A magistratura está fazendo ciência

30 de junho de 2023

Marcus Vinícius Pereira Júnior Juiz de Direito do TJRN / Professor do Mestrado Profissional da Enfam

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O fenômeno de escassez de informação jornalística em determinadas regiões tem se intensificado nas últimas duas décadas. Esses locais, chamados de desertos de notícias ou desertos de silêncio, compreendem comunidades, rurais ou urbanas, com acesso limitado a notícias e informações confiáveis e completas, que alimentam a base popular da democracia.

De acordo com o relatório de 2021 do Atlas da Notícia, iniciativa do Instituto para o Desenvolvimento do Jornalismo (Projor), mantenedor do Observatório da Imprensa, em parceria com Volt Data Lab, em pelo menos 3.487 cidades, com média de sete mil habitantes, não há veículos jornalísticos. Essas localidades correspondem a 62,6% dos municípios brasileiros, e totaliza 18% da população nacional sem veículos de informação. Há, ainda, os quase desertos, que são municípios que possuem apenas um ou dois veículos de comunicação e, em geral, têm população média de 17.800 habitantes. Neste caso, há o problema da pouca concorrência e da vulnerabilidade para interferências políticas ou empresariais.

Estados das regiões Norte e Nordeste são os que possuem uma proporção maior de desertos de notícias. No Pará, segundo a pesquisa, das 144 cidades mapeadas, mais de 60% são consideradas desertos de notícia, e outros 30%, quase desertos. É a realidade encontrada em Rondon do Pará, cidade do Sudeste paraense, região da Amazônia Oriental. Aqui está situada a Faculdade de Comunicação da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (Unifesspa), a partir da qual nosso projeto iLab – Laboratório de Inovação em Jornalismo Local observa esta problemática buscando compreender como a comunidade se informa sobre os assuntos locais e como atuam os processos de desinformação, além de estudar esses fenômenos, promovemos algumas práticas comunicativas com a intenção de auxiliar o desenvolvimento e mudança social a partir do jornalismo de qualidade.

Com cerca de 60 mil habitantes, a cidade possui duas emissoras de rádio, sendo uma comercial e outra comunitária, mas sem programação jornalística. Não há nenhum veículo impresso e nem registro de revista ou jornal nacional ou regional que circule na cidade, nem mesmo da cidade média mais próxima, Marabá, distante 155 quilômetros. Também não existe nenhuma agência ou assessoria de imprensa com equipe formada por jornalistas profissionais. Algumas páginas de informações circulam na Internet, principalmente em plataformas de redes sociais, mas o conteúdo não tem caráter jornalístico.

Na abertura do curso de Jornalismo em 2018 foram criados alguns projetos de extensão como o portal Rondon Notícias e a Agência Experimental em Jornalismo Paiá, na tentativa de propor produtos jornalísticos à comunidade. A partir deles, foram desenvolvidos ainda a Rádio na Feira, que leva a rádio da Universidade para a feira de produtores rurais no mercado municipal da cidade, e o Duvide!, projeto de checagem de informações locais, todos incorporados ao iLab. Na busca por uma aproximação com as escolas e o incentivo ao letramento midiático, criamos também um projeto em conjunto com a única escola de ensino médio da cidade, Dionísio Bentes de Carvalho, na qual desenvolvemos uma série de ações voltadas à educação para mídia no período que antecedeu as eleições de 2022.

Desenvolvemos programas de rádio na escola e vídeos informativos para o Instagram para esse público que, pelo menos em parte, tinham a possibilidade de exercício do direito ao voto nas eleições majoritárias, mas também estavam todos suscetíveis à desinformação desencadeada durante esse processo. Além da cobertura jornalística do pleito e de formação de letramento midiático para as turmas, foi confeccionado um jogo de cartas chamado Real ou Fake, em parceria com o Supremo Tribunal Federal (STF), a Rede Nacional de Combate à Desinformação (RNCd) e a Fundação de Apoio e Pesquisa (Funape). O objetivo é tratar de forma lúdica, mas enfática, a questão em sala de aula, com a ajuda dos professores, promovendo discussão sobre o tema.

