Edição

Conversas jurídicas sobre a reestruturação do futebol

30 de agosto de 2022

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Seminário debate os desafios dos investidores e os aspectos jurídicos da Sociedade Anônima do Futebol

Em agosto de 2021 entrou em vigor a Lei nº 14.193, que disciplina a Sociedade Anônima de Futebol (SAF), marco jurídico orientado para a profissionalização da gestão corporativa do futebol brasileiro. Com regras de tributação mais vantajosas e maior transparência em relação aos clubes-empresas, o modelo empresarial autorizado pela nova lei busca transmitir segurança jurídica e aumentar a atratividade dos clubes para os potenciais investidores. 

A primeira associação a trocar seu CNPJ para Sociedade Anônima do Futebol foi o Cruzeiro, em dezembro do ano passado, quando aceitou a oferta vinculante do ex-jogador Ronaldo Nazário. Contudo, as negociações com o pentacampeão se arrastaram para além do prazo previsto e o contrato só foi assinado em definitivo pelo Cruzeiro em abril desse ano. Nesse meio tempo, em março, o Botafogo assumiu o pioneirismo e se tornou a primeira SAF oficialmente vendida no Brasil, após concluir todos os trâmites do processo de aquisição pelo empresário norte-americano John Textor.

Multimilionárias, as duas negociações desen­cadearam o interesse de outros grandes clubes brasileiros, que hoje, em diferentes estágios, discutem a criação de novas SAFs. Movimentações que não tardarão a repercutir nos tribunais e colocarão à prova a “Lei da SAF”. 

Para avançar nesse debate, um ano após o início da vigência da nova lei, a Revista Justiça & Cidadania realizou em São Paulo (SP), em agosto, o I Seminário Reestruturação do Futebol Brasileiro – nova edição do programa Conversa com o Judiciário. Com transmissão ao vivo pelo canal de YouTube do Estadão, e apoio do escritório Galdino & Coelho, o evento reuniu os maiores especialistas sobre o assunto e relevantes players da Sociedade Anônima do Futebol no País, dentre CEOs, consultores e advogados especializados. No meio de campo, dois mediadores de categoria: o Corregedor-Geral da Justiça Federal, Ministro Luis Felipe Salomão, um dos maiores especialistas do País em recuperação judicial; e o Diretor Geral de Esportes do jornal O Estado de São Paulo, o jornalista Robson Morelli.

Pontapé inicial – “Com o profissionalismo vem a segurança jurídica que atrai os investimentos”, comentou na primeira etapa, em painel sobre os aspectos jurídicos da SAF, o Desembargador Luiz Roberto Ayoub, expoente do Processo Civil, do Direito da Insolvência e da reestruturação de empresas. “Tal como foi o início da Lei de Recuperação Judicial, a Lei da SAF também vai ser amadurecida. (…) Uma lei nova chega incompleta, não por ser defeituosa, mas porque nenhuma lei é perfeita. Se fosse utopicamente perfeita, no dia seguinte deixaria de ser, porque as circunstâncias e os fatos da vida se modificam. Obviamente, a leitura da lei não pode ser engessada, sob pena de entregarmos um bem jurídico obsoleto. Por isso há a necessidade, até que esse amadurecimento chegue, de um diálogo entre as fontes normativas”, complementou.

No mesmo painel, após falar sobre a evolução da legislação sobres os clubes-empresa desde a Lei Zico (Lei nº 8.672/1993), revogada pela Lei Pelé (Lei nº 9.615/1998), o Ministro do Tribunal Superior do Trabalho (TST) Douglas Alencar falou sobre as preocupações com os trabalhadores no contexto da SAF. “No caso das dívidas trabalhistas, a lei trouxe uma sacada que reputo genial. Não podemos criminalizar o passado, mas temos uma realidade objetiva que se revela de superendividamento, clubes com quase R$ 1 bilhão em dívidas, algo realmente assustador. O legislador precisava mesmo interferir e o fez de forma muito positiva, encontrou uma solução que, se não foi a ideal, foi a possível, com o pagamento de até 70% dessas dívidas em até seis anos, com uma provisão de receitas vinculadas”.

