III Encontro de Cortes Superiores Brasil-Espanha

14 de dezembro de 2021

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Evento promoveu intercâmbio sobre aspectos legais da proteção de dados e do uso das novas tecnologias pelos tribunais

A Revista Justiça & Cidadania realizou em novembro, na Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madrid (UCM), o III Encontro de Cortes Superiores Brasil & Espanha, para promover o intercâmbio de ideias sobre temas da atualidade jurídica no mundo ibérico. Programado para acontecer antes da pandemia de covid-19, o evento teve que ser adiado por mais de um ano, porém sua programação manteve-se tão atual quanto antes, com a discussão de diversos aspectos legais relacionados às novas tecnologias e à chamada “sociedade de dados”.

A delegação brasileira contou com a participação do Ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) José Antonio Dias Toffoli; dos ministros do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão, Mauro Campbell Marques, Antonio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas Cueva e Antonio Saldanha Palheiro; e da presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Juíza Renata Gil. Participaram ainda do Encontro os senadores Davi Alcolumbre (DEM-AP), presidente da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, e Angelo Coronel (PSD-BA), que preside a Comissão Parlamentar de Inquérito das Notícias Falsas (CPI das Fake News), além de expoentes da advocacia nacional.

A delegação espanhola foi liderada pelo Juiz-Presidente da Segunda Sala do Tribunal Supremo da Espanha, Ministro Manuel Marchena Gómez, pelo decano e Diretor da Faculdade de Direito da UCM, professor Ricardo Alonso Garcia, e pelo Diretor da Escola de Prática Jurídica da Universidade Complutense, José Manuel Almudí Cid. A coordenação científica ficou sob a responsabilidade do Ministro Luis Felipe Salomão, e a condução dos trabalhos, como mestre de cerimônias, foi assumida espontaneamente pelo Ministro Dias Toffoli.

Moderação de direitos – O primeiro painel, com o tema “Sociedade da informação e novas tecnologias”, teve como presidente de mesa o Ministro Mauro Campbell e como palestrantes o Ministro Luis Felipe Salomão e o professor de Direito Internacional Privado na UCM, Pedro de Miguel Asensio. Completaram o painel como debatedores o Presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Marcus Vinicius Furtado Coêlho, e a Vice-Presidente da seccional fluminense da OAB, Ana Tereza Basílio.

Tanto o Ministro Salomão quanto o professor Pedro Asensio focaram suas exposições na técnica de moderação de direitos diante das novas plataformas tecnológicas utilizadas e consumidas pelo Poder Judiciário. O magistrado brasileiro explicou que os contrastes entre direitos fundamentais e os avanços da tecnologia fazem surgir conflitos aparentes entre princípios e direitos constitucionais. Uma das técnicas mais utilizadas para a resolução desses conflitos no Direito Constitucional é a ponderação dos valores em conflito, que segundo o Ministro Salomão as cortes brasileiras já utilizam com certa frequência. “O Judiciário brasileiro o tem feito não apenas do ponto de vista de quem julga, mas também de quem utiliza a tecnologia para si próprio, pois é também um usuário desses sistemas, com impactos, portanto, tanto na esfera administrativa, quanto na atividade judicial, o que tem trazido inúmeras dificuldades, em meio a algumas soluções”, observou.

O Ministro Salomão falou então sobre as diversos levantamentos que vêm sendo realizados pelo Centro de Pesquisas Judiciais da AMB e pelo Centro de Inovação, Administração e Pesquisa do Judiciário da Fundação Getúlio Vargas (FGV), dos quais é coordenador, incluindo a pesquisa em andamento sobre o uso da inteligência artificial (IA) no Judiciário brasileiro. “Submetemos um questionário para todos os tribunais, incluindo os tribunais superiores e o CNJ, e identificamos muito brevemente 60 iniciativas no âmbito da IA”, comentou.

Novo petróleo – “A propriedade era o centro da economia, quem detinha propriedade detinha poder. Evoluímos com a tecnologia e as máquinas passaram a ser o centro da atividade. Agora, bens imateriais como informações e dados passaram a ser os principais valores. Estamos na era em que a informação é o novo petróleo, a nova gleba. Surgem nesse cenário grandes gigantes de dominação, que são as redes sociais, que hoje têm todos os nossos dados, conhecem nossos gostos, aquilo sobre o que procuramos informações, aquilo que compramos, aquilo que nos causa alegria ou tristeza”, observou a advogada Ana Tereza Basílio.

Ela comentou o julgamento pelo STF da Medida Provisória nº 954, que previa a interatividade da transferência de informações dos usuários de telefonia para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), durante o período da covid-19: “A fundamentação da MP era o controle das aglomerações, mas a Suprema Corte – vencido o Ministro Marco Aurélio, relatora a Ministra Rosa Weber – se preocupou com a generalidade daquela Medida Provisória. Para que aqueles dados? Qual poderia ser a utilização? Não foi exposta de maneira adequada qual tipo de segurança essas informações teriam contra vazamentos O Supremo então suspendeu a eficácia da MP mostrando sua preocupação com a questão da privacidade”.

