Desconstruindo a tutela de indígenas

16 de abril de 2020

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E os pensamentos tutelares

A colonização em corpos, saberes e leis

Os povos indígenas atravessaram e atravessam feroz etnocídio, marcado pela expropriação de seus direitos, instituições, tradições e culturas enquanto tais. Demais da violência física e da exploração econômica, é preciso perceber o que, em um nível mais abaixo – invisível – define esta experiência enquanto tal, colocando-nos diante das suas consequências epistemológicas e jurídicas.

Boaventura de Souza Santos aponta que a tensão entre emancipação social e regulação social é somente a distinção visível dos conflitos da modernidade. Em outra camada, mais subterrânea àquela, está a distinção entre as sociedades metropolitanas e os territórios coloniais, sendo que, nestes últimos, aquela primeira tensão era absolutamente inaplicável.

Quais saberes são produzidos para/deste contato entre colonizadores e nativos, e a serviço de qual projeto? Maria Paula Meneses menciona o evolucionismo como sendo a base da “invenção do arcaico, do bárbaro”, a justificar a “imposição da necessidade de progresso” rumo ao “desenvolvimento” da civilização ocidental. Disto, surge uma geografia dos territórios coloniais e das metrópoles em que convivem o “passado em atraso” e o progresso ocidental de “futuro” a ser alcançado pelos colonos.

Deste ponto de vista, os povos indígenas são tornados invisíveis, pois não gozam de validade em suas próprias estruturas sociais, econômicas, ontológicas e epistemológicas. A invisibilidade é produzida no próprio discurso/saber em torno do “bárbaro” e “atrasado” a justificar a criação de categorias jurídicas que formalizam/conformam tal subjugação – e a tutela é exemplo disto.

Assimilacionismo e tutela de indígenas

A Convenção 107 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1957, em seus considerandos e dispositivos, deixa claro o projeto integracionista/assimilacionista, segundo o qual os direitos das populações indígenas, tribais e semitribais seriam garantidos desde que em um contexto de aculturação e adequação ao progresso da comunidade nacional (art. 1º). Nessa ambiência, prevê uma política protecionista e assistencialista por parte dos Estados (art. 2º), o que é seguido pela Constituição Federal de 1967 – a qual traz o termo (pejorativo) “silvícolas” e refere-se à incorporação dos povos indígenas à comunhão nacional (artigos 4º, IV; 8º, XVII, “o”; e 186).

Essa é uma das principais bases em que se assenta o regime de tutela de indígenas, outrora previsto no Estatuto do Índio (Lei nº 6001/1973). De modo geral, o que está em jogo é o conhecimento/discurso (supostamente) científico que, no âmbito do Direito, como aponta Rosane Freire Lacerda, transforma a diferença (do que é considerado “bárbaro e atrasado”) em incapacidade, e condiciona a capacidade dos indígenas à sua adaptação ao paradigma ocidental prevalecente.

O Estatuto do Índio, destarte, repete o termo “silvícolas” e prevê, em seu art. 4º, a gradação entre índios isolados, em vias de integração, e integrados à comunhão nacional. Neste contexto, destina o pleno exercício dos direitos civis somente para os índios integrados e prevê, em seu art. 7º, o regime tutelar aos índios isolados e aos em via de integração, incumbindo-o ao órgão federal “de assistência aos silvícolas”. Ademais, prevê, no art. 9º, o procedimento judicial para verificação dos requisitos de liberação do regime tutelar.

Correspondendo a isto, a Lei nº 5371/1967 (que criou a Fundação Nacional do Índio/ Funai), em seu art. 1º, parágrafo único, determina que a Funai terá poderes de representação ou assistência jurídica inerentes ao regime tutelar de indígenas, incumbindo-lhe não só a função de gestão do patrimônio indígena, como também de resguardo assistencialista destes povos contra a “aculturação espontânea do índio, de forma que a sua evolução socioeconômica se processe a salvo de mudanças bruscas”.

Podemos considerar a tutela de indígenas uma parte fundamental do “DNA” de uma política estatal pensada para, legal e institucionalmente, subjugar os povos indígenas a uma espécie de ostracismo tanto como sujeitos de direitos, quanto como agentes políticos, abrindo campo para todo o tipo de ingerência estatal contra a autonomia e seus modos de ser, mesmo que lhes fossem reconhecidos direitos territoriais.

