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A responsabilidade ética e legal no serviço público

30 de abril de 2007

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A ética profissional tem outro nome, menos conhecido e mais sofisticado: deontologia. O termo vem do grego déontos e foi criado pelo jurista e filósofo inglês, Jeremy Bentham, um dos precursores da concepção utilitarista, desenvolvida posteriormente, mas com variação diferente, por Stuart Mill, consagrado e incomparável pensador no âmbito da filosofia política.

É um ramo da ética e da filosofia, preocupado com o estudo dos princípios, dos fundamentos e dos sistemas de moral. É também conhecida como ciência normativa ou como tratado dos deveres da pessoa humana, legitimados pela ética e pela legalidade, no que diz respeito a suas inerentes atividades profissionais.

Sem ignorar que o ser humano, movido pela ética da convicção, às vezes, idealmente, pode se empenhar pela virtude, como ensina Stuart Mill, mesmo ciente de que de suas ações possam advir sérias e desagradáveis conseqüências, na perspectiva utilitarista de Jeremy Bentham, “agir moralmente é agir visando a maior utilidade para o maior número de pessoas”.

Para o sempre reverenciado Chaim Perelman, a deontologia deve ser encarada em duplo sentido: “no que aponta para o que devemos fazer, independentemente de suas conseqüências, e no que indica o que convém que se faça em razão de uma finalidade”. Ela é regida por dois sistemas normativos distintos e, de certa forma, afins: o moral e o jurídico.

Por norma moral, devemos entender a que é imposta pela consciência do bem e do mal, do justo e do injusto, do falso e do verdadeiro, do correto e do errado, do bom e do ruim. A genuína norma moral não pode ser formada e nem se nortear por segundas intenções. A vontade livre e a convicção deliberada de fazer o bem, o bom e o correto, são essenciais ao ato moral. Ninguém, senão nós, poderá identificar uma norma moral autêntica, em verdadeiro sentido.

Quando praticamos qualquer ação, pleno de nossa consciência moral, buscando o bem consagrado pelos bons costumes do povo, estamos sendo éticos. Porém, se fazemos esse mesmo bem, mas sem a convicção íntima, impulsionada por nossa consciência moral, representada pelo sadio desejo de realizar o bem, não estamos agindo eticamente.

Talvez estejamos praticando algo que pode chamar a atenção dos outros, como belo e grandioso, com o apelido de ético, mas que, em verdade, é um ato automático, exigido pela boa educação, pela etiqueta social, pelas obrigações da religião que professamos, por nossa urbanidade, por nosso cavalheirismo e por nossa rigorosa coerência com as normas das boas relações humanas. Ético é que ele não é.

O ato moral, como se sabe, não admite coação externa nem qualquer violação da liberdade de escolha da pessoa. A ação ética pode ser falsificada e confundida sem que ninguém possa perceber, além de seu próprio agente moral. Quando apelamos para a ética na política, nos esportes, na economia, no comércio, na indústria, na ciência, na tecnologia, na família, no serviço público e nas demais atividades profissionais, estamos tentando dizer que só a verdadeira ação moral poderá salvar a condição humana, em sua galopante crise de identidade.

O apelo ético é o apelo à consciência moral de cada um de nós. A conduta ética é um estágio superior da humanidade, e sua simples busca já nos possibilita a esperança por dias melhores. É por isso que a legítima conduta ética não pode ser substituída pela impostura da etiqueta, do cavalheirismo hipócrita, do sofisma demagógico, da frieza burocrática, do engodo publicitário, do obscurantismo religioso e do formalismo vazio, que permeiam as relações pessoais em nosso dia-a-dia. A consciência moral está dentro de cada um de nós e deve ser a estrela-guia de nossas ações.

A palavra ética é de origem grega e, há mais de 2500 anos, vem ocupando os questionamentos filosóficos do homem. Significa costume ou, em uma segunda acepção, caráter, dividindo-se em ética individual e ética política. Naquela, como assevera Amauri Mascaro Nascimento, dá-se a valorização dos meios, independentemente dos fins e, nesta, sublinha-se a valorização dos fins, justificantes dos meios.

Chamaríamos de moral aquilo que a tradição do grupo social considera indispensável, quando um membro que a ele pertence tem que tomar uma decisão, levando em conta o bem e o mal prescritos em sua ordem vivencial. O filho menor tem obrigações morais para com seus pais. O pai tem obrigações morais para com a família. Marido e mulher têm um elo moral que lhes sustenta o casamento. A bioética é o foro moral da ciência e da técnica no avanço infinito por elas perseguido.

Por isso, a cada instante, exige-se a impostergável moralização das atividades estatais em suas três funções básicas: legislativa, executiva e judiciária. Por ser imprescindível ao desenvolvimento harmônico e global das relações humanas e sociais, a  Constituição da República incorporou princípios e normas inatacáveis de moralidade no serviço público, para o pleno exercício consciente  da cidadania.