Sobre as práticas no cotidiano dos julgamentos na era da informação, o ex-Presidente do Conselho Federal da OAB, Marcus Vinicius Furtado Coêlho apresentou duas propostas. A primeira, que nas ações penais originárias seja vedada a realização de julgamentos virtuais sem a participação ao vivo do advogado, naquelas em que sua sustentação oral seja apenas gravada. A segunda, que sejam evitadas as mudanças de entendimento no ambiente virtual, no qual deve-se restringir, em sua opinião, à confirmação da jurisprudência dos tribunais: “Quando for ser efetuada uma virada hermenêutica, quando o tribunal se sentir maduro para tal mudança, me parece que o julgamento presencial seria o mais adequado”.

Tipo exportação – No segundo painel, presidido pelo Ministro Antonio Carlos Ferreira, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva apresentou o processo de elaboração da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD, Lei nº 13.709/2018), falou sobre a evolução jurisprudencial relacionada ao tema, apresentou um panorama sobre a experiência do tratamento de dados e do uso da inteligência artificial em outros países e ainda as perspectivas sobre esses temas. Já o professor José Amérigo Alonso, codiretor do mestrado em Direito das Tecnologias da UCM,  apresentou os dados normativos da proteção de dados na Espanha e a sobreposição do ordenamento jurídico espanhol pelo da União Europeia, comentando também a evolução da jurisprudência do Tribunal constitucional espanhol e as características e peculiaridades do modelo.

As palestras foram enriquecidas pelas exposições dos debatedores. O professor de Direito Processual da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Flávio Galdino observou que a “revolução tecnológica’’ do Judiciário brasileiro hoje é objeto de pesquisa em outros países: “Há um grupo internacional de estudiosos que usam essa revolução digital como base de estudos de Direito Digital, sobre o que o Brasil conseguiu fazer em termos de tecnologia graças ao esforço e ao empenho do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), àquela altura presidido pelo Ministro Dias Toffoli. No Brasil é usual importar acriticamente experiências estrangeiras, mas nessa matéria somos capazes de exportar”.

O professor Galdino explicou que o Judiciário brasileiro não apenas digitalizou processos e informações, mas também os atos processuais propriamente ditos. “É um manancial de informações fabulosos, em relação às inúmeras informações que podem parecer irrelevantes ao olhar do leigo, inclusive para nós profissionais jurídicos, mas que para os profissionais de tecnologia são extremamente importantes”, comentou ele, que deu como exemplo o caso das empresas que estão desenvolvendo tecnologias para tentar prever o comportamento dos magistrados a partir desses dados. 

Cookies – Em sua participação, o advogado Marcio Fernandes, membro da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB, comentou o julgamento realizado dias antes pela Suprema Corte da Inglaterra, no caso apresentado pelo ativista Richard Lloyd, que processou a Google LCC em nome de todos os usuários iPhone no Reino Unido, argumentando que a Google vendeu cookies, dados pessoais que identificam hábitos e preferências de navegação dos usuários. 

“O Tribunal decidiu por unanimidade que o pedido deveria ser reprovado por ser demasiadamente genérico em relação à avaliação financeira. Bateu na trave da Google, que quase perdeu um caso importantíssimo”, comentou Fernandes, sugerindo que as empresas, a partir de exemplos como esse, conduzam de forma responsável a utilização de dados.

LGPD Penal – O terceiro e último painel, presidido pelo Ministro Dias Toffoli, debateu “Aspectos penais, privacidade da proteção de dados e novas tecnologias”. Participaram como palestrantes o Ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro e o Ministro do Tribunal Supremo da Espanha Manuel Marchena Gómez, Presidente da Segunda Sala da Corte, especializada em Direito Penal, na qual atualmente se discutem as questões relacionadas à incorporação ao Processo Penal dos dados gerados pelas novas tecnologias.

O Ministro Saldanha falou sobre os fundamentos e princípios que regem a LGPD e sobre como foi sua participação como Vice-
Presidente na Comissão, designada pelo então Presidente da Câmara dos Deputados Rodrigo Maia (DEM-RJ), para a elaboração do anteprojeto de lei sobre proteção de dados pessoais para fins de segurança pública, defesa nacional e atividades de investigação de infrações penais, apelidada de “LGPD Penal”, assim proposta pois a Lei Geral de Proteção de Dados determina que o tratamento de dados dessa natureza deverá ser regulado por lei específica.

“Acabamos por construir uma proposta legislativa de muito boa qualidade, mas vai ser difícil implementar. (…) A sociedade é que terá que ir construindo o balizamento para evitar os abusos. No final, a proposta foi entregue ao presidente da Câmara em 5 de novembro de 2020, está em tramitação e certamente vai gerar muitas discussões e propostas de alterações. São 68 artigos, divididos em 12 capítulos”, contou o Ministro Saldanha. 

Também participou do painel, como debatedora, a Presidente da AMB, Juíza Renata Gil, que registrou a apreensão dos magistrados e juristas quanto ao que realmente poderá ser utilizado, em termos de dados, nos processos penais. “Não é fácil, porque a proteção de dados ainda é um tema pouco conhecido por todos nós. Estamos ainda sem saber como a aplicar a LGPD em matéria civil, muito menos em matéria penal”.