de julho de 1984. BRASIL. Rio de Janeiro. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm>. Acesso em 16/06/2021.