Edição 9
Crime contra a Ordem Tributária e Procedimento Administrativo Fiscal
5 de julho de 2000
Desembargador do Tribunal Regional Federal/2ª Região
Registra-se, atualmente, divergência quanto à possibilidade de iniciar-se ação penal, antes de concluído procedimento administrativo fiscal, visando à apuração de exigência de crédito tributário, tanto quanto à validade de suspensão do curso da referida ação, bem como do prazo da respectiva prescrição.
Trata-se de interessante e singular situação, eis que, de um lado, poderia se apresentar viável a idéia de que o contribuinte pudesse vir a ser denunciado por crime contra a ordem tributária, antes mesmo de concluído o respectivo procedimento administrativo fiscal. De outro lado, a de que o contribuinte pudesse suportar esse ônus, embora em momento em que ainda se encontrasse valendo-se de direito consubstanciado nos postulados inarredáveis do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, nada obstante, a circunstância de que dito procedimento visa exatamente a apuração da exigência do crédito que se tem por sonegado.
O mister de se saber se o exaurimento do procedimento administrativo fiscal, nos crimes contra a ordem tributária, seria condição indispensável à propositura da ação penal leva necessariamente à verificação da existência ou não de eventual distinção entre o que seja condição de procedibilidade e questão prejudicial.
A condição de procedibilidade tem a ver somente com o processo, não tendo interferência no bem da vida, não se vinculando, pois, ao direito material, ou, ainda, não interferindo no meritum causae. Entretanto, interpretação equivocada e duvidosa do enunciado da Súmula 609 do Supremo Tribunal Federal, que orienta no sentido de que “é pública incondicionada a ação penal por crime de sonegação fiscal”, tem conduzido a se pensar que não haja necessidade de prévia decisão no âmbito administrativo para que se deflagre a ação penal. Todavia, referido enunciado cogita apenas de que não é necessária a representação da Fazenda Pública para o início da referida ação penal. Daí porque incorreto utilizar-se a citada súmula para basear decisão que conclui pela inexistência de questão prejudicial , v.g., a de apurar-se se existe, ou não, tributo devido, com relação a que se verificou a ação delitiva.
Por sua vez, questão prejudicial ,em sede de processo penal, é a circunstância de natureza cível, que condiciona a existência de ilícito penal sub judice. Se o desfecho da questão penal, objeto da respectiva ação, se encontrar na dependência de solução da questão fiscal, o problema terá que ser resolvido necessariamente através da prejudicialidade heterogênea , objeto do art. 93 do CPP. Entretanto, para que isso possa ocorrer, impõe-se tenha sido ajuizada pelo contribuinte a respectiva ação cível, sem o que não poderá o juiz, de lege ferenda, suspender o processo.
A Lei nº 8137/90 redefiniu o tipo penal relativo ao delito de sonegação fiscal, não deixando lugar para dúvida quanto a que se trata de ilícito penal de resultado, para cuja realização se exige necessariamente a existência de tributo devido e não pago, em decorrência de uma das atividades fraudulentas ali mencionadas, clamando-se por presença de dolo, como elemento subjetivo do tipo. Trata-se, pois, de posicionamento legal diametralmente oposto ao do regime da Lei nº 4729/65, que definia o delito em questão como crime formal ou de mera conduta, razão porque, diversamente do que ocorre hoje, desnecessário se afigurava apurar se era caso de tributo devido e não pago em decorrência de comportamento fraudulento de parte do agente. Essa, então, a razão pela qual veio a se pacificar entendimento pretoriano, que culminou na referida Súmula 609 do Supremo Tribunal Federal.
Em face, todavia, da nova orientação legal e com vistas a que não pudessem pairar dúvidas quanto à prévia necessidade de ser apurado o fato representativo do delito, porque já agora se reveste o mesmo do atributo da materialidade, o Congresso Nacional editou a Lei nº 9430/96, prescrevendo que a representação fiscal, para fins penais, relativa aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8137/90, será encaminhada ao Ministério Público após proferida a decisão final na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
Assim, a propositura da ação penal passa a carecer do pressuposto indispensável de verificação de ocorrência de situação fático-tributária, ensejando manifestação definitiva da administração pública. E aí reside especificamente o atributo de condição de procedibilidade indispensável ao processo, muito embora o órgão do Parquet não esteja adstrito ao recebimento de tal decisão final, pois o delito em exame não é do tipo em que se exija representação para que ação possa ser validamente proposta. O de que se trata é apenas de condição de procedibilidade e não de condição de representatividade.
Nada obstante, o Ministério Público propôs a ADIn nº 1571-1, questionando a constitucionalidade do artigo 83 da Lei nº 9430/96. Em sede de provimento liminar, o Min. Carlos Veloso, secundado pelo Min. Marco Aurélio, professou entendimento no sentido de que “os crimes praticados contra a ordem pública- reduzir ou suprimir tributo, art 1º da Lei nº 8137/90- realizam-se mediante as condutas especificadas nos incs. I a V do mencionado art. 1º. Os crimes tipificados no art. 2º da mesma Lei nº 8137/90 são da mesma natureza; é dizer, são crimes de sonegação fiscal: art. 2º, incs. I a V . As condutas inscritas nos incisos dos arts. 1º e 2º, adotados por particulares, tem por escopo sonegar tributo. Penso que a ação penal, em tais casos, não pode ser instaurada enquanto não existir decisão fiscal definitiva, lançamento definitivo.”
