Dados e litigância, a experiência do MonitoraPrev

5 de outubro de 2021

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Diante do crescente número de disputas e dos dados consolidados com o uso do processo eletrônico, ferramentas de monitoramento de processos tornam-se essenciais para que se possa dar outros passos rumo à inovação. Vale destacar que a partir de março de 2022 todo o Judiciário brasileiro só receberá processos pela via digital, conforme decidido na 338ª Sessão Ordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Medidas de desjudicialização, entendidas como iniciativas voltadas à resolução de conflitos em sua gênese, e que promovam pacificação social revertendo a judicialização excessiva mediante prevenção de demandas, a partir da identificação dos focos de litigiosidade e encontrando soluções pacíficas com atores do sistema de Justiça, assumem um papel estratégico e fundamental no trato da litigiosidade repetitiva. 

Partindo dessa constatação, a Justiça Federal do Rio de Janeiro desenvolveu o MonitoraPrev, ferramenta que extrai dados dos processos previdenciários e laudos eletrônicos periciais, e exibe, de forma simples e visual, painéis com informações georreferenciadas das demandas e análise comportamental dos atores da Justiça, permitindo mineração e futura predição de dados. Este monitoramento identifica os códigos de identificação de doenças (CIDs) mais recorrentes nas ações previdenciárias e assistenciais, o tempo médio das etapas atinentes às perícias, os percentuais de conciliação e resultados do litígio e – a partir da indexação de indicadores sociodemograficos de desenvolvimento humano, como renda, saúde e escolaridade – ilustra num mapa de calor baseado no CEP do autor, com recorte etário e de gênero, perfil contextualizado dos litigantes. Dados estruturados são, portanto, transformados em informações e exibidos em painéis dinâmicos e visuais aptos a cruzamentos múltiplos de informações para orientar decisões baseadas em evidências. 

A iniciativa integra a Agenda 2030 das Nações Unidas. Indagações sobre o quanto o Judiciário impacta o desenvolvimento permeiam o campo do Direito e Desenvolvimento, e nortearam a edição da Portaria 133/2018, pelo CNJ, resultando na indexação da base de dados com 78 milhões de processos a cada um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). 

A partir da identificação dos temas de maior repercussão nos processos judiciais com base na Tabela Processual Única (TPU), buscam-se estratégias de atuação orientadas pela metas e indicadores da Agenda. 

Nestes três anos de absorção da Agenda 2030, os ODS têm funcionado como importante bússola de priorização para concretização de direitos humanos no Judiciário, deslocando-o de uma eficiência estritamente quantitativa, para uma abordagem qualitativa com foco na efetividade. 

A matéria previdenciária é o tema mais demandando na Justiça Federal e se insere não só no ODS 16, “Paz, Justiça e Instituições Eficazes”, conecta-se aos ODS 3 (saúde), 10 (redução de desigualdades) e 17 (parcerias interinstitucionais). A judicialização de benefícios por incapacidade invoca questões afetas à saúde do trabalhador/segurado, e essa judicialização não pode ser vista de forma descontextualizada das políticas públicas dos entes federativos no cumprimento das suas respectivas metas. 

Os 17 ODS guardam estreita correlação entre si. Essa indivisibilidade, que expressa um todo abrangente e interdependente, impassível de separação sem perda de significado e de sua funcionalidade transversal, reclama ferramentas que conectem dados da judicialização com indicadores de desenvolvimento. 

O benefício previdenciário é, não raras vezes, a única fonte de renda do segurado e de sua família e a privação ou a demora indevida na sua concessão demonstra que as instituições não atuaram de forma eficaz, realçando o papel do Judiciário nas dimensões econômica e de inclusão social que alicerçam o compromisso global. 

Nesse passo, importante esclarecer os porquês dos dados serem fundamentais para a inovação atualmente. Primeiramente, porque vivemos na sociedade da informação e os “dados são o novo petróleo”, como disse Clive Humby, matemático londrino especializado em ciência de dados. A rapidez das transformações provocadas pela tecnologia nos últimos anos está relacionada ao surgimento de grandes conjuntos de dados (big data), ao aumento do poder da computação e à inteligência artificial. Maior quantidade de informações e a melhor qualidade dos dados permitem melhor resultado pelos sistemas computacionais. Os conjuntos de dados são considerados “big data” se tiverem um alto grau de três dimensões distintas: volume (a quantidade de dados), velocidade (a rapidez em que os dados são gerados) e variedade (a diversidade de dados). No Judiciário brasileiro, o machine learning – assim chamado em razão da sua capacidade de aprendizagem com a experiência – é o subcampo mais usado nas dezenas de sistemas de inteligência artificial desenvolvidos: ele ensina um programa de computador a identificar padrões em dados e a aplicar o conhecimento obtido em novos dados. 

