Crime de Abuso de Autoridade

8 de setembro de 2019

Membro do Conselho Editorial / Professor Titular Emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UniRio)

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A legislação brasileira sobre abuso de autoridade é um indicador marcante de nossa história institucional, desde a sua origem, em 1940 (com o Código Penal), como também na configuração do delito de abuso de autoridade (em 1965). Estas ambas leis, mesmo editadas em períodos políticos autoritários, evoluíram na linha de priorizar a proteção dos direitos individuais, fortalecendo o papel do cidadão na representação judicial, contra os atos de (ir)responsabilidade administrativa, civil e penal, de autoridades constituídas.

A Lei de Abuso de Autoridade (Lei no 4.898, de 9 de dezembro de 1965, com alterações) evoluiu numa linha de resguardar proteção dos direitos e garantias individuais, assegurando inclusive o exercício profissional. Nesta linha, a Lei de 1965 considera abuso de autoridade (ver artigo 5o), quem no exercício de cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar exerce o poder arbitrariamente, assim como proíbe (ver artigo 4o), com tipificações e penalizações específicas, qualquer ato praticado pela autoridade pública que viole as garantias individuais, mas não tipifica os eventos ilícitos praticados pela autoridade constituída.

A Constituição de 1988 reconhece e preserva os direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivos e a consequente legitimidade de qualquer cidadão para judicialmente anular qualquer ato lesivo praticado por autoridade pública constituída ou mesmo delegada (inciso LXXIII, artigo 5o). As leis que sucederam imediatamente à democracia constitucional de 1988 seguiram nestes mesmos parâmetros, muito embora, o Projeto de Lei no 7.596/2017, aprovado no Senado Federal e, recentemente pela Câmara dos Deputados, procurar criminalizar os atos abusivos das autoridades públicas constituídas.

A legislação brasileira, como se verifica, na sua tradição, não se inclina, nem muito menos define delitos ou práticas funcionais ilícitas abusivas das autoridades públicas, no seu sentido lato, ou mesmo daquelas que têm delegação legislativa. Esta postura, na verdade, viola e reverte o princípio da reserva legal, assumindo, na forma de Lei específica, que às autoridades do Estado não é reconhecido praticar crimes juridicamente tipificados como crime de Estado, tendo em vista a natureza democrática do Estado.

Neste sentido, paradoxalmente, o Projeto de Lei no 7.596/2017, em processo de avaliação para sanção ou veto do Presidente da República, pretende converter ocorrências administrativas funcionais penais e civis tipificadas, na vigência do Estado Democrático de Direito, como crime, o que não corresponde à tradição da ordem jurídica brasileira. Na sua integralidade, o Projeto de Lei citado, confere, a determinados atos ilícitos, a natureza de crimes de abuso de autoridade, estejam elas em qualquer nível hierárquico ou âmbito de competência.

Paradoxalmente, diferentemente das leis que vieram (mesmo) dos períodos autoritários, procurando proteger o indivíduo face ao Estado forte, e mesmo imediatamente após a Constituição, este Projeto de Lei tipifica in concreto condutas abusivas, desviantes, como crimes funcionais no momento frágil do Estado. O Projeto de Lei classifica eventuais práticas e condutas de autoridades constituídas como crimes de Estado. Desta forma, o cidadão não apenas espera que as autoridades cumpram a Lei mas identifica os crimes tipificados como crimes de Estado praticáveis pelas autoridades constituídas.

Este Projeto de Lei, encaminhado ao Presidente da República, tem um desvio de origem, porque parte do pressuposto de que as autoridades de Estado, potencialmente, são suscetíveis de serem criminalizadas e sujeitas a penalizações específicas, indicadas no Projeto de Lei. Neste sentido, não sendo vetado o Projeto pelo Presidente da República, estaríamos diante da conversão do abuso de poder da autoridade em crime de Estado, contrariando a teoria dos poderes de Montesquieu, as liberdades individuais de Locke e o contrato social de Rousseau.

Aparentemente, esta medida do Projeto de Lei passa a impressão de um avanço na política legislativa, mas, na verdade, o que se verifica é a tipificação de crimes de abuso de autoridade como crimes de Estado, senão também com o consequente cerceamento do direito judicial de ação dos indivíduos (inciso LXXIII, artigo 5o), como está na Constituição brasileira. Este quadro, não apenas é paradoxal, mas é uma conversão da história dos direitos e das garantias individuais e coletivas no sentido de se presumir que as autoridades constituídas potencialmente podem cometer crimes definidos em Lei como práticas administrativas.

Neste sentido, estamos diante da potencialização de eventuais práticas criminosas do Estado, fugindo à tradição do Estado democrático moderno, que resguarda o direito de autoridades públicas instituídas e do próprio cidadão de acionar os desvios de autoridade. Não faz parte da tradição institucional brasileira a prévia tipificação de atos suscetíveis de concretizar excessos dos agentes do Estado que representam o próprio Estado. Aliás, tipificar um grupo específico de crimes abusivos de autoridade significa permitir espaços vazios (lacunas) para se evitar a criminalização de condutas que estejam fora do circuito criminoso legislado.

Finalmente, temos que reconhecer que a recuperação articulada de um Estado democrático e liberal não pode evoluir numa linha comprometida com a estatização do crime de abuso de poder da autoridade, reconhecendo que a autoridade que investiga e pune ao mesmo tempo pode ser investigada e punida, como pretende o Projeto de Lei no 7.596/2017, onde a autoridade que aparece no pólo passivo da relação jurídica como réu punível teria também poderes para investigar e punir. Esta postura é uma reversão legislativa desaconselhável, principalmente porque é uma ruptura política que desestabiliza a coerência da ordem jurídica, que deve ser preservada pelo Presidente da República, por meio do poder de veto.