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Garantismo ou recomendação

7 de novembro de 2023

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No dia 26 de junho deste ano, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), ao negar provimento ao habeas corpus no 227.629/SP, entendeu que a regra do art. 226 do Código de Processo Penal (CPP) “não exige, mas recomenda a colocação de outras pessoas junto ao acusado, devendo tal procedimento ser observado sempre que possível”. Tal decisão da relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso dá sobrevida a uma jurisprudência que parecia prestes a ser superada depois do julgamento paradigmático realizado pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em outubro de 2020.

Neste estudo, analisamos o julgamento recente do STF à luz da teoria do garantismo penal de Luigi Ferrajoli, demonstrando que o dispositivo em questão não pode ser entendido como mera recomendação, uma vez que intimamente ligado à legitimidade do reconhecimento enquanto meio de prova e à própria legitimidade da Justiça.

Ferrajoli, em “Direito e razão: Teoria do garantismo penal”, afirma que o garantismo é “um esquema epistemológico de identificação do desvio penal, orientado a assegurar o máximo grau de racionalidade e confiabilidade do juízo”. Trata-se de garantir que o Poder Judiciário, ao reconhecer um crime, o faça de modo empiricamente fundamentado e racionalmente apto à verificação ou refutação.

O autor frisa que, enquanto outros atos jurídicos e normas são validados exclusivamente pela vontade política ou normas superiores, “a legitimidade dos atos jurisdicionais penais está condicionada pela sua verdade processual”; deduzindo disso o axioma a verdade faz o juízo/ julgamento, não a autoridade”. Verdade é, portanto, uma das primeiras garantias e condição de legitimidade para o exercício do poder punitivo, ao lado da liberdade.

Esse princípio-valor atravessa toda a discussão em torno do reconhecimento de pessoas, pois hoje se sabe o quão imbricado por questões cognitivas, psicológicas e estruturais é este ato. Assim, levar em conta tudo isso permite alcançar um reconhecimento mais confiável, legítimo e, quiçá, verdadeiro.

A memória não é como um rolo de filme ou uma fotografia, à qual o possuidor retorna quando bem entender. Ela é suscetível e sugestionável; e vários são os fatores que afetam a sua credibilidade. Tratando-se do reconhecimento de pessoas, por exemplo, importa saber o tempo de exposição do rosto, claridade do local, presença de armas, grau de nervosismo da vítima, entre outros que aumentam as chances de erros e falsos positivos.

Do mesmo modo, diferentes estudos demonstram os diferentes mecanismos que induzem vítimas a “reconhecer” inocentes, como sugestões verbais, insistências e confirmações, entre outros detalhes que põem a vítima em um esforço de contribuição para com o caso.

Uma prática frequente e especialmente criticada é a que se constata no HC em comento: o chamado show up. Nessa prática investigativa, um suspeito em particular é colocado, presencialmente ou não, diante da vítima e lhe é perguntado se aquela é a pessoa que praticou o delito em apuração. Para a professora Matida, este é o modo mais precário de reconhecimento, pois o desejo de contribuir da vítima se transforma em esforço para reconhecer a pessoa diante dela: “Se o suspeito é suficientemente parecido à memória do autor do crime, o ‘reconhecimento’ acontece”. Ela alerta, ainda, que reconhecimentos posteriores não sanam o primeiro viciado, porquanto, a partir dali, a memória se cristaliza na pessoa erroneamente reconhecida.

Vê-se, portanto, que o disposto no CPP é inseparável da própria credibilidade do reconhecimento a ser realizado. O molde do art. 226 implica em um reconhecimento mais próximo da verdade, logo, base para decretos condenatórios mais legítimos. Do contrário, frustrar a ordem legal provoca, necessariamente, um ato carente de fidedignidade, que beira mero simbolismo. Levando ao extremo, pode se afirmar que o reconhecimento carente das formalidades legais beira uma prova ordálica, ligada mais à fé do que à memória do fato.

Na verdade, o art. 226 é insuficiente , existindo uma série de medidas que aumentariam a confiança no procedimento de reconhecimento. Entre elas: o alinhamento de pessoas semelhantes e que não se destaquem; um procedimento duplo cego, no qual condutor e vítima não saibam quem é o suspeito; alerta de que o suspeito pode não estar entre as pessoas alinhadas e que não há problema, caso não se reconheça o autor.

