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Prescrição intercorrente e execução fiscal

5 de abril de 2001

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Não se tem dúvida quanto a que o fator tempo exerce  iniludível influência na construção jurídica. Em pódio de prescrição, especialmente, ele reveste atributo de substancialidade ampla, pois há interesse da sociedade em conferir juridicidade a  situações fáticas que, por seu intermédio, se podem prolongar de forma indesejável.

Duplamente o tempo influi nas relações jurídicas. Se o sujeito desfruta de certo direito durante determinado período, a lei lhe defere a faculdade de integrá-lo ao seu patrimônio, caso em que a prescrição se diz aquisitiva. Se, ao contrário, deixa de utilizar os remédios protetivos do direito, com omissão até mesmo quanto ao próprio exercício deste, verificar-se-á , em momento próprio, a ocorrência da prescrição extintiva. Assim, ambas as modalidades buscam punir os inativos, com “sacrifício da justiça em favor da ordem”, no dizer abalizado do emérito Professor Arnold Wald .

Colimando o direito  desiderato de obtenção da denominada paz social e  de garantia da segurança jurídica, seria de difícil compreensão admitir-se a possibilidade de existência de eternas discussões em torno de questões, quando já passado lapso temporal razoável. Inicialmente, no entanto, no primitivo direito romano, como adverte Silvio Rodrigues, não existia tal limitação de tempo.Com efeito, “a idéia de prescrição aparece só no direito pretoriano, pois o magistrado vai proporcionar às partes determinadas ações capazes de contornar os princípios do jus civile”. Por isso que, naquela fase, o instituto representava forma de extinguir a ação, afetando, via de conseqüência, o próprio direito material. Hodiernamente, contudo, não pode mais haver dúvida quanto a que a fluência inativa do prazo da prescrição não extingue a ação, pois esta se caracteriza como direito autônomo, instrumental, subjetivo, formal, acessório do direito substantivo. Transcorrido o lapso de tempo aplicável, caracteriza-se o fenômeno da prescrição, que acarreta a inevitável conseqüência da perda da exigibilidade do direito do credor. Em outras palavras, ele continuará com o seu direito de ação incólume, mas correrá o risco de não poder, com êxito, exigir do seu devedor o cumprimento da obrigação que lhe era devida e deixou de sê-lo por decurso de prazo, pois a prejudicial da prescrição lhe poderá ser oposta pelo devedor. Com isso a pretensão a que a parte devedora se submeta ao direito da credora se apresentará invariavelmente despida do atributo da exigibilidade, ficando esta última a depender, às inteiras, da vontade daquela de cumprir a obrigação, que já traz em si o defeito de não mais poder ser validamente exigida.

O contexto fático-jurídico

Em regra, o instituto da prescrição se apresenta como matéria submetida ao império da reserva legal, já que o mesmo implica, como antes se mencionou, na  extinção da exigibilidade de um direito, que poderá ser deduzido e exercido através da ação judicial. Portanto, é a lei que  se encarregará de estabelecer certo e determinado prazo, dentro do qual a referida  ação deverá ser ajuizada ou  remédios processuais outros, tendentes a evitar que o prazo fatal flua in albis,  pena de perecimento da referida exigibilidade .

A propositura  da ação de  execução fiscal, quando ainda não expirou o prazo prescricional, ou seja, quando ainda não se consumou e se perfez o vício da perda da exigibilidade do direito, que se busca alcançar em juízo, concretiza e traz à balha o exercício de uma faculdade  essencialmente revestida do atributo de subjetividade, consubstanciada no  respectivo direito autônomo e acessório de ação, acarretando, como conseqüência direta e inarredável, a interrupção do prazo legal exigível à eficácia daquele imediato efeito  que o instituto traz consigo. Tal interrupção se erige, em verdade, em incontestável medida de salvaguarda e proteção, a premiar os que diligenciam em defesa dos seus direitos, razão porque  não se sujeitam às conseqüências advindas do comportamento ínsito na idéia contida na vetusta mas sempre atual parêmia dormientibus non sucurrit  jus.

Todavia, o afastamento do efeito da prescrição pressupõe e exige não apenas  que o credor inicie a ação executiva, mas também que nela atue, incessantemente, durante todo o tempo de seu processo e julgamento. Assim, afigura-se ônus processual do autor-exequente requerer o que for pertinente, tanto quanto promover as diligências que se lhe apresentarem como  necessárias ao objetivo de constrição do patrimônio do devedor, que o mesmo persegue através da ação. Por isso que se, a qualquer momento, se efetivar a inexistência da indispensável e inafastável diligência ou dedicação, através de comportamento processual a caracterizar atitude negligente do autor, relativamente ao prosseguimento ativo e célere  do processo de execução, a  perda da exigibilidade do direito, que a prescrição traz consigo, não poderá restar afastada, pois a  propositura da ação constritiva, razão da interrupção da fluência do prazo fatal, estará  deixando de perseguir seu real desiderato.

