Direitos Humanos e Defensoria Pública

4 de dezembro de 2020

Defensor Público do Estado de São Paulo / Diretor de Relações Internacionais da Anadep

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No dia 10 de dezembro é celebrado o Dia Internacional dos Direitos Humanos, em uma alusão ao dia em que foi publicada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948. Logo após o fim da II Guerra Mundial e após a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), os líderes de centenas de países quiseram deixar registrado que a humanidade rechaçava a ideologia discriminatória, xenófoba e genocida, que impulsionou a guerra, afirmando os valores morais basilares das relações entre homens e mulheres.

Em um dos seus considerandos, a Declaração afirma que “ (…) os povos das Nações Unidas proclamam, de novo, a sua fé nos direitos fundamentais do Homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos dos homens e das mulheres e se declaram resolvidos a favorecer o progresso social e a instaurar melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla”.

Embora não tenha caráter impositivo, a Declaração Universal foi o primeiro documento normativo que assentou os Direitos Humanos e permitiu, a partir dele, o desenvolvimento de tratados e convenções sobre direitos humanos, que, ratificados por muitos países, reconhecem e lhes impõem a promoção e proteção de garantias e direitos individuais e coletivos.

Em nosso entendimento, a partir da Declaração Universal, direitos humanos passam a ser considerados uma lente pela qual deve ser enxergada todas as relações humanas, todas as relações entre Estados soberanos e que deve nortear a formulação e execução de toda e qualquer política pública por todos os Poderes, instituições e órgãos estatais. Segurança pública, educação, saúde, cidades, economia, tudo deve levar em conta a promoção e a garantia dos direitos humanos.

Nossa Constituição Federal prevê que a cidadania e a dignidade da pessoa humana são fundamentos do Estado Democrático de Direito no qual se constitui a República Federativa do Brasil.

Ela também estabelece que os objetivos fundamentais dessa República são a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Embora não estivesse prevista explicitamente na redação original do art. 134 da Constituição Federal, que atribuía à Defensoria Pública a prestação da assistência jurídica integral e gratuita aos necessitados, seguindo a lógica acima, a instituição sempre teve a promoção e a defesa dos direitos humanos como inerentes à sua atuação, posto que instituição pública, permanente e essencial ao Sistema de Justiça.

A partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 80/2014, no entanto, a Constituição Federal passou a prever expressamente a promoção dos direitos humanos como incumbência da Defensoria Pública, ao lado da orientação jurídica e da atuação judicial e extrajudicial, coletiva e individual, em benefício das pessoas necessitadas.

Mas para além das normas postas, as Defensorias Públicas brasileiras – da União, dos estados e do Distrito Federal – historicamente sempre atuaram na promoção, proteção e defesa dos direitos humanos e na reparação das violações cometidas. Em um trabalho cotidiano, às vezes especializado e concentrado, mas, na maioria das vezes, difuso e geral, milhões de cidadãs e cidadãos brasileiros tiveram seus direitos garantidos por meio da atuação de defensoras e defensores públicos comprometidos ideológica e funcionalmente com os direitos humanos.

Logo, a Emenda Constitucional nº 80/2014, bem como a Lei Complementar nº 132/2009 (que alterou a Lei Orgânica Nacional das Defensorias Públicas) apenas tiveram o condão de tornar explícito o que já era implícito, norma o que já era prática.

Essa prática de promoção, garantia e defesa dos direitos humanos se apresenta nas diversas formas de atuação da Defensoria Pública.

Ressalte-se que a garantia de acesso à Justiça já constitui um direito humano em si mesmo, pois é ela o instrumento pelo qual se pode garantir e defender os demais direitos humanos.

A primeira, mais básica e mais conhecida forma de atuação da Defensoria Pública é a atuação judicial, a proposição ou defesa de ações perante o Poder Judiciário. Toda pessoa em situação de vulnerabilidade tem o direito de poder acessar o Poder Judiciário para reclamar um direito ou se defender de uma acusação.

A prática mundial, contudo, demonstra que a atuação individual, ainda que ampla e eficiente, não é suficiente para a prevenção e a pacificação dos conflitos.