A Constituição de 1988 inaugura novo paradigma jurídico sobre o tema e garante aos indígenas, em seus artigos 231 e 232, o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e o direito originário sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Consagra, também, a legitimidade dos índios, suas comunidades ou organizações, para ingressarem em juízo para a defesa de seus direitos e interesses.

No mesmo passo, a Convenção 169 da OIT, de 1989, em seus considerandos, revoga o assimilacionismo da convenção anterior e reconhece aos povos indígenas o direito de assumir “o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões”, sem prejuízo ao exercício dos direitos fundamentais garantidos ao restante da população. Consequentemente, impõe aos Estados modificações em suas relações com os povos indígenas, cujos principais pilares são: a obrigatoriedade da consulta prévia, livre e informada para quaisquer iniciativas que interfiram nas referidas populações, respeitando a suas autonomias e prioridades (artigos 6º e 7º); e o respeito à autodeterminação (art. 1º). Nota-se, em suma, um modelo constitucional e convencional absolutamente incompatível com a ideia de incapacidade/tutela de indígenas, e que estabelece o paradigma da plena cidadania – porém, uma cidadania diferenciada, que exige do Estado uma outra relação com esses povos.

Necessário salientar que esta mudança no paradigma constitucional e convencional é fruto da resistência dos povos indígenas no Brasil e no mundo. Em nosso País, embora sem representação direta na Assembleia Constituinte, os indígenas mantiveram-se fisicamente presentes em articulações políticas, com o apoio de diversas entidades indígenas e indigenistas.

Em que pese todas essas mudanças, a doutrina civilista passou ao largo delas – não por acaso, são numerosos os acórdãos após 1988 que apontam a suposta vigência do regime tutelar. Seria a Funai responsabilizada objetivamente pelos atos de seus “tutelados”, ou seria a sua substituta legal? E se os interesses da Funai colidissem com o dos indígenas? A vigência da tutela não levaria a uma política indigenista essencialmente paternalista? As respostas a estas questões exprimem o absurdo desse entendimento. Por sua vez, o Código Civil de 2002 limitou-se a prever que a capacidade dos indígenas seria regulada por legislação especial (art. 4º), levando-nos aos dispositivos ultrapassados do Estatuto do Índio. Na mesma toada, somente com a edição do Decreto nº 9010/2017, foi retirado do estatuto da Funai a atribuição de tutela dos indígenas. Ainda, a Resolução Conjunta nº 3/2012 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) contém um considerando referindo-se à suposta “tutela judicial” conferida ao Ministério Público pelo art. 232 da Constituição Federal, e repete a categorização de índios em “integrados/não-integrados”.

De fato, sabemos que mudanças no campo das normas positivas geralmente não acompanham as necessárias mudanças no campo das práticas e saberes, e as apontadas dificuldades no campo normativo infraconstitucional demonstram isto. De fato, há senso comum teórico tutelar que, deste lado da linha abismal, permeia grande parte das práticas, discursos e saberes institucionais dos mais diversos órgãos do Estado brasileiro. Do outro lado dessa linha, por sua vez, deve-se reconhecer que este epistemicídio/juridicídio gravou, nas vivências seculares dos povos indígenas, profundas “feridas” tutelares em seus próprios integrantes, colocando-lhes o desafio de construir novas práticas de autodeterminação e autonomia.

Dentre os muitos elementos que compõem este senso comum teórico tutelar, podemos, primeiramente, mencionar a enorme dificuldade do aparato estatal em aceitar e aprender com a diversidade de povos como sendo a regra, não a exceção – o que exige disposição para reinventar esquemas institucionais e epistemológicos.

Em segundo lugar, os pensamentos tutelares dificultam a exata compreensão da autodeterminação dos povos indígenas enquanto critério político, limitativo do poder estatal e vinculado à livre-determinação. Neste sentido, é importante superar mecanismos legais e institucionais que naturalizam os resultados de uma política de colonização e contextualizar a autodeterminação em processos não-lineares, contraditórios e complexos de formação e reforço de identidades subalternas, afastando-se de ideias de pureza cultural e estereótipos deste tipo.

As reflexões aqui expostas não têm a pretensão de esgotar o tema, mas de despertar em nós, dia após dia, o compromisso de superar práticas, saberes e pensamentos tutelares.