Edição

A suspensão dos direitos políticos e a perda do cargo ou função

6 de maio de 2019

Compartilhe:

Previstos na Lei da Improbidade, à luz da Constituição da República

A Medida Provisória (MP) no 2245-45/2001 prescreve que nos depoimentos e inquirições realizados no âmbito da Lei no 8.429/1991 (Lei da Improbidade Administrativa), observar-se-á o que dispõe o art. 221, caput e parágrafo primeiro, do Código de Processo Penal (CPP).

A referida MP, se viesse a introduzir no corpo da Lei no 8.429/1991 a necessidade de também se observar o que dispõem o art. 5o, inciso XLVI, e o art. 93, inciso IX, ambos da Constituição da República (CR), c/c o art. 92, inciso I, “a”, e com o art. 29, ambos do Código Penal, mais o art. 41 do CPP, contribuiria, e muito, para que a legislação fosse interpretada e aplicada com maior embasamento teórico e técnico. Como não se o fez, permanece na Lei no 8.429/1991 buraco que rende gravíssimos prejuízos ao bom desenvolvimento da ação de improbidade.

Cuidam, os artigos 41 do CPP e 29 do Código Penal (CP), da hipótese em que crimes são praticados por mais de um agente (muito comum nas condutas ímprobas), cujo escopo é exigir do autor da ação que individualize ao máximo as condutas atribuídas aos acusados na ação criminal, em consonância com o que determina o art. 5o, inciso XLVI, da CR (“a lei regulará a individualização da pena”). Tão importante é o princípio da individualização da pena que, nas acreditadas palavras de Alberto Silva Franco, não tem o “legislador ordinário possibilidade de tangenciá-lo, estruturando lei que não dê ao juiz nenhum espaço para o processo de individualização da pena”1.

Ocorre que, por não se encontrarem esses artigos (41 CPP e 29 CP) incorporados à Lei no 8.429/1991, o sentido lógico que exprimem não raro deixa de ser observado pelos autores da ação de improbidade. Com efeito, é corriqueiro na vida do magistrado se deparar com ações em que as condutas são descritas como se guardassem igual natureza, como se todos tivessem praticado a conduta ilícita de modo uniforme, homogêneo, em absoluto desdém do art. 5o, inciso XLVI, da CR, embora possam ser réus na ação de improbidade os agentes que constam do art. 1o e seu parágrafo único, do art. 2o e do art. 3o da Lei no 8.429/1991, sendo que, em regra, um agente é o autor do ilícito e os outros são partícipes.

Naturalmente que pode haver ato ímprobo em que a acusação genérica se faz necessária porque, ainda que no plano lógico seja incrível a possibilidade de que todos os acusados tenham praticado a mesma ação, muitas vezes, no caso concreto, as circunstâncias que envolvem as condutas se mostram tão intrincadas, tão multifacetadas, que torna-se inviável distinguir com clareza a conduta individualizada dos réus.

Eugênio Pacelli, respeitado autor de obras de processo penal, ao comentar os artigos 41 do CPP e 29 do CP, leciona:

“Assim, quando se cuidar de imputação de autoria e também de participação, distinguindo-se uma e outra modalidade pelo critério formal-objetivo, segundo o qual ‘somente o autor realiza a conduta típica. A atividade do partícipe não é típica em si mesma’2, é preciso que a peça acusatória delimite, com precisão, quais seriam as ações praticadas pelos autores e aquelas realizadas pelos partícipes (…).

É claro também que mesmo tratando-se de autoria, a própria execução da empreitada delituosa pode comportar diversas ações distintas, embora todas elas componham o núcleo da conduta principal, final. Assim, na hipótese de roubo a instituição bancária, por exemplo, será também autor do fato a pessoa que, embora não adentrando no estabelecimento para a subtração do dinheiro, esteja prévia e estrategicamente aguardando os demais para a fuga do local do crime. Se a peça acusatória, então, imputar a todos os agentes a ação de ter ingressado no recinto e dali subtraído certa quantia em dinheiro, mediante violência, corre-se o risco da absolvição daquele autor que, embora não tenha assim atuado, realizou também atos de execução diversos dos demais, mas compreendidos no núcleo da atividade criminosa (fuga eficiente).

