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Conversa sobre processo: Elogio ao art. 942 do CPC O uso saudável da técnica

30 de junho de 2017

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Introdução

Com a promulgação da lei 13.105/15, exsurgiu, no ordenamento jurídico brasileiro, um novo código de processo civil. Dentre as inovações trazidas pela nova ordem processual, no que interessa a este texto, destaca-se a extinção da modalidade recursal embargos infringentes e, de outro lado, a criação da cognominada técnica de julgamento não unânime.

O novo Código de Processo Civil foi editado com o objetivo declarado de dar maior celeridade aos processos judiciais. Nesta direção, podemos citar inovações importantes, como a restrição ao cabimento do agravo de instrumento e a diminuição do número de procedimentos, com destaque para a extinção do processo cautelar, com o objetivo de simplificar o processo e, por conseguinte, tornar mais fluido o seu desenvolvimento.

Nesta perspectiva, a surpresa ficou por conta da introdução de nova técnica de julgamento, quando ocorrer votação não unânime em apelação, ação rescisória e agravo de instrumento (art. 942 e parágrafo 3o, I e II).

A ideia sobre o tema, inicialmente gestada no âmbito da comissão constituída para elaborar o projeto de lei, embrião do novo código, era simplesmente acabar com os embargos infringentes, embora não houvesse unanimidade na comunidade
jurídica a respeito do tema. Como sabido, este recurso, à época, era cabível contra decisão não unânime (art. 530 do CPC de 1973). Sua eliminação representaria, para muitos especialistas, um avanço, em termos de celeridade do processo. A questão, contudo, não era, e ainda não é, pacifica.

A iniciativa de incluir a regra do art. 942 surgiu na Câmera dos Deputados. E na última hora, fruto da pressão de um grupo de deputados.

E qual a razão, no plano acadêmico, da resistência à exclusão desta modalidade recursal do ordenamento jurídico nacional? A nosso ver, a preocupação com a qualidade das decisões judiciais e, por conseguinte, com a segurança jurídica.

Não há dúvida que o processo judicial deve ter duração razoável. O art. 5o, LXXII, da Constituição Federal, nos termos que lhe conferiu a Emenda Constitucional número 45/04, assegura a todos, seja no âmbito administrativo, seja judicial, “a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

A eliminação dos embargos infringentes, sem criar qualquer outro mecanismo de revisão da decisão judicial não unânime, destarte, poderia representar uma reverência do legislador ao princípio da celeridade do processo, na linha do que se propunha o movimento de reforma do ordenamento processual.

O processo judicial, entretanto, não segue apenas o norte que aponta para o princípio, consagrado na carta da república, da razoável duração do processo. A constituição federal também abriga outros princípios, de igual importância, que merecem guarida, e que também devem ser respeitados e prestigiados. A segurança jurídica é um deles.

O processo, sua origem etimológica já o sugere, é uma marcha para frente. Seu avanço regular, contudo, pressupõe o respeito a regras e princípios que o regem, de modo a garantir que o seu resultado final, a sentença que pacifica a relação jurídica em litígio, seja justo. Na era da efetividade, deixou-se de lado o tecnicismo próprio dos tempos em que prevalecia apenas a lógica jurídica científica. Hodiernamente, prevalece o pragmatismo processual. Passadas, por nosso litoral, as ondas (rectius, verdadeiros tsunamis) de Cappelletti, mudaram a geografia de nosso sistema processual e a face do processo civil brasileiro. O processo não deve ser apenas legal, deve ser justo e efetivo. Deve obter a paz social. Em prazo razoável.

Contudo, a posição de prevalência, dada por muitos, a busca cega, sem preocupação com qualidade das decisões judiciais, pelo encerramento da marcha processual, não pode ser absoluta. A máxima de Rui de que “a justiça atrasada, não é justiça, senão injustiça qualificada e manifesta” deve ser invocada com moderação. Processos céleres, bons resultados, estatísticas de tribunais são importantes, mas não são garantia de um processo justo e, por conseguinte, de justiça.

Há contrapontos, que não podem ser relegados a um plano secundário. Os princípios, de status constitucional, que resguardam a segurança jurídica e o contraditório servem como freio e contrapesos ao princípio da celeridade. Imaginar que o processo deva ser guiado apenas pelo ideal de celeridade é como conceber um carro apenas com acelerador.