A justificar esse entendimento, asseverou Sua Excelência:
“O art. 14, da Lei 8.137/90, estabelecia: ‘Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1º a 3o quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia’.
Esse art. 14, da Lei n. 8.137/90, foi, entretanto, revogado pelo art. 98, da Lei n. 8.383/91. Todavia, a Lei n. 9.249/95, art. 34, restabeleceu a norma do art. 14, da Lei n. 8.137/90:
‘Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n. 8.137/90, e na Lei n. 4.729/65, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia’ (art. 34, da Lei n. 9.249/95).
Sobreveio, então, a Lei n. 9.430/96, que dispôs, no seu art. 83 e seu parágrafo único:
‘Art. 83. A representação fiscal para fins penais relativas aos crimes contra a ordem tributária definidos nos arts.1º e 2º, da Lei n.8.137/90, será encaminhado ao Ministério Público após proferida a decisão final, na esfera administrativa, sobre a exigência fiscal do crédito tributário correspondente.
Parágrafo único. As disposições contidas no caput, do art. 34, da Lei n. 9.249/95, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo Juiz’.
Ora, se não se tem lançamento definitivo, decisão final definitiva, não se tem, ainda, crédito fiscal exigível. O Ministério Público não poderá, então, instaurar a ação penal, bem registrou o Ministro Marco Aurélio.
Reitero que tem-se, com os arts.1º e 2º , da Lei n. 8.137/90, crimes de sonegação fiscal, crimes de sonegação de tributos. As condutas definidas nos incisos dos referidos artigos perseguem a sonegação de tributos…”
Naquela oportunidade, lembrou ainda Sua Excelência que outra questão importante seria a da prescrição penal , concluindo que a fluência do respectivo prazo só se inicia no momento em que o procedimento administrativo fiscal chega ao seu término. É que somente aí nasce para o Estado, tanto quanto para o Ministério Público, o direito de propor a respectiva ação penal, tendo, pois, aplicação o princípio da actio nata. Asseverou, ainda, o eminente Ministro que o art. 83 da Lei nº 9430/96, nada tem de inconstitucional.
Portanto, indeferindo a liminar, o Min. Carlos Veloso deixou assentada tese no sentido de que a ação penal, em casos que tais, não pode, validamente, ser instaurada, enquanto não houver decisão definitiva.
É que, em sede de perda de exigibilidade do direito de punir, só haverá falar em tal situação quando e se transcorrido o prazo da prescrição. Se o Estado ainda não pode exercer o direito de ação porque falta a necessária condição de procedibilidade à sua propositura, não existe direito válido para o desencadeamento da respectiva ação penal. E, se assim o é, há de ser aplicado o princípio da actio nata.
Por outro lado, reza o inciso I do artigo 129 da Constituição da República vigente que ao Ministério Público compete privativamente o exercício da ação penal pública nos termos da lei. Então, se esta caracteriza o delito como de resultado, é necessário que se apure a sua existência, no âmbito administrativo, tal como o ordena o art. 83 da Lei nº 8137/90, diploma legal específico de incidência na espécie, evidenciando-se de forma irrespondível a necessidade de sua configuração, através decisão do órgão administrativo competente, a fim de que se encontre satisfeita exigência que se tem como condição de procedibilidade da ação.
Todavia, o Supremo Tribunal Federal negou a medida liminar requerida pelo Ministério Público. Segundo o eminente Ministro Neri da Silveira, relator para o caso,“o art. 83 em foco quer não aja a administração, desde logo, sem antes concluir o procedimento administrativo fiscal, mas essa conduta imposta às autoridades fiscais não impede a ação do Ministério Público, que, com apoio no art. 129 e seus incisos, da Constituição, poderá proceder, de forma ampla, na pesquisa da verdade, na averiguação de fatos e na promoção imediata da ação penal pública, sempre que assim entender configurado ilícito, inclusive no plano tributário. Não define o art. 83, desse modo, condição de procedibilidade para a instauração da ação penal pública, pelo Ministério Público, que poderá, na forma de direito, mesmo antes de encerrada a Instância administrativa, que é autônoma, iniciar a Instância penal, com a propositura da ação correspondente”.
A partir da argu-mentação supra, parece razoável que se espere que, em decisão final, o Supremo Tribunal Federal venha a acolher a tese da existência de condição de procedibilidade, tal como defendido pelo Min. Carlos Veloso em seu voto, contrariamente ao provimento liminar favorável à instauração da ação penal pública pelo Ministério Público, antes de encerrada a instância administrativa.
Todavia, não seria desarrazoado pensar-se que não encontraria amparo, nem na lei nem na jurisprudência, solução que consagrasse a possibilidade de, instaurada a ação penal, suspendê-la o órgão julgador, sem prova de existência de prejudicial incidente . É que, para tanto, ante o quadro processual em vigor, seria necessária a evidência de ação civil, anteriormente proposta pelo contribuinte , objetivando apurar se teria havido supressão ou redução de tributo. Com tal proceder, de parte do hipotético devedor, aí sim, poderia haver suspensão do processo relativo à ação penal, pois tal situação qualificar-se-ia, iniludivelmente, como de prejudicialidade heterogênea, prevista e amparada no art. 93 do Código de Processo Penal.