O segundo fator decorre de que não basta querer inovar, é preciso ter metodologia baseada em dados para permitir que a inovação seja adequada e efetiva. Dados são a matéria-prima da inovação: eles permitem conhecer onde residem os principais problemas do sistema processual, a partir daí, realizar o planejamento baseado em informações, determinar onde os esforços devem ser concentrados e, ao final, avaliar a eficiência da medida. Estruturar estes dados é importante para permitir que se verifiquem padrões entre os casos e resultados positivos e negativos da judicialização. Conflitos que não deveriam estar no Judiciário o estão assoberbando e há temas relevantes que merecem atenção judicial e não chegam às Cortes. 

Experiências de formas alternativas de resolução de conflitos no âmbito virtual, como a online dispute resolution, só funcionam porque são ambientes orientados a dados. São exemplos, na iniciativa privada, os sites como Ebay e Amazon, que usam um sistema de inteligência artificial que informa os consumidores sobre seus direitos, e, na esfera pública, a plataforma Consumidor.gov, um serviço público e gratuito que permite a interlocução direta entre consumidores e empresas para buscar um acordo em conflitos de consumo, bem como a futura plataforma online de mediação do CNJ. 

O terceiro fator que justifica a essencialidade dos dados decorre de uma constatação sobre a falta de incentivos para que litigantes invistam na solução administrativa ou consensual do conflito e tomem a jurisdição como a primeira porta de acesso à Justiça, razão pela qual é imperioso analisar como o tratamento de dados previdenciários pode contribuir para a prevenção e desjudicialização de litígios. Decisões judiciais possuem capacidade de produção limitada e geram externalidades, na linguagem econômica, pois alcançam diretamente os integrantes da disputa judicial e indiretamente aqueles que estão em situação similar. 

Para que os litigantes, notadamente os eventuais, sejam incentivados à resolução consensual, é preciso que haja uma simetria de informações, ou seja, que ambas as partes em conflito possuam informações sobre todos os elementos necessários para a tomada de decisão, o que lhes permite ter uma visão menos otimista do conflito e mais realista. Nos EUA, a maior parte das disputas são resolvidas extrajudicialmente, e um dos fatores determinantes – além do custo de ajuizar uma ação naquele país ser maior – é a troca de informações prévia entre os litigantes, reduzindo a assimetria e estimulando o acordo. Tal troca é viabilizada por meio das formas extrajudiciais de solução de controvérsias que se baseiam, em boa medida, em dados. 

Com acesso a ferramentas de monitoramento de processos a partir de uma gestão orientada a dados (data driven approach), os atores da Justiça podem calcular melhor as chances de êxito de um futuro litígio, tempo de tramitação processual, índice de perícias favoráveis para a sua patologia e demais custos de transação, elementos que impactam diretamente na decisão de litigar. E de outro lado, municiam os juízes com informações sobre a dinâmica de atuação dos chamados litigantes habituais. Vale lembrar que a ausência de uniformidade nas orientações jurisprudenciais e a recalcitrância dos entes públicos na adoção dos precedentes firmados estimulam a litigiosidade. A incerteza decorrente deste quadro abre espaço para a presença, ora de um otimismo exagerado, típico da racionalidade humana, no qual a ausência de precedentes estáveis dificulta que os advogados tracem um perfil claro do prognóstico da demanda para seu cliente, estimulando a disputa judicial e a chamada “loteria de varas”. Ora, para um cálculo racional por parte dos litigantes habituais sobre possíveis vantagens econômico-financeiras da litigância. 

Ferramentas de monitoramento de processos são, portanto, fundamentais para se conhecer dados da litigância judicial e orientar uma gestão eficiente e inovadora, capaz de aperfeiçoar a prestação jurisdicional. O quadro atual da litigância previdenciária aponta como desafios a necessidade de correlacionar geograficamente focos de litigiosidade e políticas públicas (ou a falta delas), mostrando-se essencial, entre outras mudanças, a integração da base de dados do Judiciário com órgãos de Saúde (DataSus) e Previdência (INSS), incentivo à absorção de entendimentos firmados pelas instâncias administrativas e aos meios consensuais de solução, visibilidade da relação direta entre o déficit de direitos básicos como saneamento, atenção à saúde primária, e os custos transferidos ao Judiciário via excesso de judicialização. O MonitoraPrev constitui um primeiro passo nesse sentido, dados convertidos em informações visuais sobre demandas previdenciárias disponíveis no portal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região.