Homenagem a Evandro Lins e Silva Ministro do Supremo Tribunal Federal, acadêmico e advogado

31 de dezembro de 2011

Compartilhe:

O ministro, acadêmico e advogado Evandro Lins e Silva está fazendo muita falta, porque era possuidor de uma cultura suficientemente esclarecida e sólida para resolver os problemas de natureza regimental, estatutária ou jurídica que surgiam nos tribunais, no Supremo Tribunal Federal, na Academia Brasileira de Letras e no foro.

Nos tribunais, ele foi sempre a voz do bom senso que se agigantava no patrocínio de suas causas; no foro, foi a palavra respeitada na defesa de seus clientes; no Supremo, foi o voto equilibrado na interpretação das leis; e na ABL, foi a opinião acatada na decisão sobre as dúvidas e controvérsias.

Ele ocupava a cadeira no 1, que tem Adelino Fontoura como patrono, Luís Murat como fundador e, como sucessores, Afonso Taunay, Ivan Lins e Bernardo Élis, sucedidos por Ana Maria Machado.

Nela, também, a sua ausência será sempre muito sentida, porque ele era um colega muito querido, que ao longo dos três anos e meio de sua constante presença na Academia, deu provas cabais de um excelente companheirismo e de um convívio afável
e carinhoso.

Quanto mais homenagens recebia, e elas foram muitas nos últimos anos, mais se acentuava, em sua conduta, uma atitude de humildade e de modéstia, sobretudo diante dos poderosos, que jamais cortejou.

 

Um lutador Quixotesco

Foi um lutador quixotesco, que apoiou a candidatura de Lula, mas que já não estava mais vivo para assistir a sua posse: teve, pelo menos, o prazer de recebê-lo, numa visita de gratidão em sua residência, e de tê-lo como companheiro a empurrar seu esquife até a última morada, o Mausoléu da Academia, no qual passou a repousar.

Não é à toa, nem por acaso, que ele viveu uma existência muito coerente, fiel ao seu ideário socialista, do socialismo democrático, sempre voltada para a defesa dos direitos humanos e dos milhares de perseguidos políticos, que advogou, não raro sem honorários, perante o Tribunal de Segurança Nacional e o Tribunal do Júri, nos quais a sua atuação, como “o criminalista do século”, deixou marcas indeléveis do grande jurista, que realmente era.

Foi assim que defendeu os nossos confrades Carlos Heitor Cony e Josué Montello, os jornalistas Helio Fernandes e Marcio Moreira Alves, os governadores Miguel Arraes e Mauro Borges, o deputado Seixas Dória e os escritores Caio Prado Júnior e Ênio Silveira.

 

As grandes virtudes

Ele foi um arauto da cidadania, um defensor da liberdade, um paladino da ética, um exemplo de lealdade e uma das nossas poucas referências unânimes em toda a história brasileira.

A sua luta jamais foi pessoal, nem nunca teve ódios, raivas ou rancores.

De suas funções públicas, como Procurador Geral da República, como Chefe do Gabinete Civil da Presidência, como Ministro das Relações Exteriores e do Supremo Tribunal Federal, saiu mais pobre do que, quando nelas, entrara.

Dizia-me ele:

– Murilo: no dia em que o Presidente João Goulart me levou para o governo, em Brasília, eu tinha um Chevrolet importado; quando voltei para o Rio, tinha um fusquinha nacional.

Até os seus últimos instantes, ainda tinha de trabalhar para viver. E o fazia, religiosamente, todos os dias, convicto de que o ramo criminal do Direito não dá riqueza a nenhum advogado.

Na véspera de morrer, deixou com os seus filhos as razões de uma apelação a ser interposta no dia seguinte.

E morreu pobre, numa admirável lição e num magnífico exemplo de honradez, uma mercadoria que anda cada vez mais escassa na paisagem brasileira, tão marcada por tantas CPIs e por tantas corrupções.

 

A alegria de viver

Tinha uma especial paixão pela vida.

Jovem de espírito e de cabeça, “um jovem metido a besta e a velho”, como ele próprio comigo se definia nos seus 90 anos bem vividos, Evandro possuía uma enorme disposição de trabalhar, uma inexcedível vocação de defender os injustiçados e uma enorme alegria de viver.

Tinha um juvenil amor pela vida, que lhe transcorreu bravamente, como se fosse um novo Dom Quixote, um cavaleiro cervantino, fidalgo e andante, nobre e sonhador, nas suas lutas contra os moinhos do poder.

(Dir-se-ia até um personagem ulyssiano de Joyce, que tentava transformar em realidades concretas as suas utopias socialistas).

Quando assinou o requerimento do impeachment contra Fernando Collor, transformando-se no seu principal acusador, declarou que ali representava o papel de “advogado do Brasil”.

E acrescentou: “– Deus foi muito generoso comigo, quando me deu essa chance de defender o meu País.”

Semanalmente, todos os domingos, cruzava comigo na Avenida Atlântica, ao meio-dia, sob um sol causticante, fazendo o seu cooper.

E explicava: “– Estou aqui, na praia de Copacabana, bem no meio da festa.”

 

Piaunense de Parnaíba

Evandro Cavalcanti Lins e Silva, um piauiense nascido na cidade de Parnaíba, a 18 de janeiro de 1912, fez seu curso primário numa escola pública da cidade maranhense de Itapicuru, onde seu pai era juiz.

Formou-se na Faculdade Nacional de Direito, em turma paraninfada pelo professor Afrânio Peixoto. Trabalhou em vários jornais, especializou-se em Direito Penal e brilhou em desempenhos inesquecíveis no Tribunal do Júri, no qual proporcionou verdadeiros espetáculos de talento oratório.

Escreveu os livros A defesa tem a palavra, Arca de guardados e O salão dos passos perdidos, nos quais reconstitui fatos marcantes de sua vida como advogado profissional e, em particular, alguns julgamentos, como o de Doca Street, assassino de Ângela Diniz, que o consagraram como um dos maiores criminalistas brasileiros, ao conseguir improváveis e imprevistas absolvições.

 

Morreu no Esplendor

Morreu no esplendor de sua atividade física e intelectual, sempre com planos e projetos para o futuro, inclusive com um livro sobre o advogado Evaristo de Moraes, que deixou inacabado.

Morreu em consequência de um tombo sofrido no aeroporto Santos Dumont, justamente quando gloriosamente regressava de Brasília, onde fora alvo de grandes e merecidas homenagens, na posse dada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso, como Conselheiro da República.

Ele foi um homem que marcou toda a sua existência por uma enorme coragem no enfrentamento do regime militar, que o aposentou do seu cargo de Ministro do Supremo Tribunal, cassando-lhe todas as condecorações até então concedidas, as quais, mais tarde, lhe foram devolvidas.

Pagando um tributo altíssimo à fidelidade dos seus modelos políticos e ideológicos, pensou em exilar-se quando os generais de plantão o despiram de sua toga e de sua beca, em represália aos habeas-corpus que ele, corajosamente, concedia às vítimas da repressão e da tortura.

 

Um simples tropeço

Um homem de tanta intrepidez e de tanto destemor cívicos acabou morrendo de um simples tropeço, que lhe fraturou o crânio e o retirou do nosso convívio, fazendo-o ingressar para sempre na eternidade infinita e no universo onírico dos homens de bem, retos, dignos, incorruptíveis, exemplares, honrados e competentes como ele, do qual sentiremos sempre saudades imensas.