Competência da Justiça do Trabalho para liberação do FGTS

9 de novembro de 2021

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Restou sedimentada, desde a Emenda Constitucional nº 45/2004, a competência da Justiça do Trabalho, tanto em procedimentos de jurisdição voluntária, quanto na contenciosa, para a liberação dos depósitos do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS).

Nesse sentido, fiz a proposta de enunciado, que foi aprovado pela sessão plenária no XIV Congresso Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Conamat), realizado em Manaus (AM), em 2008, conforme se tem do texto que segue (tese nº 8): “Compete à Justiça do Trabalho, em procedimento de jurisdição voluntária ou contenciosa, apreciar pedido de expedição de alvará para liberação do FGTS e de ordem judicial para pagamento do seguro-desemprego, ainda que figurem como interessados os dependentes de ex-empregado falecido”.

O entendimento jurisprudencial predominante, antes do advento da Emenda Constitucional nº 45/2004, consubstanciado pela Súmula nº 176 do Tribunal Superior do Trabalho (TST) – atualmente, cancelada – era no sentido de que a Justiça do Trabalho não tinha competência para apreciar procedimento de jurisdição voluntária em que empregado pede a liberação do FGTS, porquanto não figuram, como partes, em tal feito, empregado e empregador. O entendimento era aplicado, pelo mesmo motivo, quando o empregado pretendia o pagamento do seguro-desemprego. Tal verbete sumular consignava o seguinte: “A Justiça do Trabalho só tem competência para autorizar o levantamento do depósito do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço na ocorrência de dissídio entre empregado e empregador”.

O fundamento utilizado baseava-se no que dispunha o caput do art. 114 da Constituição Federal que vigorava, antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, com a seguinte redação: “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos municípios, do Distrito Federal, dos estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”. O entendimento era, portanto, no sentido de que a competência da Justiça do Trabalho se limitava aos feitos em que figuravam como partes trabalhador e empregador e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma prevista na lei.

Em face da alteração do disposto no art. 114 da Constituição pela reforma do Poder Judiciário ocorrida em 2004, o entendimento jurisprudencial, principalmente em razão do estabelecido no inciso I do referido dispositivo constitucional, passou a ser no sentido de admitir a jurisdição voluntária e a contenciosa para a liberação do FGTS, ainda que não figurassem, como partes, empregado e empregador.

A alteração do entendimento jurisprudencial se consolidou com o julgamento do processo de incidente de uniformização de jurisprudência nº 619872/2000 pelo Pleno do TST, quando houve o cancelamento da citada Súmula nº 176. Isso porque o enfoque da competência material da Justiça do Trabalho deixou de ser subjetivo, em que se levava em consideração, para critério de sua fixação, principalmente, figurarem os sujeitos do contrato de trabalho – trabalhador e empregador – como partes nos feitos a serem apreciados, para ser objetivo, no qual considera o objeto, a existência de relação de trabalho subjacente, para a estipulação da competência.

Assim, deste acréscimo da competência, deixou-se de lado a ideia de que a Justiça do Trabalho deve processar e julgar, apenas, lides de ordem exclusivamente trabalhista entre trabalhadores e empregadores, sendo estes e o litígio definidos e previstos na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), passando a ser competente para julgar quaisquer controvérsias atinentes à relação de trabalho. Seguindo tal orientação, passou-se a entender que pode postular, em nome próprio, indenização por danos materiais e morais, não só o trabalhador, mas também os dependentes de trabalhador falecido. Também, passou-se a ter que é competente a Justiça do Trabalho para julgar ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho. Assim, não se observa mais o direito material discutido para a fixação da competência desta Justiça Especializada, podendo ser ele solucionado pelo Direito Civil e não exclusivamente pelo Direito do Trabalho. Também não se observa mais se figuram, como partes, empregado e empregador, podendo ser outros sujeitos.

Nesse sentido o Ministro João Oreste Dalazen, no acórdão de sua lavra no processo de incidente de uniformização de jurisprudência acima citado, faz o seguinte registro: “Entendo que, presentemente, inscrevem-se na competência da Justiça do Trabalho, ao revés do que sucedia antes (por falta de permissivo legal e constitucional): a) os dissídios interobreiros, a exemplo do que se passa, às vezes, entre os empregados que celebram contrato de equipe, a respeito de salário; b) os dissídios interpatronais sobre obrigação que decorre do contrato de emprego, tal como se verifica na lide entre o empregador sucessor e o sucedido, ou entre o empregador subempreiteiro e o empreiteiro principal (art. 455 da CLT); c) quaisquer outras lides e a propósito de direitos e obrigações que decorram da relação de emprego, mesmo que não se estabeleçam entre empregado e empregador, como dissídio sobre a complementação de aposentadoria entre empregado e entidade de previdência privada fechada instituída pelo empregador, quando a complementação de aposentadoria não é criada pelo empregado”.