O que deve ser observado, pois, é a exigência de individualização da conduta, até mesmo porque, segundo o disposto no art. 29 do CP, os autores e partícipes incidem nas penas cominadas ao crime na exata medida das respectivas responsabilidades”3.

A matéria é de fundamental importância porque, a teor do que dispõe o art. 12 da Lei de Improbidade Administrativa (LIA), as penas são cumulativas ou não, mas, por imperativo lógico, ainda que a Lei no 8.429/1992 não explicite nem tenha incorporado o disposto no art. 41 do CPP, e no art. 29 do CP, devem ser aplicadas de forma individualizada. Isto é, na aplicação das sanções previstas na LIA, ao magistrado cumpre ver com atenção tanto a conduta ilícita praticada pelo autor quanto a conduta ilícita praticada pelos partícipes, sob pena de impor igual penalidade a réus que têm responsabilidades diferentes.

Impende consignar que, na aplicação das penalidades preconizadas pelo art. 12, parágrafo único, da Lei no 8.429/1992, o magistrado deve considerar “a extensão do dano causado, assim como o proveito patrimonial obtido pelo agente”, ou seja, ao operar a dosimetria da pena, deverá considerar a gravidade do ato ímprobo, o elemento subjetivo (dolo ou culpa), a extensão do dano, bem como o proveito patrimonial obtido pelo agente acusado, podendo, a cominação da pena, se dar de maneira cumulativa ou não, o que, mais uma vez, denota a importância da individualização da pena.

Ainda discorrendo sobre a indispensável função do art. 41 CPP e do art. 29 CP, pontuo que o caput do art. 10 da LIA prescreve que as ações e omissões, dolosas ou culposas, configuram improbidade administrativa. A conduta, sob o ângulo da omissão, desde que inescusável, deve ser compreendida sob a perspectiva da culpa grave ou da culpa consciente, compreensão que refletirá na cominação da pena. Ora, não é correto aplicar a pena de perda da função pública e/ou a suspensão dos direitos políticos, as duas penas mais radicais e rigorosas da Lei da Improbidade, ao autor e aos participes do ato ímprobo, sem considerar o elemento subjetivo presente em cada um deles (culpa grave, culpa consciente ou dolo).

Na hipótese de se vir a sancionar com a suspensão dos direitos políticos e/ou com a perda do cargo ou da função pública, castigos duros, eloquentes, viscerais, fica por demais evidente que, para sentir-se seguro e se ver no domínio pleno dos fatos, a legislação ou mesmo sua exegese deveriam exigir do autor da ação que descreva analiticamente a conduta individualizada dos imputados, pressuposto para que se possa atender ao preceito constitucional que determina a individualização da pena.

É de se pontuar que Superior Tribunal de Justiça (STJ), no AgInt no REsp. no 1.572.616 MT 2015/0309168-34, no que diz respeito à suspensão dos direitos políticos, firma entendimento no sentido de que a pena de suspensão dos direitos políticos nas condenações por ato ímprobo, por ser a mais drástica das penalidades prescritas na Lei no 8.429/1991, deve ser aplicada com extrema prudência, pelo que se deve analisar, sempre, a gravidade do ato ímprobo à luz dos cânones hermenêuticos da razoabilidade e da proporcionalidade.

A jurisprudência daquela Corte, que já conta com outros precedentes5, tem advertido que “a suspensão dos direitos políticos constitui medida de exceção, só se justificando em hipóteses restritas, especialmente quando guarda relação com atividade político partidária”. De qualquer modo e em qualquer situação, pontua o STJ, “o magistrado, ao sentenciar, deve considerar a gravidade do caso e não as funções do acusado”6. Portanto, em se tratando de suspensão dos direitos políticos, que praticamente retira do sancionado sua condição de cidadão, o ato ímprobo deve ser tão grave quanto gravosa é a sanção, sob pena do STJ admitir a revisão da penalidade.

No que tange ao art. 11 da LIA, o magistrado deve ainda mais afiar a lâmina de sua inteligência ao aplicar a norma. É que as regras insertas nesse artigo dizem que “considerada a gravidade das sanções e restrições impostas ao agente público, deve ser realizada cum granu salis, máxime porque interpretação ampliativa poderá acoimar ímprobos condutas meramente irregulares (…) razão pela qual a ilegalidade só adquire status de improbidade (…) quando coadjuvadas pela má intenção do administrador”7. Em outras palavras, o dolo genérico exigido, quando se trata de violação do art. 11, não significa que o intérprete está autorizado a valer-se da interpretação extensiva.