De um modo geral, a fluência do referido prazo prescricional encontra-se interrompida em decorrência da propositura da ação, porém isto não significa que a prescrição não se poderá consumar. É que, como variante necessária a que o exequente não se torne negligente, encontra-se em estado de constante alerta o que o magistério da doutrina e da jurisprudência denominam de prescrição intercorrente ancorada na dicção do artigo 174 do Código Tributário Nacional , que dispõe no sentido de que a ação para a cobrança do crédito tributário prescreve em cinco anos, contados da data da sua constituição definitiva,  se e quando ao final de cinco anos não tiver havido qualquer manifestação do credor exeqüente.

Conseqüentemente, não se pode argumentar, exitosamente,  que o autor da ação de execução fiscal não  tenha dado causa ao decurso do prazo da prescrição intercorrente, quando fica claro nos autos que o seu comportamento se cobre do atributo da inatividade  processual, no que concerne ao seu indispensável impulso,  objetivando cobrar o que lhe é devido, ou seja,  visando à satisfação de seu crédito. Nesse aspecto interessa sobremodo notar que, em verdade,  o que importa  à  configuração do referido comportamento omissivo do credor é sempre e sempre  a sua a falta de zelo e atitude desinteressada pela marcha do processo, que ficam caracterizadas quando, passado o prazo legal,  não tiver havido qualquer manifestação nos autos.

Ademais, o art. 40 da Lei nº 6.830/80, nos termos em que foi admitido em nosso ordenamento jurídico, não pode revestir-se do atributo de prevalência necessária a amparar a manutenção do processo em aberto, ad infinitum. Isto porque a sua aplicação há de sofrer os limites impostos pelo artigo 174 do Código Tributário Nacional, pois repugna aos princípios informadores do nosso sistema  de Direito a prescrição indefinida, porque caracterizadora de indesejável situação  de insegurança jurídica. Daí então que, após o decurso de determinado tempo, previsto em lei, sem promoção da parte interessada, deve ter fim a lide, pela via da prescrição, impondo-se a referida segurança jurídica aos litigantes. Ademais, os casos de interrupção do prazo prescricional estão previstos no artigo 174 do CTN, nele não incluídos os do artigo 40 da Lei nº6.830/80, sendo fundamental  sempre lembrar-se a circunstância de que o mencionado artigo se contém em diploma revestido de natureza de lei complementar. Por isso que deve preferir a dispositivo de lei ordinária, que não pode malferir, com êxito, tema já abordado por aquele tipo de diploma legal. Esse o rationale que induz o intérprete à inevitável conclusão de que o processo de execução fiscal não deve ficar paralisado por longos anos (art. 40 da Lei 6.830/80), sem que se caracterize a prescrição intercorrente (art. 174 do CTN).

Entretanto, não se há de concretizar a prescrição intercorrente, em sede de executivo fiscal, quando o credor não tiver tomado conhecimento da determinação judicial de sobrestar o andamento do feito, mesmo que ele permaneça  inerte pelo tempo que for. Isto se dá porque não há de se extinguir o direito processual da parte, pelo efeito da prescrição, por falha do sistema judicial. Em verdade, as partes têm direito subjetivo de serem comunicadas da prática  dos atos processuais, especialmente os que concorrem para confirmar, modificar ou extinguir direitos.

Nesse aspecto, a  jurisprudência do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, orienta no sentido de que o Código Tributário Nacional (art. 174), por ser lei complementar,  há de prevalecer sobre a Lei nº 6830/80, que é lei ordinária. Assim, a suspensão do processo de execução fiscal (art. 40 da Lei nº. 6830/80) há de se compatibilizar com a regra prevista no art. 174, I, do Código Tributário Nacional, de modo a que o débito tributário não se torne imprescritível, quando já em fase de execução.

A orientação da doutrina  também se tem sido no sentido  de que  é de todo inconveniente permitir-se a perpetuação dos interesses em conflito caracterizados por pretensões resistidas. Com efeito, os doutrinadores José Afonso da Silva , Carlos Guimarães, Milton Flaks e Luiz Celso Barros veementemente repudiam a possibilidade da suspensão por tempo indefinido do processo de execução fiscal, que obstaculizaria a incidência do instituto da prescrição. Por mais relevante que seja o direito protegido – a cobrança do tributo – não justificaria, no abalizado magistério desses juristas, a perpetuação e a elisão do princípio da prescrição.