E, ao que nos parece, a extinção dos embargos infringentes, com a criação, em contrapartida, da técnica de julgamento não unânime, é fruto da combinação conjugada dos princípios da celeridade processual, da segurança jurídica e do contraditório. O legislador, s.m.j., apertou o acelerador, sem se esquecer de pisar no freio, na medida da necessidade. E, a nosso ver, em doses apropriadas (embora sejam necessários alguns ajustes).

Entre extinguir os embargos infringentes e mantê-los, foi criado o art. 942 do Novo Código de Processo Civil.

Lembramos, a propósito, que a maior velocidade que se imprimiu ao julgamento de processos, como resultado de uma política judiciária de gestão da justiça, com a fixação de metas a serem atingidas, aliada, em grande medida, a gigantesca quantidade de processo e o decorrente assoberbamento da máquina judiciária, retiraram dos magistrados, muitas vezes, a oportunidade de maior reflexão sobre as causas sobre sua responsabilidade. E pior, a realidade do cotidiano dos Tribunais mostrou que os magistrados são obrigados, muitas vezes, a se socorrer de seus assessores ou mesmo estagiários para ajudar ou mesmo, fazer em seu lugar, suas decisões, para dar andamento ao processo em tempo razoável. Em consequência, esta circunstância, aliada a outros fatores, criou uma conjuntura em que foram geradas inúmeras decisões ilegais ou mesmo teratológicas, em quantidade maior do que o aceitável, em desprestígio da imagem da justiça e, especialmente, da coisa julgada.

S.m.j., esta conjuntura se tornou solo fértil para surgimento de teorias jurídicas e alternativas legais para remediar as teratologias, fora do alcance do sistema recursal e do âmbito restrito da ação rescisória. A coisa julgada, cuja preservação, mesmo à vista de nova lei, é garantida pela constituição federal, perdeu força. A jurisprudência passou, então, a admitir, em casos extremos, a relativização da coisa julgada. Disseminou-se, de outro lado, o uso da ação rescisória como sucedâneo recursal. Tudo em desprestígio à estabilidade social e à segurança jurídica.

Pensamos que a técnica de julgamento não unânime, ao permitir o prosseguimento do julgamento, com um colegiado ampliado, muitas vezes com a sua interrupção, não só pluraliza o debate, como também permite mais tempo para a reflexão, nos casos em que há divergência de opiniões entre os julgadores, sintoma que recomenda um maior debate sobre o caso, contribuindo, bastante, para a busca de um resultado mais justo para o processo.

As críticas que estão sendo feitas a esta nova técnica decorrem, a nosso sentir, da ausência de experiência no seu manuseio. Acreditamos que a prática dos Tribunais poderá ajudar a aprimorar o emprego da técnica de julgamento não unânime, tornando-a mais efetiva.

Outra possível causa, para a resistência à técnica de julgamento não unânime, já manifestada por diversos magistrados e doutrinadores, seria a falta de estrutura adequada e suficiente de certos Tribunais, cujos órgãos fracionados são compostos por menos de cinco magistrados. Hoje, há mais Tribunais divididos em turmas ou câmaras compostas por menos do que cinco magistrados do que com cinco ou mais. Nos casos em que os Tribunais disponham de órgãos fracionados suficientes para a complementação de julgamento, na forma do art. 942, o aproveitamento desta nova técnica poderá ser melhor, em termos de celeridade. Quanto aos demais, suas respectivas organizações internas poderão mudar, ao longo do tempo, de modo a que possamos extrair melhores resultados desta bem–vinda novidade. O caminho a ser trilhado, s.m.j., portanto é aquele que aponta para o aprimoramento da técnica de julgamento não unânime, ainda que seja no plano legislativo, o que nos parece, sob todos os aspectos, plenamente viável, e não, como defendem alguns, sua eliminação.

As deficiências estruturais de alguns Tribunais não podem servir de obstáculo para a incidência ou como justificativa para a eliminação desta técnica. Devemos nos esforçar para encontrar soluções práticas, que ensejem o seu uso saudável, sem, tal qual na lenda de Alexandre o Grande, precisar sacar da espada para desatar seus nós. Buscar respostas interpretativas adequadas que, ao mesmo tempo que não ultrapassem as fronteiras estabelecidas pelo legislador, deem soluções práticas que viabilizem a técnica como um instrumento de justiça, é o desafio a ser vencido.

