Histórias para não esquecer

28 de abril de 2014

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Especial: 50 anos do Golpe

Personagens e fatos são relatados e lembrados em quatro filmes sobre a Ditadura Militar

No que depender da sétima arte, os 50 anos da instauração da Ditadura Militar no Brasil jamais serão esquecidos. Encontram-se em produção ou em cartaz algumas obras cinematográficas que remontam com detalhes o período de exceção. Personagens e as histórias que vivenciaram são narradas não apenas com o intuito de sensibilizar os espectadores, mas, principalmente, de fazê-los refletir sobre as consequências nocivas advindas com a destituição do governo democrático.

Nessa linha, não há como não destacar o documentário Sobral – O Homem que Não Tinha Preço, de Paula Fiuza, e a trilogia Os Advogados Contra a Ditadura, Militares da Democracia e Há Muitas Noites na Noite, de Silvio Tendler. As produções contaram com o apoio da Ordem dos Advogados do Brasil, seccional do Rio de Janeiro (OAB/RJ).

O primeiro filme conta a história de Heráclito Fontoura Sobral Pinto, jurista brasileiro e ferrenho defensor dos direitos humanos, com atuação memorável durante as ditaduras do Estado Novo e de 1964. O filme foi produzido pela cineasta Paula Fiuza, neta de Sobral. Ela explicou que era antigo o desejo que tinha de contar a história do avô. “Há muito tempo eu tinha vontade de fazer um filme sobre ele: um personagem único da nossa história, mas que estava ficando completamente esquecido”, afirmou.

O documentário foi lançado no ano passado e atualmente encontra-se disponível na TV por assinatura. A obra narra como Sobral Pinto desafiou e resistiu a Getúlio Vargas e a João Batista Figueiredo, responsáveis pelos golpes de 1937 e 1964, respectivamente.

“Ele defendeu comunistas mesmo sendo católico, mostrando que crenças e ideologias pessoais não poderiam se sobrepor ao direito. Ele também surpreendeu com sua criatividade ao fazer uso da lei de proteção aos animais para aliviar Harry Berger, companheiro de Luís Carlos Prestes, da tortura bárbara a qual estava sendo submetido; liderou ainda o movimento que barrou um golpe contra a candidatura de Juscelino Kubitschek, o que garantiu a eleição e posse de JK, mesmo sendo seu opositor político; e defendeu milhares de perseguidos políticos, salvando a vida de muitos durante o período ditatorial”, relatou a cineasta. Ela destacou ainda outros feitos do avô. “Destemido, foi um incansável contestador das arbitrariedades militares, não só através de suas ações, mas também por meio das inúmeras cartas abertas que escreveu aos presidentes e demais autoridades”, contou. Como exemplo, ela cita o documento enviado por Sobral ao então ministro da Justiça, Armando Falcão. Na carta, Sobral cobrava do Ministro providências em relação ao desaparecimento de Fernando Santa Cruz, um ativista político. Sobral chamava a atenção de Falcão para a necessidade de este fazer jus à posição que ocupava: a de MINISTRO DA JUSTIÇA. “Ele escreveu assim, com as letras em maiúsculas. A carta é lida pelo irmão de Fernando. É um momento muito emocionante (do filme)”, destacou.

Muitos dos acontecimentos mostrados no documentário são narrados pelo próprio Sobral. Paula conta que teve sorte de encontrar entrevistas do avô durante as pesquisas para a produção do filme. “Em grande parte, a trajetória do meu avô é contada por ele mesmo, o que é maravilhoso. É que ele tinha um humor surpreendente e relata episódios, como os da sua prisão após o decreto do AI-5, com uma leveza de espírito inusitada. Esse relato, inclusive, foi filmado durante uma festa. Naquele momento, Sobral segurava uma taça de vinho na mão, junto a uma roda de amigos. É incrível”, contou.

Paula explicou que tentou fazer um filme que fosse além da narrativa da vida do avô. “Da arquivologia pessoal, evoluí para atender à necessidade de fazer algo que abordasse esse momento de falência generalizada da ética que vivemos em nosso país. E a melhor coisa que me ocorreu, como cineasta, foi fazer um filme que resgatasse a memória de um homem de ética e coragem inabaláveis”, afirmou.

A cineasta contou que a produção do filme significou um “mergulho profundo” na sua própria história e na de sua família. “Não fui tão próxima do meu avô. Encontrava com ele aos domingos. Além disso, era a neta mais nova. Tínhamos muito carinho, porém havia certa distância. Quando ele morreu, eu tinha 24 anos, estava morando nos Estados Unidos já há alguns anos e começava a tatear na vida adulta, após emergir de anos de uma névoa de ignorância imposta à minha geração”, relatou.

