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A prescrição da cobrança em face do adquirente de estabelecimento em trespasse irregular

9 de abril de 2024

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Atualmente, está em discussão no Congresso Nacional o anteprojeto de lei voltado à alteração de disposições do Código Civil. O momento é propício para que críticas doutrinárias e questões firmadas na jurisprudência integrem a legislação civil. Entre essas, destaca-se a desconsideração da personalidade jurídica e os seus limites temporais.

A desconsideração é instituto da lei civil voltado a coibir o abuso de personalidade jurídica e, ao mesmo tempo, proteger a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. O artigo 50 do Código Civil consagrou as balizas do instituto e o seu cabimento no Direito brasileiro. Do ponto de vista da obrigação e da responsabilidade, a desconsideração da personalidade jurídica significa estender a novas pessoas a sujeição patrimonial quanto ao cumprimento de determinada obrigação. É caso de responsabilidade executiva secundária em que terceiro não devedor pode vir a sofrer medidas executivas cabíveis, inicialmente, somente em face do devedor.

O Código de Processo Civil instrumentalizou o instituto garantindo o contraditório com intervenientes no processo, por meio de incidente previsto nos artigos 133-137. Ainda, a Lei 13.874/19 promoveu alterações no artigo 50 do Código Civil visando ao aprimoramento conceitual e limitação objetiva do instituto, em contraponto à até então ampliação pela jurisprudência, que colocava em risco a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Por outro lado, a legislação não abordou outros limites expostos pela doutrina, apesar de relevantes para a aplicação mais equilibrada do instrumento jurídico. Por exemplo, a polêmica acerca da extensão das matérias de defesa e a prescrição atinente à ampliação da responsabilidade. 

Acerca do último aspecto, o Superior Tribunal de Justiça, no REsp 1.180.191/RJ, relatado pelo Ministro Luis Felipe Salomão, definiu que o pedido de desconsideração envolve exercício de direito potestativo. Na acepção da Corte, não está sujeito a prazo prescricional e, ante a ausência de prazo específico, tampouco a prazo decadencial. Essa interpretação é discutível, vez que a ausência de um prazo para o exercício do respectivo direito gera considerável insegurança jurídica e cria situação paradoxal de colocar o devedor em situação mais benéfica do que o responsável. 

Ainda se discute uma baliza temporal para o exercício do direito de incluir terceiro no processo, por meio da desconsideração, além dos seus termos. Em realidade, cuida-se de prazo prescricional, na medida em que a desconsideração compele o responsável a sujeitar o seu comportamento à vontade da parte contrária, bem como que o direito do credor envolve o direito a uma prestação. Não envolve a criação, modificação ou extinção de relações jurídicas. 

Nesse sentido, parece se encaminhar o anteprojeto de modificação do Código Civil, mais precisamente no artigo 1.146, que cuida da alienação do estabelecimento e da responsabilidade do adquirente por dívidas pretéritas. 

Na hipótese de trespasse regular, o anteprojeto mantém a responsabilidade do adquirente por débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, permanecendo o devedor primário solidariamente obrigado pelo prazo de um ano contado da publicação, quanto a créditos vencidos, e da data do vencimento, quanto a outros créditos. Durante o prazo de um ano, há dívida solidária entre alienante e adquirente, sendo cabível o chamamento ao processo para intervenção do adquirente na fase de conhecimento. 

No curso da execução, a jurisprudência não admite o chamamento ao processo. Porém, isso não impede a aplicação analógica do incidente de desconsideração, na linha do entendimento doutrinário de que a utilidade do incidente vai além do artigo 50 do Código Civil, abrangendo outros casos de corresponsabilidade patrimonial em sede executiva. Especialmente no cumprimento de sentença isso se mostra útil sob a perspectiva do devido processo legal, a fim de não se estender indevidamente a coisa julgada contra terceiro em seu prejuízo e, ao mesmo tempo, garantir mecanismo de extensão da responsabilidade patrimonial em prol da efetividade da execução.

Ultrapassado um ano, o trespasse do estabelecimento torna-se hipótese de sucessão inter vivos. Nessa situação, do ponto de vista sistemático, é pertinente a utilização analógica do procedimento de habilitação dos artigos 687-692, do Código de Processo Civil, que possibilita contraditório, ainda que restrito. Afinal, o alienante sairá de cena e passará a responder somente o adquirente, ante a sucessão empresarial. O procedimento previsto na legislação processual mais próximo desse fenômeno é a habilitação, malgrado prevista para sucessão mortis causa.