Concomitante ao processo de desenvolvimento das ações de extensão, desenvolvemos pesquisas exploratórias, especialmente nos últimos três anos, que buscam compreender como ocorre o fluxo de informações na comunidade e também os processos de desinformação. Observamos, por meio de questionários e entrevistas, que as fontes de informação local são as redes sociais, como o Facebook e Instagram, e aplicativos de trocas de mensagens instantâneas, como o WhatsApp, no qual os grupos têm um peso importante. Raramente as pessoas abrem links que direcionam para sites de notícias, e consomem basicamente conteúdos gráficos ou audiovisuais, que não necessitam de muitos cliques ou mudança de ambiente para serem consumidos, como memes, cards, áudios, figurinhas ou vídeos.

A maioria dos pesquisados afirma não considerar que os conteúdos consumidos por eles sejam de natureza jornalística mas, ao mesmo tempo, têm dúvidas sobre o que é ou não um conteúdo jornalístico. Percebe-se que há uma percepção limitada sobre o jornalismo, confundido com informações difusas e informais que ganham aparência e status de notícia, muitas vezes sendo as únicas fontes de informação da comunidade. Exemplo disso é um dos perfis mais citados no acesso à informação local, o Rondon da Depressão, no Instagram, que é um canal de memes, sem critério ou fim jornalístico. A linguagem jornalística, portanto, não é familiar a maior parte das pessoas, o que pode ocorrer por falta de hábito de consumo e também pelo deficiente letramento midiático em ambiente escolar. Assim, nos parece útil pensar sobre o papel cada vez mais importante de quesitos relacionados mais à produção da notícia do que o formato, já que buscamos analisar a forma pelas quais as pessoas buscam informações qualificadas do ponto de vista de sua veracidade e utilidade.

Sobre os processos de desinformação, as pesquisas mostram que a maioria não confia plenamente nas informações que chegam pelas plataformas, especialmente no WhatsApp. A mensagem original se perde, e com ela a fonte/remetente, e os participantes dizem que não saber a proveniência. Mesmo assim, uma parcela considerável compartilha a informação dizendo tentar verificar a veracidade ao repassar adiante. Nesse ambiente de desconfiança e falta de meios locais seguros, as informações de sites institucionais tornam-se fontes fundamentais. Por isso, um dos canais de informação mais importantes para conhecer o que se passa na cidade são as redes sociais da prefeitura municipal, canal institucional que apresenta informações de interesse do Executivo e, portanto, sem compromisso com a pluralidade de fontes e o contraditório, algumas das premissas básicas do jornalismo.

As ações de extensão e pesquisa nos mostram a necessidade de trabalharmos, enquanto universidade, no desenvolvimento de ações que incentivem a capacidade crítica das audiências, para que possam não somente analisar os textos midiáticos, mas também compreender os mecanismos de produção e de funcionamento da mídia. No entanto, é importante destacar que a discussão sobre a participação da comunidade na observação crítica das mídias que promova cidadania e capacidade democrática para realizarem suas próprias escolhas depende de uma discussão mais ampla sobre as desigualdades.

O acesso à tecnologia ocorre de forma bastante desigual em todo o país e os desertos de notícias são também, muitas vezes, locais com grande defasagem tecnológica. Para se ter ideia, Rondon do Pará registra apenas 2,2 acessos para cada 100 domicílios, enquanto a densidade da cobertura da telefonia móvel é de 57,8 para cada 100 domicílios, segundo dados da Anatel de 2022. Essa situação precarizada abrange grande parte das regiões Norte e Nordeste, apesar do avanço da fibra ótica no Brasil. Nestas regiões ainda há 988 municípios sem redes de transporte, segundo o Plano Estrutural de Redes de Telecomunicações (Pert) de 2021, da Agência Nacional de Telecomunicações. Essa defasagem, aliada à falta de incentivo à criação de veículos jornalísticos independentes e às incipientes ações de letramento midiático, impede o desenvolvimento comunicacional e deixa margem para que os processos de desinformação se proliferem e se consolidem.

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Nota da Redação – O Programa de Combate à Desinformação (PCD) foi lançado em maio de 2022 pelo Supremo Tribunal Federal com o objetivo de enfrentar as práticas de desinformação que afetam a confiança das pessoas no STF, distorcem ou alteram o significado de suas decisões e, desta forma, colocam em risco os direitos fundamentais dos brasileiros e a estabilidade democrática do País. O grande arco de parcerias do PCD inclui o Tribunal Superior Eleitoral e entidades da sociedade civil organizada, incluindo universidades, entidades não governamentais e o Instituto Justiça & Cidadania – que disponibiliza em suas edições artigos de acadêmicos envolvidos com a iniciativa.