As cicatrizes orgulhosas do dever cumprido

7 de abril de 2022

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Entrevista em comemoração aos 90 anos de Bernardo Cabral, Presidente de Honra do Conselho Editorial da Revista Justiça & Cidadania e Chanceler da Confraria Dom Quixote

Formado em Direito pela Universidade Federal do Amazonas, Bernardo Cabral foi advogado, delegado, promotor de Justiça, chefe de Polícia, secretário de Segurança Pública, chefe da Casa Civil e procurador do Estado. Aos 33 anos foi eleito deputado estadual e aos 35 deputado federal, cargo no qual, porém, permaneceu por apenas um ano, porque teve o mandato cassado pelo AI-5, em 1968. A vocação para a liderança levou-o mais tarde a tornar-se presidente da OAB, mas a sua maior contribuição à República viria no final da década de 1980, quando com os direitos políticos restabelecidos foi eleito para compor a Assembleia Nacional Constituinte e tornou-se seu relator-geral. Incansável, foi posteriormente eleito senador e serviu ainda o País como ministro de Estado.

Hoje, aos 90 anos, perguntado se pretende escrever um novo livro de memórias, reponde com modéstia que suas histórias “perderam o sabor” com o tempo, mas sabemos que não é verdade, pois é fonte de um conhecimento quase inesgotável sobre as leis, sobre o funcionamento do Estado e sobre a natureza do povo brasileiro. Não é à toa que nunca deixamos de ouvi-lo sobre os principais acontecimentos do País.

Nessa breve entrevista, ele presenteia nossos leitores com sua visão lúcida e contundente sobre o atual momento político do Brasil.

Revista Justiça & Cidadania – O senhor tem uma carreira notável, com uma longa lista de serviços prestados ao País. Ao chegar aos 90 anos e olhar para trás, o que lhe dá mais orgulho?

Bernardo Cabral – O que me dá mais orgulho são as cicatrizes orgulhosas que carrego comigo, do dever cumprido, em qualquer dos órgãos que estive à frente, notadamente a Presidência da Ordem dos Advogados do Brasil (1981-1983) e a Relatoria-Geral da Constituição da República Federativa do Brasil (1987-1988).

JC – O senhor conhece como poucos nosso País. Sente orgulho de ser brasileiro? O que gostaria que fosse diferente no Brasil?

BC – Sinto orgulho em ser brasileiro, mas gostaria que algumas coisas fossem diferentes em nosso País. Detenho-me apenas em duas: a liberdade de imprensa e a falta de vergonha de quem compõe o establishment, salvo as exceções de praxe. Amplio o comentário sobre a liberdade de imprensa porque é difícil encontrar um governo que tenha por ela apreço. A prova maior – e não é por acaso – é que as ditaduras sempre controlaram a imprensa, através da censura. Por essa razão, em recente entrevista à Justiça & Cidadania enfatizei que ‘falta realizar a Constituição Federal de 1988’, uma vez que ela contém dispositivo que veda a censura e, de vez em quando, esta surge de forma oblíqua. Tenho dito e repetido que com uma imprensa amordaçada, maculada pela censura, a democracia não subsiste. E mais: será sempre preocupante viver em uma nação acuada, na qual o medo prevalece sobre a esperança, transformando-a em frágil aspiração em trânsito para o desencanto.

JC – A sociedade brasileira, ao longo da história, reconhece o papel que a OAB desempenha para o bem da democracia no País. O senhor já foi nosso bâtonnier. Como acredita que deve ser conduzida a relação da Ordem com os poderes constituídos, com a imprensa e com as demais entidades da sociedade civil?

BC – Cada presidente tem o seu estilo. Só que a OAB é maior do que qualquer dos seus presidentes e, por essa razão, ela não professa nenhum credo político ou religioso. Durante minha gestão, procurei exercitar o diálogo com os poderes constituídos sem qualquer tipo de adesismo. Ao contrário: minha atuação na Presidência só podia ter – e teve – como albergue o respeito ao primado do direito inalienável da pessoa humana, eis que, amiúde, pugnei pela predominância da lei sobre o poder arbitrário. Aliás, foi logo ao início dela que caiu sobre os meus ombros o terrível e brutal episódio da bomba no Riocentro e, jamais, a OAB desistiu de lutar pelas eleições diretas e pela convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Foi a própria que desfraldou a bandeira da saída do País da excepcionalidade institucional para o reordenamento constitucional até atingir a vitória, sem qualquer concessão.

JC – Vivemos um instante de polarização política e ideológica que tende a se acirrar com o avançar do calendário eleitoral. Qual recomendação o senhor daria ao atual presidente da Ordem e aos chefes dos Poderes nesse momento sensível da história nacional?

BC –  Da minha parte, não há como fazer recomendação a um presidente da OAB, pois quem nela for o timoneiro terá, inevitavelmente, a responsabilidade de mantê-la, na sociedade brasileira, como exemplo maior de confiança e respeitabilidade, pronta a lutar pela liberdade, único suporte que dá dignidade à vida humana. Quanto aos chefes dos Poderes, nenhuma recomendação, mas tão somente um alerta. Cuidado. O poder é efêmero. Não dura para sempre. E, quando ele termina há, como costuma acontecer, alguém à espreita para salientar aquilo que o espera: o cadafalso da opinião pública.

JC – Qual é a sua visão a respeito do fenômeno das fake news?

BC – A minha visão é a da indignação, receoso de que a sociedade civil e o Estado não disponham de meios capazes de enfrentar essa disfarçada forma de terrorismo. O que se torna deplorável, ao máximo, é que, banalizada, passa a integrar o dia-a-dia da comunidade brasileira. E o caos se instala…

JC – As últimas eleições da OAB ficarão marcadas na história como aquelas em que pela primeira vez as mulheres vieram a metade dos assentos do Conselho Federal. Qual é a sua opinião a respeito?

BC – As mulheres na OAB jamais serão pioneiras do nada ou desbravadoras do inútil. Tenho conhecimento de que o Presidente José Alberto Simonetti – com a longa experiência de conselheiro federal e secretário
-geral da Instituição – já declarou a sua alegria pela vitória de cinco mulheres nas presidências estaduais e que o Conselho Federal aceitará todas as demandas que forem levadas à Comissão da Mulher, na qual as suas integrantes – a meu juízo e de forma elogiável – serão surdas às influências estranhas, não compartilhando com a prepotência, sem medo dos poderosos e indiferentes à omissão, esse subproduto do nada e do não.