Ética ou filosofia moral é a reflexão que se faz sobre os valores que devem nortear a conduta individual e profissional de que depende a harmonia da vida social.

A ética da convicção é ditada pela consciência moral do indivíduo. Ela diz que, segundo a sadia moral de seu grupo, em seu tempo e em suas circunstâncias, o indivíduo deveria agir desta ou daquela maneira.

Ética é, pois, o agir em consonância com as legítimas imposições da sociedade de que faz parte o indivíduo e dentro de seu tempo. Daí a necessidade de uma ética profissional que imponha um padrão comportamental aos que pertencem a uma irmandade de pessoas com objetivos comuns.

Se somos servidores públicos, com uma atuação instituída para a consecução do bem-estar geral, não podemos agir senão impulsionados por nossa consciência moral de atingir a finalidade absolutamente boa, justa e verdadeira a que se propõe o Estado a que servimos. Se assim é, temos a premente e inafastável necessidade de apelarmos à conduta moral de todos para a realização plena de um consistente e justo projeto de cidadania. Enquanto não houver uma intenção realmente moral de tratar nossas responsabilidades existenciais, continuaremos a viver a fantasia perniciosa de uma ética aparente.

Os gestos admiráveis de boa conduta, as pregações religiosas alienantes, as palavras bonitas do discurso político capcioso e as ações patrióticas dos vendedores de armas serão igualmente úteis e verdadeiros como as pílulas de farinha e os antibióticos fajutos vendidos em belas embalagens e em luxuosas farmácias: imorais, falaciosos, embusteiros e criminosos. Por isso, não basta a norma moral, que só possui coercibilidade interna e se processa na consciência de cada um de nós, materializando-se sob a forma de arrependimento e constrangimento íntimo.

O Estado, com o fim de realizar o bem comum, seu objetivo-síntese, não pode prescindir da norma jurídica por ele estabelecida para pautar a convivência dos homens em sociedade. Ela é a parte substancial do Direito positivado que prescreve, imperativamente, como e quando o cidadão deve agir dentro do modelo de organização social, política, econômica e cultural em que está inserido.

A norma jurídica é heterônoma: imposta a nós pelos outros, ou seja, pelo ente estatal. A  norma moral, ao contrário, é autônoma, imposta a nós por nós mesmos. A norma jurídica, por ter caráter coercitivo externo, se impõe contra a vontade da pessoa que a deve obedecer, sem restrição. Ou a obedece ou vai punido. O indivíduo tem nela a coação psicológica e física, como a prisão, quando a simples intimidação não surte o desejado efeito.

Contudo, quando nos voltamos, em particular, às atividades estatais, deparamos-nos com uma situação paradoxal, contraditória e constrangedora. Como apelar para o senso moral de um servidor público, cujo ambiente de trabalho – a repartição – é um campo minado de clientelismo político, de negociatas, de injustiças funcionais e salariais, de intrigas, de bajulações, de perseguições mesquinhas, acobertadas ou induzidas por chefões, chefes e chefetes corruptos e corruptores? Como agir eticamente no meio de pessoas sem preparo e vocação para o serviço público, total ou parcialmente descomprometidas com o zelo do patrimônio de todos? Como desenvolver uma postura moral exemplar ou incitá-la em um meio heterogêneo, em uma organização burocrática, autista e apática, que escorcha seus servidores com deveres e esquece seus direitos mais elementares?

Não é fácil, realmente, conseguir-se tal desiderato, mas aquele que preserva, incondicionalmente, sua consciência moral, como suporte de sua própria dignidade, não faz concessão ao parasitismo, à imoralidade e à recalcitrância no trabalho respeitável com o que honra seu sustento.

Se somos chefes ou subordinados, não devemos fazer e nem deixar fazer qualquer ato que fira a moralidade do serviço público. O simples fato de não participarmos dos atos imorais que nos rodeiam a mesa já é um grande avanço. Com este elo fechado, a corrente não se completa. Colegas, superiores e subalternos inibidos já não poderão contar com nossa conivência e nem com nosso “jeitinho”. Temos de nos lembrar de que o ato verdadeiramente moral é consciente, solitário e não obrigatoriamente ostensivo.

A despeito dos reprováveis, nocivos e danosos comportamentos de que se tem notícia nos três poderes da República, devemos nos manter vigilantes e dispostos a fazer respeitar o lado normativo legal da ética no serviço público, regulamentado por normas jurídicas positivas e heterônomas, que se impõem coercitivamente e a que todos devem obediência.

O servidor público é um profissional como outro qualquer, com uma magnitude de direito e deveres a mais. O patrão é o Estado e nosso cliente, o cidadão. Dessa forma, e segundo irrepreensível lição administrativa nacional, “a moralidade da administração pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da idéia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo”.