Uma sugestão, a ser elaborada, que poderia estar ao alcance de todos os Tribunais, sem que seja necessária reforma legislativa. Os próprios magistrados, que compõem os diversos colegiados, por todo o país, especialmente aqueles sem estrutura para dar continuidade ao julgamento na mesma sessão, poderiam estabelecer critérios internos para autodisciplinar seus julgamentos. P.e., espontaneamente definirem que somente se instaurará divergência no colegiado, caso seja útil para o processo. Aquele que divergir, sem que essa dissonância seja verdadeiramente aproveitável, de algum modo, para o processo, ao invés de votar contrário, acompanharia os demais e ressalvaria seu ponto de vista.

Um exemplo: questões de direito, seja individual ou coletivo, cuja última palavra sempre será dada pelos Tribunais superiores, especialmente nos casos em que já haja precedentes jurisprudenciais de cortes superiores, não ainda sedimentados. A incidência da técnica, em julgamento que trate apenas de questão de direito, pode não se justificar, notadamente se o órgão julgador não dispuser de membros suficientes para continuação imediata da assentada. Neste caso, o colegiado poderia, em consenso, formar unanimidade, ressalvando o voto divergente, seu entendimento.

Salientamos, a propósito, que, no sistema processual vigente, já existem outras vias para se dirimir ou se firmar a jurisprudência sobre questões de direito, não nos parecendo que o debate ampliado, em sede de julgamento sob a regência do art. 942, em um caso individual, possa, verdadeiramente, acrescentar algo útil para realização da justiça.

Quando, contudo, a questão envolver fatos ou interpretação de contrato, cuja definição, a palavra final, caberia ao Tribunal local, imprescindível a ampliação do colegiado. Em princípio, não haverá outra oportunidade para rediscutir o assunto.

Outra sugestão, agora voltada para os Tribunais Superiores, seria a de aplicar no julgamento de recursos, que tenham como tema a violação do art. 942, levando-se em conta as peculiaridades de cada caso, as regras do Título III, referentes às nulidades, em especial os arts. 277 e 283, parágrafo único do CPC.

Aristóteles afirmava que a sabedoria sempre está no ponto médio entre dois extremos. Entre a prodigalidade e a avareza, está a generosidade. Entre a temeridade e a covardia, está a coragem. A autodisciplina do órgão colegiado, com o uso racional e, não compulsório, da técnica, pode ser este ponto médio.

De lege ferenda, poderia ser criada restrição para a incidência do art. 942, na discussão de matéria puramente de direito, restringindo seu emprego às questões de fato e de interpretação de cláusula contratual.

 

Notas_____________

1 A nosso ver trata-se de uma inovação decorrente de um “processo evolutivo”, no sentido drawiniano da palavra. Por esta razão não se pode dizer, propriamente, que a técnica de julgamento não unânime seja o correspondente aos extintos embargos infringentes ou que o tenha substituído. É, s.m.j. ,uma nova “espécie”, como se verá mais adiante

2 Sampaio, José Roberto de Albuquerque, “A Simplificação do Processo”, editora Espaço Jurídico , RJ, 2011, pág 177

3 Em verdade, como lembra Paulo Henrique de Santos Lucon, a ideia desta técnica de julgamento não é propriamente nova. Ernane Fidelis dos Santos, em seu Manual de Direito Processual Civil, 11a edição, SP, Saraiva, pág. 672, nota, já defendia a substituição dos embargos infringentes, por uma ampliação do colegiado sem recurso, o que daria maior celeridade ao processo, à vista da desnecessidade da apresentação de recurso formal, contrarrazões, redistribuição etc.

4 Paulo Henrique dos Santos Lucon, em artigo publicado no conjur, registra que sempre houve resistência a ideia de extinção dos embargos de infringentes dentro da comunidade jurídica, manifestadas em diversas audiências públicas que antecederam a elaboração do anteprojeto de lei por parte da comissão de juristas.

5 Cappelletti, Mauro e Garth, Bryant , “Acesso à Justiça “, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre/1988.

6 registramos que não somos contra a fixação de metas de desempenho para os magistrados. O trabalho de gestão do judiciário realizado pelo CNJ, com a colaboração dos Tribunais por todo o país, é digno de louvor. O que nos motiva a critica é o cumprimento cego destas metas, sem que se dê ao magistrado a oportunidade de reflexão sobre acerca dos casos que julga.

