Defesa na produção antecipada de provas

3 de maio de 2022

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Introdução

O presente artigo se dedica a analisar o art. 382, §4o do Código de Processo Civil (CPC) de 2015, segundo o qual no procedimento de produção antecipada de prova “não se admitirá defesa”. A questão que se põe é: afinal, será esse o único procedimento previsto no CPC impenetrável às garantias constitucionais à ampla defesa e ao contraditório?

Antecedentes 

O CPC de 1973 regulava a produção antecipada de provas no Livro III (“Do Processo Cautelar”), nos termos dos artigos 846 a 851, aos quais se aplicavam subsidiariamente as normas gerais dos artigos 796 a 811. Essa colocação do procedimento decorria do fato de que seu cabimento era limitado à hipótese de urgência, decorrente do risco de perecimento da fonte de prova.

Esse cabedal normativo era bastante sintético, mas suficiente para se reconhecer ao requerido direito de defesa (artigos 802 e 803), a despeito dos limites dos poderes decisórios do juiz (art.810).

CPC/2015: análise geral 

Acolhendo proposta doutrinária (em especial da seminal tese de Flávio Luiz Yarshell, “Antecipação da prova sem o requisito de urgência e direito autônomo à prova”, São Paulo: Malheiros, 2009), o CPC/2015, ampliou o cabimento da produção antecipada de prova, dispensando o requerente de demostrar urgência (art. 381, I e II). 

Contudo, o CPC/2015 criou outros problemas, que não havia ao tempo do CPC/1973, os quais decorrem em grande medida do reposicionamento do instituto e de algumas escolhas infelizes do texto legal.

Como se sabe, o CPC/2015 já não mais contém um livro dedicado ao “Processo Cautelar”, cujas disposições foram simplificadas, reduzidas e refundidas no Livro V da Parte Geral, dedicado à “Tutela Provisória”, artigos 294 a 311. Esse livro já não mais poderia comportar as disposições sobre produção antecipada de prova, máxime porque esta não é mais baseada exclusivamente na urgência.

Assim, optou-se por alocar os dispositivos em Seção dedicada às provas (artigos 381 a 383). E apesar de tal colocação se justificar sob uma perspectiva sistemática, perdeu-se a referência a um modelo de procedimento a ser observado (papel que, com adaptações, era cumprido pelos artigos 796 a 811 do CPC/1973). Consequentemente, perdeu-se a previsão de um ato defensivo pelo requerido.

Essa lacuna quanto à defesa do requerido na produção antecipada de provas poderia ser facilmente contornada como em outras situações (por exemplo, quanto à impugnação ao cumprimento de sentença, na qual, embora não exista previsão expressa quanto à resposta do exequente, é evidente o seu cabimento, devendo-se, quanto ao prazo, se observar o art. 218, §§1o a 3o).

Todavia, esse esforço hermenêutico poderia se vão à luz de uma interpretação literal do art. 382, §4o, que dispõe não caber defesa na produção antecipada de provas.

Essa interpretação literal, contudo, conduziria a soluções anacrônicas e, no limite, inconstitucionais. Importa aqui analisá-la criticamente.

Cabimento e limites da defesa na produção antecipada de provas

É de todo inviável que se extraia do art. 382, §4o a absoluta impossibilidade de o réu apresentar qualquer defesa, seja pela interpretação do dispositivo à luz da Constituição Federal (em especial os incisos LIV e LV do seu art. 5o), seja pela interpretação sistemática com outros dispositivos do CPC.

Primeiramente, é evidente que as provas produzidas antecipadamente sujeitar-se-ão às normas que regem a atividade probatória no bojo do processo de conhecimento.

Assim, não há qualquer dúvida de que o requerido tem pleno direito ao contraditório quanto aos atos de produção da prova, como, por exemplo, arguir suspeição ou impedimento de perito e de testemunhas, impugnar o laudo pericial, etc. Se o procedimento se desviar dos princípios e regras que regem a produção da prova, cabe não apenas ao requerido, mas também ao requerente provocar o juízo a respeito.

Ou seja, é impossível que se extraia do art.382, §4o, que o requerido não terá defesa em face do próprio desenrolar da colheita da prova.

Em segundo lugar, a parte final do próprio §4o do art. 382 deixa claro que o juiz tem o poder de, até mesmo ex officio, indeferir total ou parcialmente a produção antecipada de provas. Se assim é, poderá fazê-lo por provocação do interessado, a qual faria as vezes, justamente, de uma efetiva defesa contra o cabimento da medida.