Destarte, tanto no ensinamento da doutrina como no da jurisprudência são significativos os posicionamentos quanto  às iniludíveis inconveniências de tal contendae  perpetuatio.

Do reconhecimento e da decretação

A Carta Política de 1988 exige lei complementar  para a criação de regras de caráter geral, em sede tributária, em que também se inclui o instituto da prescrição. Em atenção ao desiderato dessa regra constitucional, a construção pretoriana nacional  já deixou  assentada orientação no sentido de que o Código Tributário Nacional foi integralmente por ela recepcionado. Daí então a conclusão de que, em se tratando de matéria confiada a norma legislativa especial, que exige processo de elaboração mais rígido do que pretendeu o constituinte para a lei ordinária, hão de ter os dispositivos daquela necessária preferência sobre os desta, sempre que houver conflito entre os de uma e de outra. Portanto, sendo a prescrição instituto que reveste qualidade de direito material, por definição do próprio Código Tributário Nacional,  que, como lei complementar, a regula, força seria convir que  o inciso V do art. 156 desse Digesto há de preferir às regras estampadas nos artigos 128, 219,§5º do Código de Processo Civil e 166 do Código Civil. Justificaria tal posicionamento a circunstância de que a autorizada utilização do princípio da subsidiariedade,  contido nos artigos 109 e 110 do CTN, relativamente a normas substantivas e processuais haveria de ser indubitavelmente posta de lado nos casos em que dito Codex se ocupasse diversamente de institutos semelhante ou, até mesmo, quando desautorizasse sua aplicação .

Por outro lado, Sebastião de  Oliveira Lima e parte da jurisprudência, que o acompanha, defendem orientação no sentido de que a prescrição “extingue não apenas o crédito tributário, mas também, por via de conseqüência, a própria obrigação tributária. Em outras palavras, a prescrição tributária extingue, não apenas a ação que assegura um direito, mas também o próprio direito”. Em razão disso, argumenta-se, então, que, se a decadência, pela qual se perde o direito, pode ser declarada de ofício, também o mesmo se daria com a prescrição, porque, em última análise, transcorrido o prazo fatal, estariam extintos o crédito e a obrigação tributária, vale dizer, o próprio direito, por força do que se contém no §1º do artigo 113 e 156 do Código Tributário Nacional. Entretanto, tal posicionamento não pode, validamente, prosperar, tal como se observa do magistério do eminente Ministro do Supremo Tribunal Federal e, atualmente, seu ilustre Presidente, Ministro Carlos Mario da Silva Veloso, ao advertir, in verbis, que:

“O argumento no sentido de que, por extinguir a prescrição o crédito tributário, e, em conseqüência, a obrigação tributária, não tem a extensão que empresta OLIVEIRA LIMA.

A uma, porque, leciona CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA, no direito privado há corrente doutrinária no sentido de que a prescrição “extintiva ou liberatória conduz à perda do direito pelo seu titular negligente “. Escreve esse notável tratadista.

“Perda do direito, dissemos, e assim nos alinhamos entre os que  consideram que a prescrição implica em algo mais do que o perecimento da ação…Pelo efeito do tempo, entretanto, aliado à inércia do sujeito, é a próprio direito que perece. “

Nem por isso, todavia, essa corrente doutrinária justifica a sua declaração de oficio, a exemplo do que ocorre com a decadência, por isso que “a prescrição é instituída com fundamento em um motivo de ordem pública, mas no interesse privado do favorecido, e, por esta razão, somente pode ser pronunciada a seu requerimento; a decadência é criada não só por motivo, mas no interesse também da ordem pública, e pode ser decretada a requerimento do órgão do Ministério Público, e até ex officio.”

A duas, reconhecemos que a prescrição extingue, em verdade, o crédito tributário e, ipso facto, a obrigação tributária. Entenda‑se: a prescrição reconhecida e decretada. A forma de reconhecê‑la e decretá‑la, buscamo‑la na lei substantiva civil e na lei processual, porque o Direito Tributário, ao cuidar do instituto, não o alterou, expressamente, no particular (CTN, art. 109).

E tanto não o alterou ‑ e aqui a interpretação sistemática do Código Tributário Nacional se impõe ‑ que, ao cuidar especificamente da prescrição, estabeleceu, expressamente, no art. 174, que “a ação para a cobrança do crédito tributário extingue‑se após 5 (cinco) anos”. (art. 173).

