Mapeamento dos sistemas de inteligência artificial no Judiciário

12 de setembro de 2022

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Para quais tarefas o Poder Judiciário tem utilizado os sistemas de inteligência artificial? Quais são os benefícios deste uso para a sociedade e para a gestão dos conflitos? Os sistemas são desenvolvidos pelas equipes dos tribunais ou pela iniciativa privada? O objetivo de algum destes sistemas é criar robôs juízes?

Estas foram algumas das perguntas que motivaram a segunda edição da pesquisa realizada pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário (CIAPJ), da Fundação Getúlio Vargas (FVG Conhecimento), publicada em abril de 2022. A pesquisa, intitulada “Tecnologia aplicada à gestão dos conflitos no âmbito do Poder Judiciário”, fez um abrangente mapeamento das tecnologias de inteligência computacional/ inteligência artificial e analytics/ business intelligence no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no Supremo Tribunal Federal (STF), no Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Tribunal Superior do Trabalho (TST), nos Tribunais Regionais Federais (TRFs), nos Tribunais de Justiça (TJs) e nos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs). As informações mapeadas incluíram: equipe, aspectos técnicos, base de dados, avaliação e monitoramento.

A utilização de ferramentas tecnológicas tem uma importância significativa no contexto brasileiro, em especial se considerada a necessidade de racionalizar os recursos humanos e financeiros em razão da judicialização expressiva, refletida em mais de 75 milhões de processos em tramitação, dos quais aproximadamente 80% estão em meio eletrônico, segundo o Relatório Justiça em Números 2021, do CNJ.

Na prática, estes processos representam milhões de páginas de documentos de texto, em formato não estruturado, ou seja, desorganizados, e por isso demandam grande esforço humano para tarefas de triagem, análise e tomada de decisão. A inteligência artificial permite desenvolver soluções que organizem as informações presentes em documentos não estruturados e, uma vez feita a estruturação, os dados possam ser usados em sistemas de inteligência artificial de triagem de acervo, classificação de documentos ou suporte a decisões judiciais.

Nesta segunda edição da pesquisa foram identificadas 64 ferramentas de inteligência artificial espalhadas por 44 Tribunais (STJ, STJ, TST, os cinco TRFs, 23 Tribunais de Justiça e 13 TRTs), além da Plataforma Sinapses do CNJ. Estes modelos computacionais, nas suas diferentes fases – em ideação, em desenvolvimento ou já implementadas – podem ser divididos em quatro grupos principais.

Primeiro grupo: uma pequena parcela destina-se a auxiliar nas atividades-meio do Judiciário, relacionadas à administração, objetivando melhor gerir recursos financeiros e de pessoal, e não a auxiliar o magistrado na prestação jurisdicional. Citem-se, como exemplo, no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), o Chatbot Digep, que responde dúvidas dos servidores quanto aos assuntos relacionados à gestão de pessoas; no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), o JUDI Chatbot, que fornece orientação ao cidadão para entrada de ações relacionadas ao Juizado Especial Cível; e no Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT), o AMON, que faz o reconhecimento facial de quem ingressa no Tribunal, a partir de fotografias, visando aumentar a segurança do Fórum.

O segundo e o terceiro grupos englobam modelos computacionais que auxiliam na atividade-fim do Judiciário, ou seja, na prestação jurisdicional.

Segundo grupo: a grande maioria dos modelos destina-se à automação dos fluxos de movimentação do processo e das atividades executivas de auxílio aos juízes, por meio da execução de tarefas pré-determinadas. Estes modelos computacionais dão apoio à gestão de secretarias e gabinetes, fazendo triagem e agrupamento de processos similares, classificação da petição inicial, transcrição de audiências, etc.

São alguns exemplos destes modelos: no STJ, há o Athos faz a identificação e o monitoramento de Temas Repetitivos, assim como há a ferramenta que otimiza a identificação e indexação das peças processuais dos autos originários; no TST, há o Bem-te-vi, que auxilia na triagem; no TRF da 3ª Região, o Julia (Jurisprudência Laborada com Inteligência Artificial), que auxilia na localização de processos sobrestados, cujas decisões devam ser reformadas em função do julgamento do tema de repercussão geral ou recurso repetitivo; no TRF da 4ª Região, há a ferramenta que faz o agrupamento de apelações por similaridade de sentença; no TJ do Amapá, o TIA auxilia na identificação de demandas repetitivas, assim como a ferramenta do TJ da Bahia; no TJ de Alagoas, o Hércules faz a triagem de petições em processos de execução fiscal; e, nos TJs do Acre, Rio de Janeiro e do Distrito Federal, neste nomeada TOTH, há ferramentas que auxiliam os advogados na classificação correta das petições.