É nesse sentido que vem se posicionando o STJ, por liderança do ilustre Ministro Rogério Schietti, que, no julgamento do HC no 598.886/SC, assentou que as formalidades do art. 226 do CPP são “garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando de ‘mera recomendação’ do legislador”. Para ele, é urgente que os tribunais adotem um novo “rumo na compreensão das consequências da atipicidade procedimental do ato de reconhecimento formal”, pois a noção de mera recomendação “acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças”.

Passado pouco mais de um mês da decisão do STF, já se constata o efeito sobrevida no entendimento decadente da “mera recomendação” nas formalidades para o reconhecimento de pessoas. Apenas no STJ se encontram dois julgados citando diretamente o acórdão do STF e repristinando a interpretação irracional do art. 226 do CPP. Logo, é fundamental que a mais alta Corte supere o entendimento defasado e assente de vez uma postura garantista perante o reconhecimento de pessoas.

Como alerta Antônio Vieira, o Brasil é o único País da América Latina que não atualizou seu sistema processual penal após o fim da ditadura. A norma do art. 226 do CPP foi escrita há 82 anos, quando se dispunha de muito menos dados sobre memória e erros judiciários, de modo que sua atualização é mais que urgente. Para o autor, um bom exemplo a ser seguido se encontra na reforma do Código de Processo Penal uruguaio, que hoje determina:

a) que a testemunha deverá informar se voltou a ver o suspeito depois do dia do crime ou se sua imagem lhe foi exibida antes do ato; b) que a testemunha deverá ser advertida que o autor do crime pode estar ou não dentre os participantes da roda de reconhecimento; c) que a roda será formada com pelo menos quatro pessoas (o suspeito e mais três) que necessariamente devem ter características morfológicas semelhantes e vestimentas similares às do suspeito; d) que a defesa poderá ainda incorporar outros dois fillers à fila de reconhecimento; e) que o suspeito pode escolher a posição que ocupará na fila; f) que não se poderá colocar mais de um suspeito em cada fila; g) como em todo procedimento probatório, deverá necessariamente estar presente o defensor do suspeito/acusado; h) que, não sendo possível fazer a identificação de forma presencial, o reconhecimento poderá ser feito por imagens fotográficas ou vídeos, desde que observadas as mesmas regras aplicáveis ao reconhecimento presencial; i) que todo o ato deverá ser registrado mediante gravação de áudio ou vídeo.”

Notas___________________________________

1 STF. Agravo regimental (Ag. Reg.) no habeas corpus no 227.629/SP. Primeira Turma, relator Ministro Luís Roberto Barroso. J. 16/6/2023. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=768970183

2 STJ. Habeas corpus no 598.886/SC. Sexta Turma, rel. Ministro Rogério Schietti. J. 27/10/2023. Disponível em:https://www.stj.jus.br/sites/portalp/SiteAssets/documentos/noticias/27102020%20HC598886-SC.pdf

3 FERRAJOLI, Luigi. “Direito e razão: Teoria do garantismo penal”. 3a edição, revisada. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2002, p.30.

4 Conceito usado pelo autor como verdade aproximativa e não como verdade real ou realidade em si.

5 FERRAJOLI, op. cit., p. 437.

6 DIGES, Margarita; PÉREZ-MATA, Nieves. “La prueba de identificación desde la psicología del testimonio”. In: Identificaciones fotográficas y en rueda de reconocimiento: Un análisis desde el Derecho Procesal Penal y la psicología del testimonio. AA.VV. Madrid: Marcial Pons, 2014, pp. 33-86.

7 Ibid.

8 MATIDA, Janaína; CECCONELLO, William. “Outra vez sobre o reconhecimento de pessoas”. Consultor Jurídico, 1/10/2020.  Coluna Limite Penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-01/limite-penal-outra-vez-reconhecimento-fotografico

9 Ibid.

10 Como defendem Janaína Matida, William Cecconello, Antônio Vieira, Vítor de Paula Ramos e outros.

11 Todas citações extraídas do relatório do Ministro Schietti para o HC no 598.886/SC (vide nota de ref. 2).

12 Ag. Rg. HC no 759.871 e Ag. Rg. HC no 809.382.

13 VIEIRA, Antônio. “Riscos epistêmicos no reconhecimento de pessoas: O que aprender com a reforma do Código Processual Penal uruguaio|. In: COUTINHO, Jacinto (Dir.); et al. Reflexiones brasileñas sobre la Reforma Procesal Penal en Uruguay. Santiago, Chile: CEJA e Observatório da Mentalidade Inquisitiva, 2019, pp. 355 e ss.

14 Ibid.