Edição

A questão do transporte público urbano

5 de agosto de 2005

Superintendente da Fetranspor e diretor da Associação Comercial do Rio de Janeiro

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Visão presente

Sob o título “Transporte para lá de diversificado”, o jornal O Globo, em sua edição de 31 de julho último, publicou extensa e grave matéria sobre o transporte coletivo de passageiros da cidade do Rio de Janeiro. Como subtítulo, o matutino carioca destacou: “Rio tem dezenove tipos de veículos, entre eles chalanas, surfbus e monotrilho”. Mais adiante, como velada e grave advertência ao Poder Público e à sociedade da capital fluminense, escreve a autora, jornalista Alba Valéria Mendonça: “É quando os fins (o destino) justificam os meios (de transporte). Além dos tradicionais ônibus, trem e metrô,a topografia do Rio, as falhas do atendimento público e as crises econômicas fizeram surgir os curiosos mototáxis chalanas, surfbus e triciclos, também chamados por alguns de ecotáxis”.

Com raras exceções no Brasil, o transporte coletivo urbano tem se mostrado vulnerável a investidas da informalidade e da pirataria, geradoras de competição desleal e predatória sobre os sistemas formais, ameaçadoras da segurança da população, na medida em que o crime organizado encontra espaço na atividade para lavagem de dinheiro, transporte de drogas e de bandidos, corrupção dos agentes públicos e controle sobre espaços urbanos. Renomado especialista de São Paulo, Laurindo Junqueira, publicou interessante artigo a esse respeito sob o título “O Rio não merece”, na edição do mesmo O Globo, de 07 de março de 2003.

Esse quadro de vulnerabilidade e desorganização do transporte público no Brasil é de todo incompatível com os fundamentos e objetivos republicanos de proteção da cidadania e da dignidade humana e ainda de garantia do desenvolvimento nacional, base de uma “sociedade livre, justa e solidária”, como previsto nos artigos 1º e 3º da CF.

Há que se atentar, no Brasil – infelizmente poucas autoridades se dão conta da seriedade e implicações de dispositivo constitucional – que o transporte coletivo urbano é serviço público de cunho essencial e que há de ser organizado e prestado, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, pelos municípios (artigo 30, V, da CF).

Ainda a CF, em seu artigo 175, ao dispor sobre os princípios que a legislação ordinária sobre o regime das empresas permissionárias e concessionárias de serviços públicos deverá seguir, sabiamente estabelece os direitos dos usuários, política tarifária e obrigação de manter serviço adequado.

E a lei ordinária de número 8.987/95 cumpriu o mandamento constitucional ao estabelecer, em seu artigo 6º, parágrafo 1º, que “toda a concessão ou permissão pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários…” e que “serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas”.

Ora, o quadro caótico que se observa no transporte coletivo urbano em muitas partes do Brasil – a própria Capital Federal a ele não está infenso – se revela contrário à ordem jurídica vigente por comprometer legítimos interesses da população em seu direito constitucional de obter serviço adequado, por inviabilizar maior aporte de investimentos públicos e privados no setor, por estimular a informalidade e pirataria em serviço público essencial, por ferir o princípio da moralidade administrativa, por contribuir para a desordem urbana e, finalmente, por abrir as comportas de tão nobre e necessária atividade de locomoção diária de mais de 60 milhões de brasileiros à marginalidade criminosa, com todos os seus tentáculos no poder público e na sociedade.

O Brasil atravessa difícil período na atividade pública, no funcionamento das instituições, algumas delas colocadas sob suspeita. Essas vicissitudes, como sempre ocorreu em nossa rica e gloriosa história, serão mais uma vez superadas pela honradez, patriotismo e determinação da imensa maioria dos brasileiros.

Portanto, passada a tormenta das CPIs, que na reconstrução institucional do País se coloque na pauta de prioridades a questão do transporte público urbano, tendo como agenda de partida as propostas patrióticas do Movimento Nacional pelo Direito ao Transporte Público de Qualidade para Todos – MDT –, coordenado pela Associação Nacional de Transportes Públicos – ANTP – e que conta com apoio de ampla e multipartidária Frente Parlamentar no Congresso Nacional.

Visão Futura

Louvado em experiência do setor, em mais de 40 anos, e inspirado em irrecusável e exclusivo dever de cidadania, de fato entendo, com a devida modéstia, que é deveras urgente ao Poder Público do Brasil rediscutir a questão do transporte coletivo nas cidades e metrópoles, definindo medidas de curto e médios prazos que coloquem o setor no nível de qualidade e de responsabilidade exigido pelo interesse nacional.

Não há mais como tolerar o desperdício irracional de derivados de petróleo consumidos pela frota de automóveis nas cidades brasileiras, a serviço do transporte individual, por falta ou por insuficiência, qualitativa ou quantitativa, de sistema de transporte público. O petróleo, recurso finito, necessariamente com perfil de escassez crescente nas próximas décadas, acha-se altamente vulnerável a conflitos de interesses estratégicos dos países produtores e consumidores, com oscilações temerárias de ofertas e de preços.

Dois fatos recentes e graves, por exemplo, valem como advertências neste mundo global marcado pelo desenvolvimento, pela tecnologia, pela disputa do poder e pelo terrorismo: a oscilação rápida do preço do barril, hoje ultrapassando a barreira dos U$ 60,00 e a expansão vigorosa da China nas compras de petróleo, com crescimento anual da ordem de 15%. Mantido o atual ritmo de expansão da economia chinesa pelos próximos 10 ou 15 anos, há de se imaginar, pelas regras de mercado, a que custo estará o barril, com todas as seqüelas na economia mundial.

Há de se advertir ainda para a crescente conscientização da humanidade quanto à defesa do meio ambiente. A natureza dá seguidas mostras de alterações de climas, degelos de calotas polares ante o aquecimento global e outros efeitos perniciosos sobre a saúde dos seres vivos do planeta. Sobretudo a sobrevivência da espécie humana e a preservação da qualidade de vida hão de prevalecer sobre todos os demais interesses.

O transporte público, inexoravelmente, estará inserido nessa pauta extrema, para que melhorado em conforto, segurança, disponibilidade e economia, possa receber os milhões de pessoas que egoisticamente desperdiçam o petróleo no transporte individual. Experiências exitosas nesse sentido vêm sendo feitas em diversas partes do mundo, algumas com mais de um século, e tudo indica que crescerão nos próximos anos. No Brasil, Curitiba constituiu um marco inicial, seguido em menores escalas por outros centros urbanos.

Os interesses nacionais e da humanidade impõem, portanto, aos nossos governantes, que abram com urgência essas discussões de alto nível sobre o nosso sistema de transporte público, a partir daquelas propostas do MDT – Movimento pelo Direito ao Transporte de Qualidade para Todos. Tenho convicção de que a nossa sociedade, pelo que possui de mais legítimo, tem muito a discutir e propor para consecução desses objetivos de interesse direto e imediato desta Nação.