Interpretando‑se, assim, em conjunto, os artigos 156, V e artigos 173 e 174, de concluir‑se que a lei tributária não alterou, no particular, o instituto de direito privado. A prescrição atinge também o direito, e, no caso, a própria obrigação tributária, por isso que a todo direito corresponde uma ação, que o assegura (Código Civil, art. 75); ora, não dispondo o direito dessa ação, para assegurá‑lo, não se pode chamar a pretensão de direito. Por outro lado, se é certo que o direito é marcado pela coercibilidade, não seria direito a pretensão que não pudesse ser eficaz.

O CTN, no art. 173, consagra o princípio de direito privado, no sentido de que a decadência “é morte da relação jurídica pela falta de exercício em tempo prefixado “, bem assim reconhece como exato, esse outro principio de .direito privado, no art. 174, que “a prescrição extingue um direito que não tinha prazo para ser exercido, mas que veio a encontrar mais tarde um obstáculo na criação de uma situação contrária, oriunda da inatividade do sujeito.”  Por serem os fundamentos da decadência e da prescrição diversos, o da primeira o “não ter o sujeito utilizado de um poder de ação, dentro dos limites temporais estabelecidos à sua utilização”, e o da prescrição um interesse de ordem pública “em que não se perturbem situações contrárias, constituídas através do tempo”, mas no interesse privado do favorecido, só se o CTN tivesse estatuído, expressamente, regra contrária a que está inscrita no art 166 do Código Civil, seria possível a aplicação do instituto, no campo tributário, de forma diversa daquela vigente, no direito privado.

Noutra perspectiva, considerando-se que o CTN, no art. 174, estabeleceu, expressamente, que a ação para a cobrança do crédito tributário é que prescreve em cinco anos, força é concluir que a lei tributária abraçou a doutrina tradicional que acentua que “a prescrição é a perda da ação atribuída a um direito, e de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dela, durante um determinado espaço de tempo”, ou do “não uso de sua propriedade defensiva, da ação que o reveste e protege” conforme a lição de Clóvis Beviláqua (Teoria Geral do Direito Civil. Liv. Francisco Alves, 21 ed., 1929, p. 370).

Assim, agasalhando o CTN o conceito do direito privado, presente este é que poderiam ser interpretados os art. 165, V, e 113, 1º , a prescrição extingue, em verdade, o crédito tributário e, em conseqüência, a obrigação tributária. Entenda-se, todavia, o que já afirmado: a prescrição reconhecida e decretada, na forma da lei civil e processual (C. C., art. 166; CM, art. 219, § 5º), certo que, em se tratando de direito patrimoniais, vale dizer, as relações jurídicas que tenham expressão pecuária, não pode  o juiz, de oficio decretar a prescrição (Código Civil, art. 166, CPC, art. 219, § 5”)

Destarte, é bem de ver que, não se podendo equiparar, exitosamente, os institutos da prescrição e da decadência, eis que revestidos de natureza jurídica diversa, também não se há de  utilizar os princípios aplicáveis a um para o outro. Se é certo    que, como acima se viu,  somente quando a prescrição for validamente decretada é que haverá falar em extinção da exigibilidade do crédito tributário, menos certo não é  que o suporte legal para a sua validade deverá ser obtido a partir das normas de regência do Código de Processo Civil e do Código Civil, pois, não tendo o Código Tributário Nacional cogitado da possibilidade de seu manejo, de ofício, pelo julgador, certamente  remeteu o tema ao domínio das normas que incidem subsidiariamente, por força de exegese dos artigos 109 e 110 desse último Digesto. Ademais, não se há de olvidar a circunstância de que, enquanto a prescrição despe o direito do atributo da exigibilidade, a decadência o fulmina, obstaculizando, inclusive a válida propositura da ação.

Conclusão

Em face do exposto, advém, então, a inevitável conclusão de que  a aplicação subsidiária e complementar das regras de natureza processual e substantiva, admitida pelo Código Tributário Nacional, se erige em natural conseqüência de não ter sido o tema da prescrição nele regulado, no tocante à possibilidade de seu reconhecimento e decretação, de ofício, por parte do julgador. Assim, pode-se dizer que tal aplicação subsidiária há de ser necessariamente prestigiada, razão por que a matéria estará obrigatoriamente na dependência das regras de regência dos artigos 291,§ 5º do Código de Processo Civil e 166 do Código Civil, que não admitem que o juiz declare, de oficio, a prescrição de direitos patrimoniais, em que se alberga o crédito tributário, impondo-se, destarte, que o interessado manifeste expressamente nos autos seu desejo de vê-la reconhecida e decretada pelo magistrado, como condição inarredável de sua eficácia, inclusive na modalidade intercorrente , em sede de execução fiscal. Por fim, tal posicionamento se afina com o que foi decidido pela primeira seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça nos Embargos de Divergência em REsp 29432-RS, rel. Min. Ari Pargendler.