Em suma, numa interpretação a contrario sensu da própria parte final do art. 382, §4o, cabe ao requerido pedir que o juiz indefira total ou parcialmente a produção antecipada de provas em efetivo exercício do direito de defesa.

Restaria saber, então, qual é o conteúdo dessa defesa.

O próprio art. 382 revela uma plêiade de argumentos passíveis de ser alegados quanto ao cabimento da produção antecipada de prova.

Poderá o requerido indicar que o requerente não se desincumbiu adequadamente do ônus de mencionar “com precisão os fatos sobre os quais a prova há de recair”, como exigido pelo art. 382, caput, impondo-se a extinção do feito sem resolução de mérito por inépcia da petição inicial (art. 485, I).

Da mesma forma, poderá o requerido indicar que o requerente não demonstrou a “necessidade de antecipação da prova“, como exige o mesmo art. 382, caput. A expressão remete imediatamente à ideia de interesse de agir, cuja falta também enseja extinção do processo sem resolução de mérito (artigos 17 e 485, VI). A desnecessidade da produção antecipada da prova pode decorrer de vários fatores, mais óbvios (v.g. pendência de processo de conhecimento em que pode ser produzida a prova requerida), a outros menos evidentes (e.g. quando se verifica prima facie que o requerente não conseguirá ajuizar nenhuma demanda se valendo da prova produzida de forma antecipada, porque juridicamente impossível sua pretensão, ou porque manifestamente prescrita a pretensão ou caduco o direito subjacente aos fatos a serem provados). Note-se que não se defende que o juiz decrete a prescrição ou decadência (como o art. 810, IV, do CPC/1973 permitia), mas que ele reconheça que, sendo elas manifestas, faltará ao requerente interesse para produzir provas que não servirão para instruir qualquer processo apto a lhe gerar uma sentença favorável.

Se não se chegar a essa solução pela via do interesse processual, então se chegará pela quebra do dever de boa-fé (art. 5o), que veda o uso abusivo do processo, conduta que o juiz tem o dever de prevenir e reprimir (art. 139, III).

De outro lado, o art. 382, §1o, remete à ideia de que o juiz produzirá provas com participação dos sujeitos que integram a relação jurídica de direito material controvertida em torno da qual há fatos probandos, de modo a lhes tornar oponível a prova produzida. Extrai-se facilmente dessa constatação que o juiz deve fazer o controle da legitimidade ativa e passiva dos sujeitos que participam da produção antecipada (artigos 17 e 485, VI), de ofício ou por provocação do interessado (art. 485, §3o).

De resto, aplicam-se à produção antecipada de provas quase todas as demais causas de extinção do processo sem resolução de mérito previstas no art. 485, como abandono (incisos II e III), falta de pressupostos de constituição e desenvolvimento válido (IV), litispendência (V), desistência (VIII) e morte do titular de direito intransmissível (VIII). Restariam dúvidas sobre a aplicação da coisa julgada (V) e da convenção de arbitragem (VII), que remetem a questões complexas e incompatíveis com os exíguos limites deste texto. Embora não haja julgamento de mérito na produção antecipada de provas, pode-se aplicar à produção antecipada de provas as causas de extinção sem resolução de mérito (de modo similar ao que se passa na execução).

Todas essas matérias, ademais de cognoscíveis de ofício (art. 485, §3o), podem ser arguidas pelo requerido, em exercício típico de defesa processual.

Com base nessas premissas, conclui-se que a proibição de apresentação de defesa, constante do art. 382, §4o, deve ser compreendida à luz dos limites dos poderes decisórios do juiz na produção antecipada de provas (art. 382, §2o). Apesar de o art. 382, caput, exigir do requerente antecipar qual é o litígio (indicando os fatos controvertidos sobre os quais a prova haverá de recair), o juiz não se manifestará a respeito dele. Como não pode haver decisão sobre o mérito do conflito, não cabe ao réu trazer argumentos a seu respeito.

Em resumo: não caberá ao requerido deduzir defesa de mérito. Mas o direito à defesa processual sobre o cabimento e o desenrolar da produção antecipada de provas é evidente.

Se a anacrônica e infeliz disposição constante do art. 382, §4o, for interpretada de forma literal, em menoscabo de sua exegese constitucional, histórica e sistemática, a produção antecipada de provas, pensada como lídimo instrumento de prevenção de contendas judiciais, converter-se-á em fonte de abusos.