De outra banda, o anteprojeto inova legislativamente no tocante ao trespasse irregular, dada a proposta de inclusão dos §§ 1o e 2o ao artigo 1146. Por meio desse acréscimo, haverá previsão expressa na lei acerca da utilização do incidente de desconsideração da personalidade jurídica para corresponsabilização do adquirente e, inclusive, de prazo prescricional para o exercício desse direito.

O trespasse irregular não se confunde com o trespasse regular. Dada a ausência de averbação no Registro competente e de publicidade, bem como o prejuízo aos credores, o alienante permanece responsável pelos débitos juntamente com o adquirente. Em se tratando de corresponsabilização e não de sucessão, é pertinente o cabimento do incidente para garantia do contraditório e devido processo legal com o terceiro, salvo se o adquirente já for incluído no polo passivo desde a petição inicial. 

Além disso, por meio do incidente será cabível a demonstração dos requisitos do artigo 50, do Código Civil, como exigido pelo novo §1o, separando-se as atividades do procedimento principal e do procedimento incidental. No §2o, o anteprojeto prevê que o exercício da segunda pretensão deve ocorrer no mesmo prazo existente contra o alienante, contado da data da celebração do negócio jurídico de trespasse do estabelecimento. 

Trata-se de prescrição, vez que a situação elencada pressupõe o exercício de pretensão em juízo em face do alienante do estabelecimento, para posterior inclusão do adquirente. Na sua dicção, o termo inicial é a data de celebração do trespasse, o que pode ser objeto de controvérsia. Esse termo inicial pressupõe fato superveniente à constituição do crédito. Tende a ser distinto do termo inicial da prescrição do crédito em si.

Quanto ao trespasse regular, é mantida a regra do artigo 1144, do Código Civil: o contrato do trespasse só produzirá efeitos, quanto a terceiros, depois de averbado à margem da inscrição do empresário ou da sociedade empresária, no Registro Público de Empresas Mercantis e ser publicado na imprensa oficial, na forma da lei. 

Todavia, no trespasse irregular, não há averbação, e por isso, no anteprojeto, o termo inicial corresponde à data do negócio em si. Ocorre que tal prazo, a depender da delonga do processo, pode se tornar muito exíguo e favorecer indevidamente quem cometeu a fraude. Assim, cabe cogitar, como termo inicial, a data em que o credor tomou ciência dos atos fraudulentos, desde que comprovada. Essa prova nem sempre é simples e, apesar de a solução tutelar mais efetivamente o crédito em comparação à literalidade do anteprojeto, não é a mais adequada.

Em outra situação, a jurisprudência adotou solução intermediária. Em causas tributárias, o STJ definiu que o prazo prescricional para redirecionamento da execução fiscal em face do sócio apresenta termos iniciais distintos de acordo com o momento em que ocorrido o ilícito (Tema 444 do sistema de repetitivos). Se anterior à citação da pessoa jurídica, o prazo prescricional quinquenal é contado da diligência de citação; se posterior ao ato citatório, conta-se da data da dissolução irregular (data do ilícito). De fato, o redirecionamento da execução fiscal em face do sócio se diferencia da responsabilização do adquirente pelo trespasse. Tais ilícitos têm naturezas distintas.

Entretanto, a própria Corte já estendeu o entendimento para outros responsáveis tributários, como no REsp 1.733.325/SP, de relatoria do Ministro Paulo Sérgio Domingues. Essa saída se mostra razoável na medida em que evita a desídia do credor, consistente em postergar a responsabilização do adquirente para a execução, quando o contraditório com o terceiro tende a ser reduzido. E não permite que aqueles que realizaram o trespasse, após a citação, se beneficiem da sua torpeza, na medida em que o termo inicial, nesse caso, será a data do fato e não da citação.

No tocante ao prazo prescricional, por lógica, o anteprojeto adota o mesmo lapso temporal da pretensão originária. Até porque, se fulminada a pretensão principal, extingue-se a pretensão em face do responsável, de natureza acessória. Por consequência, se, excepcionalmente, a pretensão inicial for imprescritível, a inclusão do adquirente também o será.

Portanto, a nova proposta do artigo 1.146 do Código Civil visa estabelecer critérios mais seguros para o exercício da pretensão em face do adquirente de estabelecimento, especialmente em caso de trespasse irregular. Do ponto de vista processual, por meio do incidente de desconsideração da personalidade jurídica e, do ponto de vista material, por meio da limitação temporal do exercício desse direito. 

Mesmo assim, se aprovado o anteprojeto como lei, a sua interpretação demandará apreciação pelos Tribunais, notadamente quanto ao termo inicial do prazo prescricional e a sua coerência com a jurisprudência atual, dentro da balança de equilíbrio entre tutela efetiva do crédito e a posição jurídica processual do terceiro.

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