Pode-se listar nesse grupo, ainda, o seguintes modelos: no TJDFT, o Horus digitaliza o acervo físico das varas de execução fiscal e faz o reconhecimento ótico dos caracteres da peça processual para identificar os tipos de documento; no TJ de Goiás, o Berna (Busca Eletrônica em Registros usando Linguagem Natural) analisa petições iniciais e verifica se há outros processos com pedidos semelhantes; no TJ do Pará, há a ferramenta que faz migração de processos físicos para o PJe; no TJ do Paraná, o Larry reconhece processos similares que ingressam no estado; no TJ do Rio Grande do Norte, o GPSMED busca identificar, a partir da análise de conteúdo de petições iniciais, o tipo de demanda de processos de saúde pública (tipo de tratamento, medicamento solicitado, tipo de cirurgia e tipo de doença); no TJ de Rondônia, o Peticionamento Inteligente auxilia as delegacias de polícia a enviarem documentos (termo circunstanciado, inquérito policial, etc.) ao PJe; no TJ de Roraima, o Mandamus utiliza inteligência artificial para o cumprimento e certificação de mandados judiciais; no TJ do Rio Grande do Sul, o Grafo transcreve os áudios das audiências e o IA Execução Fiscal auxilia na análise e classificação da petição inicial, tarefa similar, embora não restrita à execução fiscal, à do Sistema de Classificação de Petições Judiciais, do TJ de Tocantins; no TJ de São Paulo, há ferramenta que analisa as guias de recolhimento das custas processuais; e, por fim,  no TRT da 18ª Região (TRT18) há o Sistema Automatizado de Busca Patrimonial, que faz buscas automáticas nos principais convênios, como Infojud, Renajud, CNIB e Censec.

Terceiro grupo: em menor quantidade, há modelos computacionais de inteligência artificial que dão suporte para a elaboração de minutas de sentença, votos ou decisões interlocutórias. São exemplos destes modelos: no STF, o Victor auxilia na identificação da presença de temas de repercussão geral; no STJ e nos TRTs da 8ª e da 9ª Regiões, há ferramentas para auxiliar na admissibilidade dos recursos; no TRF1, o Alei (Análise Legal Inteligente), dentre outras tarefas, pretende associar ao processo judicial em análise julgados anteriores e buscar jurisprudência; no TJ do Espírito Santo, o Argos, e no TJ da Paraíba, o Midas, auxiliam nas decisões sobre o deferimento ou indeferimento da justiça gratuita; no TJ do Mato Grosso do Sul, a ferramenta de Jurimetria com Inteligência Artificial pretende apontar as tendências de julgamento do órgão baseado nos acórdãos e na jurisprudência; no TJ de Pernambuco, o ELIS realiza a triagem das petições iniciais dos processos de execução fiscal e, se não houver inconsistências, elabora automaticamente a minuta e a encaminha para a conferência do magistrado; e, por fim, no TJ de Santa Catarina e no TRT da 9ª Região (TRT9) há ferramentas para incrementar a busca de jurisprudência, como o Magus trabalhista.

Quarto grupo: finalmente, há iniciativas relacionadas a formas adequadas de resolução de conflitos, em que se usam informações de processos similares para auxiliar as partes na busca da melhor solução. Como exemplo, cite-se, no TRT da 4ª Região, o ICIA (Índice de Conciliabilidade por Inteligência Artificial), que estima a probabilidade de o processo ser conciliado no estágio em que se encontra, tarefa similar à desempenhada pelo Concilia JT, do TRT da 12ª Região.

Os dados da citada pesquisa deixam claro que nenhum dos sistemas de inteligência  artificial é capaz de usar hermenêutica para a interpretação das palavras de textos legais, nem elabora argumentação jurídica ou faz a tomada de decisão. Mesmo nos modelos computacionais que auxiliam na elaboração de minutas com conteúdo decisório, a tarefa da máquina se limita a identificar, com base na inteligência de dados, temas ou fundamentos presentes nas peças, buscar jurisprudência e sugerir decisões simples como de gratuidade de justiça, sendo todos os resultados sujeitos à supervisão do juiz. Em suma, as máquinas são capazes de utilizar a inteligência de dados, mas não a consciência hermenêutica própria do raciocínio humano.

Portanto, os projetos de inteligência artificial do Judiciário brasileiro, em ideação, em desenvolvimento ou já implementados estão voltados à administração do fórum, ao apoio à gestão de gabinetes e a dar suporte para a elaboração de despachos e decisões.

É assim que se pode afirmar que, no estado da técnica atual, não existe tecnologia capaz de substituir juízes por robôs na tomada de decisões jurisdicionais no Brasil. A definição de juízes robôs se refere a máquinas aptas a tomarem as principais decisões em processos judiciais, sem revisão por um juiz humano. 

O levantamento revelou também que 91% das iniciativas de inteligência artificial no Judiciário é produzida por equipes internas, sem participação de universidades ou da iniciativa privada. Isto revela o crescente trabalho que vem sendo desenvolvido pelas áreas técnicas dos tribunais. Por outro lado, exige atenção à formação das equipes, diante da natureza multidisciplinar da inteligência artificial, bem como que juízes se qualifiquem no assunto.

A próxima etapa da pesquisa, já em andamento, vai aprofundar o estudo de aspectos práticos de diversos destes sistemas de inteligência artificial, verificando as etapas do funcionamento, efeitos, dificuldades e desafios de treinamento, detalhes sobre a avaliação e auditoria dos sistemas, interoperabilidade entre eles e propriedade intelectual.

Notas_________________________

1 O relatório da pesquisa está disponível para consulta pública no site do CIAPJ – FGV Conhecimento: https://ciapj.fgv.br/sites/ciapj.fgv.br/files/relatorio_ia_2fase.pdf

2 MARRAFON, Marco Aurélio. “Filosofia da linguagem e limites da IA na interpretação jurídica (parte II)”. Conjur, 8/6/2020. Disponível: https://www.conjur.com.br/2020-jun-08/constituicao-poder-filosofia-limites-ia-interpretacao-juridica-parte-ii