No tocante à perda do cargo ou da função pública, a segunda penalidade mais gravosa da Lei no 8.429/1991, além do previsto no § único do art. 12 da mesma Lei, se houver dano, cumpre ao intérprete observar o que dispõem o art. 5o, inciso XLVI, e o art. 93, inciso IX, ambos da Constituição, c/c o art. 92, inciso I, “a”, e com o art. 29, ambos do CP, mais o art. 41 do CPP.

Cuidam o art. 93, inciso IX, da Constituição, e o art. 92, inciso I, “a”, do CP, da fundamentação racionalmente motivada da decisão judicial. À luz do Código Penal, a perda do cargo ou função pública, em sendo efeito da condenação, deve vir embasada com elementos idôneos de convencimento e com fundamentação específica. No tocante à Lei de Improbidade, tal como na lei penal, compreendo que há necessidade do magistrado adotar fundamentação específica, pelo que, a meu inteligir, é defeituosa a decisão que decreta pena de perda da função pública fundamentada em referências genéricas. Em síntese, mesmo que se trate de improbidade, a fundamentação deve ser específica e tem que apontar elementos que, de tão graves, autorizam a grave decretação. “A determinação da perda do cargo ou da função pública, em razão de condenação criminal, com exceção feita quanto ao crime de tortura, não é automática, demandando fundamentação específica”8.

O Desembargador Cássio Salomé, ao votar na Apelação Criminal no 1.0216.10.005425-5/001-TJMG, atuando como revisor, consigna que:

“(…) a perda do cargo, como efeito específico da condenação, não é decorrência automática da condenação, necessitando de fundamentação idônea para ser mantida. A sentença deve ser lida em sua totalidade e não em capítulos, sendo devida a manutenção da decisão que determina a perda do cargo se a fundamentação da sentença demonstra a necessidade de tal medida. (…) O dever do juiz motivar suas decisões é regramento constitucional que pressupõe a verificação da racionalidade do julgador para a tomada de suas deliberações, permitindo o prudente controle. A imposição de sanção penal exige específica, clara e coesa fundamentação, não podendo a pena ser estabelecida com base na compreensão ou interpretação do conteúdo que compõe os fundamentos da sentença.  A perda de função pública deve ser devidamente fundamentada pelo prolator da sentença, que demonstrará os motivos pelos quais chegou a essa conclusão, não podendo ser tida como automática”.

Não trago à lume qualquer novidade, apenas sustento que a perda do cargo ou função pública na ação de improbidade, assim como no campo criminal, deve vir ampara por motivação específica. É o que preconiza o art. 93, inciso IX, da CR, c/c o art. 92, inciso I, “a”, do CP, segundo os quais, em se tratando de perda do cargo ou função pública, por ser efeito específico da condenação, deve ser motivadamente declarada, eis que funciona como garantia da atuação imparcial, do devido processo legal e secundum legis (sentido lato).

No que tange à suspensão dos direito políticos, também não suscito nada de novo, apenas pugno, a toda força, que o disposto no art. 5o, inciso XLVI, da CR, demanda que os artigos 29 do CP e 41 do CPP, de algum modo, sejam considerados pelo autor e pelo magistrado nos processos regidos pela Lei da Improbidade Administrativa, eis que ao legislador (porque não dizer também ao intérprete) é vedado tangenciar o princípio constitucional que determina a individualização da pena. Magis aequo!

Notas

1 Franco, Alberto Silva. Crimes Hediondos, 3a ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994, p. 344.

2 Ramos, 1996, p. 62.

3 Pacelli, Eugenio. Curso de processo penal, São Paulo, Atlas, 2014, p. 169.

4 Publicado em 26/06/2018.

5 REsp. no 1.228.749/PR. Relator Ministro Og Fernandes; AgReg no REsp. no 124.939/SP. Relator Ministro Herman Benjamim.

6 AgInt no REsp no 1.572.616/MT. Relator Ministro Sérgio Kukina.

7 STJ. REsp. no 937.985/PR. Relator Ministro Luiz Fux. DJe 10/09/2009.

8 HC no 350.661/MG. Relator Ministro Felix Fischer. DJe 14/03/2017.