Participaram ainda do primeiro painel o Presidente da Federação Paulista de Futebol, Reinaldo Carneiro Bastos, que falou sobre a preparação dos clubes paulistas para receber investimentos via SAF; e o Deputado Federal Hugo Leal (PSD-RJ). Para o parlamentar, o debate deixou claro que a linha de trabalho que já está consolidada na jurisprudência para a recuperação judicial pode servir como ponto de partida para a SAF. “Muitos dos conceitos que já estão caracterizados na doutrina da recuperação judicial e do processo de insolvência podem ser absorvidos e utilizados nas SAFs, principalmente em relação às dívidas, sejam fiscais ou trabalhistas”, disse o deputado à Revista em entrevista após o evento.

200 milhões de técnicos – No segundo tempo, o advogado especializado em Direito Empresarial e Insolvência Pedro Teixeira abriu os debates do painel sobre os desafios dos investidores. “O que o investidor quer é segurança jurídica. Todos perguntam: ‘Como é que os tribunais vão entender essa história?’”. Teixeira acredita que até a matéria ser pacificada pelo STJ, os atores das SAFs estarão sujeitos às ações propostas por credores insatisfeitos, sobretudo pelo descasamento que até então havia no Brasil entre os mundos do futebol e do capital privado.

Para o Presidente da SAF Botafogo, Thairo Arruda, o principal desafio é construir entendimentos que possibilitem que as parcerias sejam duradouras. “O valor da proposta financeira é o menor dos problemas, normalmente se chega a um acordo bem rápido em relação a isso. O grande problema é de fato entender se o futsal vai ficar com X ou com Y, de que forma o estádio será usado, como vai ser dividido o espaço, etc. Essa é uma discussão interminável, ficamos meses debatendo cada ponto da relação. É realmente um casamento”, comentou o executivo, que acrescentou: “O estatuto criado nessa primeira compra é basicamente o documento pelo qual será regida a SAF para sempre. Se houver uma sucessão de investidores, os compradores normalmente têm que assumir o que o primeiro investidor acordou. Por isso a primeira compra tem que ser de fato muito cautelosa, para não desequilibrar as partes”.

O CEO do Cruzeiro, Gabriel Lima, aprofundou a discussão sobres os elementos observados para a avaliação financeira (evaluation) dos clubes. “No Brasil temos 200 milhões de técnicos e 200 milhões de especialistas em avaliação financeira de SAFs. (…) Normalmente, o investidor quer fazer seus investimentos sendo discreto, fazendo análises e tomando seu tempo. Em nosso caso, além de termos que negociar com 450 conselheiros, foi amplamente divulgado o memorando de intenção de compra. Cada palavra foi analisada e divulgada pela imprensa sobre o que estava sendo discutido na compra do Cruzeiro. Isso tornou a operação extremamente complexa”, comentou.

Negócios, paixão e geopolítica – O advogado especializado em Direito Desportivo Pedro Trengrouse abriu o leque das discussões ao comentar que o retorno que os investidores buscam no futebol nem sempre é apenas financeiro, podendo envolver questões geopolíticas ou complexas negociações comerciais. “Qual é o retorno do investimento de quem coloca dinheiro no futebol? Trago a pergunta já com um exemplo emblemático. Abramovitch comprou o Chelsea por 140 milhões de libras, investiu 1 bilhão e vendeu por 2,8 bilhões. No final, doou o lucro e não ficou com um centavo. Qual era o investimento que esse cidadão buscava quando investiu nesse clube? Outro exemplo, os chineses compraram o Wolves, da Inglaterra, porque estavam interessados na construção do trem-bala e a cidade do clube era estratégica no projeto. O que eles queriam era ganhar o contrato do trem-bala, o retorno do investimento não tinha nada a ver com o negócio em si”, explicou Trengrouse.

“O futebol oferece um CAC (custo de aquisição de clientes) baixo, engajamento e paixão, e não há como se separar a paixão dos negócios. Fui vice-presidente de futebol do Flamengo na época da reestruturação do clube e fiquei dividido. O Flamengo ia mal no campeonato, mas tínhamos que segurar para não contratar jogadores, porque enxergávamos à frente. Não fiz isso por separar a paixão dos negócios, mas porque sou completamente apaixonado pelo Flamengo e sabia que o melhor para o meu clube era aguentar firme”, derramou-se em sua participação, ainda no mesmo painel, o CEO da consultoria Win The Game, Claudio Pracownik.