A missão constitucional da Justiça do Trabalho passou, desde a Emenda Constitucional nº 45/2004, a ser, então, a solução de todas as controvérsias decorrentes da relação de trabalho, independentemente da natureza do direito material a ser examinado. Isso se dá porque a Justiça do Trabalho é o ramo do Poder Judiciário que está mais apto para solucionar as controvérsias decorrentes da relação de trabalho, conforme se tem do voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Carlos Ayres Britto, relator do Conflito de Competência nº 7.204-1, que definiu a competência da Justiça do Trabalho para julgamento de ação de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho, cujo trecho a seguir é transcrito: 

“Como de fácil percepção, para se aferir os próprios elementos do ilícito, sobretudo a culpa e o nexo causal, é imprescindível que se esteja mais próximo do dia-a-dia da complexa realidade laboral. Aspecto em que avulta a especialização mesma de que se revestem os órgãos judicantes de índole trabalhista. É como dizer: órgãos que se debruçam cotidianamente sobre os fatos atinentes à relação de emprego (muitas vezes quanto à própria existência dela) e que por isso mesmo detêm melhores condições para apreciar toda a trama dos delicados aspectos objetivos e subjetivos que permeiam a relação de emprego. Daí o conteúdo semântico da Súmula 736, deste Excelso Pretório, assim didaticamente legendada: “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores”. 

No mesmo sentido, quando fixa a competência da Justiça do Trabalho para julgamento da matéria em exame, foi feito o registro pelo Ministro João Oreste Dalazen no julgamento do incidente de uniformização de jurisprudência nº 619872/2000, antes referido, a seguir transcrito: 

“De resto, se há um segmento do Poder Judiciário Nacional especializado para dirimir quaisquer pretensões cuja fonte seja uma relação de emprego, espécie da relação de trabalho, não seria razoável que o equacionamento de tal pleito fosse confiado à Justiça Federal”.

Inegavelmente, o pedido feito por empregado com objetivo de liberar o FGTS e pagar o seguro-desemprego decorre da relação de trabalho, porquanto o direito a tais parcelas não haveria se não tivesse existido o contrato de trabalho. Sendo tal pedido feito em procedimento de jurisdição voluntária, ou contenciosa, em que não figuram, como parte, o empregador, certo é que a vinculação com o contrato de trabalho persiste. Por isso, considerando que, para a fixação da competência da Justiça do Trabalho, desde a Emenda Constitucional nº 45/2005, deixou de ser adotado o parâmetro subjetivo, ou seja, deixou de ser levado em conta que os sujeitos contrato de trabalho devem figurar com partes para que a competência para a apreciação do feito seja da Justiça Especializada Trabalhista, passando a adotar-se a categoria objetiva, no que se refere ao objeto da lide – pedido e causa de pedir – quanto à sua vinculação à relação de trabalho, pouco importa que, no procedimento de jurisdição voluntária ou contenciosa, para que seja estabelecida a competência em razão da matéria, não figure como parte o empregador, mas, sim, apenas, o empregado e, ainda, como interessado, a Caixa Econômica Federal ou o órgão competente do Ministério da Economia, conforme a hipótese (liberação do FGTS ou pagamento do seguro-desemprego.

A competência da Justiça do Trabalho para a apreciação de procedimento de jurisdição voluntária ou contenciosa, para liberação do FGTS pode fundamentar-se, portanto, no inciso I, do art. 114 da Constituição, tal como consta do decidido do acórdão incidente de uniformização de jurisprudência nº 619872/2000, por ser matéria oriunda da relação de trabalho e, também, pode, perfeitamente, ser fundamentada no inciso IX do referido dispositivo constitucional, uma vez que dele consta a palavra controvérsia que significa discussão, debate, dissenso de opiniões.

A fim de que não pairem dúvidas, certo é que, do exame da Lei nº 8.036/1990, e da Medida Provisória nº 946/2020, não se constata qualquer norma estipulando a competência do ramo do Poder Judiciário, para determinar a liberação do FGTS, em caso de controvérsia. Ainda que assim não fosse, tal regramento, ante o estabelecido na Constituição Federal, conforme acima exposto, ser inconstitucional.

Para finalizar, portanto, não resta dúvida de que a Súmula nº 82 do Superior Tribunal de Justiça, de 02/07/1993, tem o entendimento superado pela Constituição Federal.

Notas____________________________

1 https://www.anamatra.org.br/images/conamat/Cadernos_Anamatra_Conamats_site.pdf .

2 Emenda Constitucional nº 45/2004.

3 Julgado em 05/05/2005, publicado no DJU em 26/08/2005, disponível em www.tst.gov.br .

4 Nesse sentido, ver o julgamento proferido no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 503.043-1, pela 1a Turma do STF. Julgado em 26/04/07, publicado no DJU em 01/06/2007, disponível em www.stf.gov.br.

5 Ver o julgamento do Conflito de Competência nº 7.204-1, pelo Pleno do STF. Julgado em 29/06/2005, publicado no DJU em 21/09/2005, disponível em www.stf.gov.br.

6 Processo IUJ nº 619872/00, Relator Ministro João Oreste Dalazen, julgado em 05.05.05 pelo Pleno do TST, publicado no DJU de 26.08.05, disponível em www.tst.gov.br .

7 Processo CC nº 7.204-1, relator o Ministro Carlos Britto, julgado pelo Pleno do STF em 29/06/2005, publicado no DJU em 21/09/2005, disponível em www.stf.gov.br.

8 Processo IUJ nº 619872/00, relator o Ministro João Oreste Dalazen, julgado em 05/05/05 pelo TST, publicado no DJU em 26/08/05, disponível em www.tst.gov.br 

9 De acordo com o Dicionário Aurélio, controvérsia significa: 1. Discussão ou debate regular acerca de assunto literário, artístico, científico, etc.; 2. Contestação, polêmica.