Ela conta que, nesse processo, descobriu uma história do Brasil que definitivamente não se ensinam nas escolas. E mais: descobriu coisas sobre ela mesma. “Descobri coisas sobre mim e ganhei um novo avô. Hoje, me sinto muito mais próxima dele do que jamais fomos enquanto ele era vivo. Além disso, com esse filme, sinto que estou fazendo algo útil para o nosso país. É que a memória de Sobral Pinto pode servir de exemplo e inspiração para a construção de um país mais ético e menos acovardado diante do mau uso e abuso de poder”, frisou.

Memória
O sentimento de ter contribuído para a preservação da história nacional também é compartilhado pelo cineasta Silvio Tendler, responsável pela trilogia Os Advogados Contra a Ditadura, Militares da Democracia e Há Muitas Noites na Noite. “Juntos, os três filmes formam um imenso afresco, com mais de dez horas de duração, sobre a crueldade da ditadura. Isso, por ângulos jamais abordados”, afirmou o produtor.

Em Os advogados contra a Ditadura, Tendler narra a história dos casuísticos que atuaram em defesa dos perseguidos da Ditadura. Muitos deles acabaram se tornando vítimas de perseguição e prisões arbitrárias. Já em os Militares da Democracia, o cineasta conta a resistência de muitos oficiais ao Golpe de 1964 e à instalação da Ditadura. “De marinheiros a generais todos foram importantes nesta resistência”, afirmou.

No terceiro filme, Há Muitas Noites na Noite, o produtor abordou a vida na clandestinidade no Brasil e o exílio do poeta Ferreira Gullar. “O filme começa em 2 de abril de 1964, quando os artistas assumem a resistência no primeiro plano ao Golpe de 1964. Também passa pelo Teatro Opinião, a clandestinidade no Brasil, o exílio e volta a Ipanema, de onde nunca deveria ter saído. Há Muitas Noites na Noite representa a pluralidade do que vemos e não uma única forma de ver a escuridão”, destacou.

Tendler explicou que a trilogia é renovadora tanto na forma quanto no conteúdo. “Repito: são mais de dez horas de histórias jamais abordadas. Fizemos ‘das tripas coração’ para contar histórias dos porões da Ditadura, onde as coisas aconteciam sem registros de imagem. O mesmo acontece com o exílio de Gullar: utilizamos atores, aquarelas e desenhos para contar essa história. Montamos uma trilogia que é uma mistura de labirinto, caleidoscópio e quebra-cabeças – o que gosto muito, para contar as histórias”, ressaltou.

Segundo o produtor, os filmes que produziu não têm a pretensão de eleger heróis, mas mostrar a importância da luta para a construção do futuro. Nesse sentido, fala sobre a situação político-social do Brasil, em comparação com os Anos de Chumbo. Nesse sentido, cita o caso do desaparecimento do pedreiro Amarildo. “O caso serviu como um grito de alerta de que a ditadura contra o povo continua e estamos mais conscientes de que a repressão continua nas favelas, nos bairros populares. O Brasil está mais maduro e consciente de que a polícia e a política têm que mudar”, ressaltou.

Paula-FiuzaPaula Fiuza nasceu no Rio de Janeiro. Formada em jornalismo pela Universidade de Washington, começou sua carreira como repórter de TV nos Estados Unidos. No Brasil, passou a trabalhar como diretora, roteirista e editora. Entre suas principais realizações estão a criação, a direção e o roteiro da série de TV De Perto Ninguém é Normal (GNT, 2008) e dos curtas-metragens Jenny Holzer (doc., 1999), Lucinda Poesia Viva (doc., 2001), em parceria com o cineasta Pedro Cezar, e Luzes Coloridas no Final da Rua (ficção, 2011). Estreou na direção de longa-metragem com o filme Sobral – O Homem que Não Tinha Preço (doc., 2013), do qual também foi produtora, em parceria com Augusto Casé (Casé Filmes).

Silvio-TendlerSilvio Tendler nasceu em 1950, no Rio de Janeiro, e é considerado um dos maiores nomes do documentário nacional. Seus filmes são resgates críticos e reflexivos da memória brasileira e dos rumos do País. Com sua trilogia inicial, no começo dos anos 80, em meio ao processo de democratização, ele inscreveu seu nome na história do cinema brasileiro com as três maiores bilheterias de documentários Os Anos JK (1980), O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981) e Jango (1982). Em 1981, fundou a Caliban, produtora dedicada a biografias históricas de cunho social. São mais de 40 obras, entre curtas, médias e longas-metragens. Hoje, Tendler é também professor de Comunicação da PUC-Rio.