Observatório do futebol – “Temos que avaliar continuamente o cenário. A insegurança é ruim para o investidor e para o desenvolvimento desse instituto. É preciso o aperfeiçoamento, seja no campo legislativo, seja pela via judicial, pacificando pontos que ainda são nebulosos. Talvez o principal deles seja a sucessão dos contratos e das obrigações, que precisa ficar bem definida, precisa ficar bem claro o posicionamento judicial em torno desse tema. A SAF vai ampliar o mercado e as perspectivas do negócio chamado futebol. É um momento muito interessante. Que esse seja o primeiro de uma série de encontros para debater esse assunto. Para nós julgadores é fundamental que possamos, fora do ambiente do processo, ouvir quais são as dificuldades e benefícios, onde estão os gargalos, quais são as melhorias possíveis, quais são as interpretações que melhor potencializam a legislação”, comentou, em suas considerações finais, o Ministro Luis Felipe Salomão – Presidente do Conselho Editorial da Revista JC.

Por fim, o Editor Executivo da Revista, Tiago Salles, propôs a criação de um grupo de trabalho para debater a evolução das situações legais e da jurisprudência envolvendo as SAFs. “O Instituto Justiça & Cidadania vem há mais de dez anos organizando encontros de setores da economia e da sociedade civil com o Poder Judiciário, tratando de diversos assuntos. Quero aproveitar e oferecer para o setor do futebol a possibilidade de criação do Observatório Jurídico do Futebol, no qual poderemos reunir não apenas vocês, mas outros atores e autoridades desse universo, para discutirmos regularmente a evolução das SAFs”.

O futebol precisa de um observatório jurídico?

Ministro Douglas Alencar – “Justiça & Cidadania trouxe uma contribuição expressiva ao debate que envolve a melhor compreensão desse novo microssistema da Lei das SAFs. São muito importantes esses think tanks, espaços de reunião de informações para discussão, para que todos possam saber o que se passa efetivamente no universo tão complexo do futebol brasileiro. Temos muitas realidades diferentes. A ideia do observatório vem ao encontro dos objetivos da máxima divulgação e aprimoramento desse sistema”.

Pedro Trengrouse – “É muito importante qualificar o debate sobre o desenvolvimento do futebol enquanto atividade econômica. É fundamental que essas discussões continuem, porque só dessa forma vão se consolidar entendimentos de qualidade. A Lei vai ser aprimorada tanto no processo legislativo quanto na interpretação do Judiciário, é um processo dinâmico de evolução permanente. Conversas que tragam membros do Judiciário e analistas para discutir em campo neutro nos permitem enxergar com muito mais clareza as diversas posições envolvidas”.

Luiz Roberto Ayoub – “Discutimos aquilo que ainda está muito embrionário. Por isso é importante que todos ouçamos e haja uma reflexão. Ouvimos aqui opiniões diversas. Falei em determinado momento que estou pensando ‘à lápis’ sobre alguns pontos, alguns concordam, outros discordam, o que nos leva à conclusão de que temos que amadurecer. O amadurecimento acontece em eventos como esse, com artigos, etc. A proposta de criar um observatório jurídico do futebol é fantástica. Estou dentro! Pode me chamar que faço questão de participar”.

Deputado Hugo Leal – “Estamos há pouco mais de um ano da edição da lei, agora vamos para os debates, que são extremamente positivos, contribuem para a análise do cenário. Estivemos hoje com dois representantes das SAFs e a expansão deles será ainda maior. É bom trazer aqui para conversar o Judiciário, os empresários, o Legislativo, para entendermos melhor a lógica e o que é necessário para o aperfeiçoamento da lei e para a consolidação da jurisprudência”.

Gabriel Lima – “É muito importante começarmos a debater de forma mais ampla, direta e transparentes os penpoints que temos na legislação do SAF, o olhar do investidor e os desafios do Judiciário. Concordo e apoio 100% a ideia”.

O debate completo, você assiste no YouTube: