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A questão ética do direito e da política

5 de maio de 2000

Senador, Membro da Academia Brasileira de Letras

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A  questão ética do direito e da política ainda figura, neste fim de século, como um dos maiores desafios da humanidade. Muitas das carências do sistema judicial do País, cuja busca de eficiência é indispensável para tornar mais equânime a democracia, decorrem , em grande parte, da ausência de um fundamento ético que compatibilize a filosofia do direito contemporâneo e as práticas judiciais aos novos e crescentes desafios, mormente os decorrentes do fenômeno da globalização.

Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, cujos sesquicentenários de nascimento acabamos de comemorar, testemunharam o ocaso do Império e os albores da República. Pioneiros do pensamento liberal na ciência jurídica e na política, eles anteciparam o debate com que hoje novamente nos defrontamos: o de dar um sentido ético às duas mais importantes atividades da organização social – a política e o direito. Rui defendeu os pressupostos da liberdade e da justiça como valores vitais da humanidade em sua pregação por mais amplas garantias para o exercício da cidadania. Nabuco postulou a igualdade como fundamento da justiça e da liberdade. Se considerarmos os pensamentos desses dois homens públicos que honraram a história nacional, vamos concluir que estavam antevendo as proposições da moderna teoria liberal do direito, que elege o princípio da equidade como agente transformador, exigido pela sociedade deste século e do próximo milênio para que possa sobreviver sem iniquidades, com justiça e menos desigualdade.

Rui entendeu, obstinadamente, que a postergação da Justiça é a pior das injustiças: “Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real”.

IGUALDADE. Nabuco, com a sua pregação pelo fim da discriminação, foi além ao preconizar que sem igualdade de oportunidades não existe nem justiça nem liberdade. Para ele, a abolição, na verdade, não significou para os escravos a igualdade em relação aos cidadãos que nunca haviam sido submetidos à mesma condição. No livro minha formação, afirma que o triunfo da abolição não foi seguido… de medidas complementares em benefício dos libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da consciência pública.

No mundo complexo em que vivemos, onde a política deve ser necessariamente o mecanismo para a harmonia do conflito, da diversidade e da diferença, temos que distinguir a lei, meio e instrumento, do direito, fim e objetivo. Do mesmo modo, não podemos confundir o direito com a busca do seu fundamento, que é a justiça, cujo princípio moral é a equidade. Não se deve, pois,  contentar somente com a forma , desprezando a substância, com os meios e não com os fins. Isso tem gerado, nos dias de hoje, excesso de formalismo, fazendo, como já advertia Rui, com que garantias ou procedimentos aparentemente formais levem à postergação e à própria negação da justiça.

Há, pois, que humanizar o direito como forma de dar à justiça a plenitude da equidade, sem a qual não existe a igualdade de oportunidades. Essa é a crise do direito contemporâneo, de que também padece a política, quando se dissocia dos meios e fins de seus fundamentos, que são a liberdade e a igualdade. O direito, a lei e a justiça devem promover, proteger e garantir a liberdade e a igualdade de oportunidades para que haja harmonia, coesão e solidariedade social.

DESAFIOS. Não temos razões para ser pessimistas ou conformistas, em face das dificuldades com que nos defrontamos. Outras gerações enfrentaram obstáculos e ameaças mais graves. Vivemos tempos de normalidade política e de construção de paz social. Adversidades econômicas, reverses políticos e mudanças jurídicas são desafios cotidianos de todas as nações. Somos um país de enorme tradição pacifista. A despeito de duas grandes guerras e conflitos ideológicos, que causaram a destruição de milhões de seres humanos, o mundo hoje se caracteriza por maior integração em função da interdependência dos países. Não queremos dizer com isso que seja mais justo. Porém, é preciso reconhecer que os dias atuais incorporam  como valores universais a defesa dos direitos humanos, o esforço pela erradicação da miséria e a defesa do patrimônio comum da humanidade, representado pelo equilíbrio e a sustentabilidade dos recursos naturais e do meio ambiente.

Lembremo-nos de que o Brasil do século XX é o país de mais contínuo crescimento econômico entre as nações, apesar dos surtos de recessão a que periodicamente estamos sujeitos, das desigualdades que ainda, e infelizmente, marcam a fisionomia social de nossa nação. O papel das gerações que nos antecederam foi o de manter as condições políticas para que essa evolução se processasse de forma promissora. O desafio é, ao lado de garantirmos a estabilidade – política e econômica – , continuar o esforço de promover o desenvolvimento com efetivas medidas de distribuição de renda, quer individual, quer inter-regional, assegurando, assim, uma sociedade mais solidária e justa.