7 Órgãos fracionários compostos por três desembargadores: 1. Tribunal Regional Federal da 1a Região (TRF1), nos termos do artigo 3o, parágrafo 1o, combinado com o 13, II, do seu Regimento Interno (RI);2. Tribunal Regional Federal da 2a Região (artigo 2o, parágrafo 5o, combinado com o 16, III, do RITRF2);3. Tribunal Regional Federal da 4a Região (artigo 2o, parágrafo 4o, combinado com o 15, II, a, do RITRF3);4. Tribunal Regional Federal da 5a Região (artigo 3o, parágrafo 2o, combinado com o 8o, II e III, do RITRF5);5. Tribunal de Justiça do Estado do Acre (artigo 8o, combinado com o 9o, II, a, do RITJAC);6. Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas (artigo 16 do Código de Normas do TJAL);7. Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas (artigo 6o, combinado com o 13, do RITJAM);8. Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (artigo 91, parágrafo 3o, combinado com o 97, II, do RITJBA);9. Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão (artigo 14, parágrafo único, combinado com o 17, II, do RITJMA);10. Tribunal de Justiça do Estado do Pará (artigo 26, I, do RITJPA); 11. Tribunal de Justiça do Estado da Paraíba (artigo 13, combinado com o 16, II, do RITJPB);12. Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco(artigo 17, combinado com o 25, II, a, e o 25-A, II, a, do RITJPE);13. Tribunal de Justiça do Estado do Piauí (artigo 3o, parágrafo 2o, combinado com o 85, I, do RITJPI);14. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Norte, com exceção da Terceira Câmara, formada por 4desembargadores (artigo 14, caput, combinado com o artigo 18, do RITJRN); e15. Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia (“no mínimo três”, artigo 9o, combinado com o 12 e seus incisos, e o 135, I, b, do RITJRO); Órgãos fracionários compostos por quatro desembargadores: 1. Tribunal Regional Federal da 3a Região, com exceção da Primeira e Segunda Turma, compostas por 3desembargadores (artigo 2o, parágrafo 4o, combinado com o 13, II, do RITRF3); 2. Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios(artigo 16, combinado com o 18, I, do RITJDFT); 3. Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (artigo 5o, combinado com o 25, I, d, do RITJCE); 4. Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo(artigo 7o, III, combinado com o 54, II, a, do RITJES); 5. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso — três Desembargadores mais um Juiz convocado — (artigo 20, combinado com o artigo 21, II, a e e, e 21-A, II, a, do RITJMT); 6. Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul (artigos 66 e 67 a e b, do RITJMS); 7. Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina(artigo 4o do Ato Regimental no 2, de 1989, combinado com o artigo 29, II, do RITJSC); e 8. Tribunal de Justiça do Estado de Sergipe (artigo 21); Órgãos fracionários compostos por cinco desembargadores: 1. Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (artigo 12, combinado com o 14, II, do RITJGO); 2. Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais(artigo 9o, VI, combinado com o 36, I e II, e 37, I e II, do RITJMG); 3. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná (artigo 4o, V, combinado com o 89, II, do RITJPR); 4. Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro(artigo 81, parágrafo 1o, combinado com o 6o, II, do RITJRJ); 5. Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul(“até cinco”, artigo 17 e seu parágrafo 1o, combinado com o 19, II, a, do RITJRS); 6. Tribunal de Justiça do Estado de Roraima (artigos 29 e 31 do RITJRR); 7. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (artigos 34 e 35 do TJSP); e8. Tribunal de Justiça do Estado do Tocantins (artigo 8o, caput, combinado com o 10, IV e suas alíneas, do RITJTO); Órgãos fracionários compostos por sete desembargadores: 1. Tribunal de Justiça do Estado do Amapá (artigo 3o, parágrafos 1o e 3o, combinado com o 19, II, a e b, do RITJAP)

8 Dispõe o art. 277. Do CPC: “ Quando a lei prescrever determinada forma, o juiz considerará válido o ato se, realizado de outro modo, lhe alcançar a finalidade.”. Já o art. 283 e seu parágrafo único expressam: “ O erro de forma do processo acarreta unicamente a anulação dos atos que não possam ser aproveitados, devendo ser praticados os que forem necessários a fim de se observarem as prescrições legais. Parágrafo único. Dar-se-á o aproveitamento dos atos praticados desde que não resulte prejuízo à defesa de qualquer parte.”

9 Vide na íntegra o texto em www.conversasobreprocesso.com; “A Técnica de Julgamento Não Unânime”;artigos.

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