Por isso, a Defensoria Pública tem promovido ações de educação e conscientização em direitos; primeiro, porque é um direito de cada pessoa conhecer seus direitos; segundo, porque o conhecimento dos direitos pode prevenir que violações ocorram.

Por outro lado, diversos estudos e pesquisas demonstram que conflitos são resolvidos com maior eficiência quando a solução deles é construída pelas próprias partes envolvidas e não pela imposição externa de uma decisão de terceira pessoa. Para isso, contudo, é necessário um preparo prévio dessas partes, com uma imprescindível intervenção interdisciplinar, para a sensibilização delas para a cultura de paz, para a comunicação não-violenta, propiciando-lhes condições emocionais e intelectuais para discutirem e construírem, em pé de igualdade, a solução mais ideal para o conflito.

Ao longo dos anos, a Defensoria Pública também tem aprimorado sua atuação extrajudicial perante empresas e órgãos públicos, buscando a solução de questões muitas vezes coletivas, beneficiando milhares de pessoas e evitando uma judicialização massiva e repetitiva.

Em outro campo de atuação extremamente inovador, a Defensoria Pública tem atuado organicamente junto aos Poderes Legislativos municipais, estaduais e federal, ora para propor alterações legislativas, ora para evitá-las, ora para contribuir com a formulação delas. Com o conhecimento técnico, experiência cotidiana e proximidade com entidades e organizações da sociedade civil, defensoras e defensores públicos têm tido papéis de destaque em audiências públicas, comissões temáticas e intervenções junto a parlamentares das três esferas de poder, com o fim de que as leis aprovadas contribuam para a efetivação dos direitos das pessoas em situações de vulnerabilidades.

Embora a Defensoria Pública ainda não tenha sido inserida no rol das instituições legitimadas para propor ações constitucionais, têm ela atuado como amicus curiae perante os tribunais superiores, tanto em ações de controle concentrado de constitucionalidade, quanto em recursos extraordinários com repercussão geral e recursos especiais repetitivos, contribuindo para que as decisões proferidas naqueles feitos protejam ou efetivem direitos humanos.

Nessa seara, insta registrar também que a Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep), enquanto associação civil, tem legitimidade ativa para propor ações constitucionais, tanto em defesa dos direitos e prerrogativas das defensoras e defensores públicos, quanto em defesa dos direitos humanos, finalidade prevista em seu estatuto, o que já ocorreu algumas vezes, sendo a última na proposição de ação direta de inconstitucionalidade cumulada com arguição de preceito constitucional com o objetivo de exigir a garantia de direitos violados pela epidemia do vírus zika no Brasil e destacar a necessidade de políticas públicas efetivas às mulheres e crianças afetadas pela doença.

Por fim, mas não menos importante, nos casos em que violações de direitos humanos não são evitadas ou reparadas em âmbito nacional, a Defensoria Pública tem atuado nos sistemas global e regional de direitos humanos, apresentando denúncias ou elaborando relatórios para a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos e para comissões e relatorias especiais da ONU, entre outras. Ante o sistema interamericano de direitos humanos, por exemplo, seguindo a jurisprudência e os parâmetros estabelecidos por seus órgãos, tem-se buscado, além da proteção urgente por meio de medidas cautelares, a reparação integral de violações cometidas, o que inclui o pagamento de indenizações às vítimas, custeio de tratamentos psicológicos, pedidos oficiais e formais de desculpas, além da determinação de medidas que visem a não-repetição das violações, tais como impor ao Estado brasileiro a obrigação de propor mudanças legislativas, alterações de protocolos, capacitação de agentes públicos e conscientização da sociedade.

Embora a atuação da Defensoria Pública venha sendo, como visto, de vanguarda na promoção e defesa dos direitos humanos, tanto no aspecto de ser uma instituição pública quanto em relação aos instrumentos de intervenção, faz-se necessária ainda a sua ampliação e maior estruturação. Atualmente, são pouco mais de seis mil defensoras e defensores públicos estaduais e distritais, que atuam em menos de 40% das comarcas brasileiras. Mesmos nessas comarcas, o número de defensores e servidores é insuficiente, bem como a estrutura física.

O crescimento mais rápido e maior da Defensoria Pública também é hoje uma luta pela promoção e defesa dos direitos humanos de todas as brasileiras e brasileiros.