Edição

Inconstitucionalidade do passe livre da cidade do Rio de Janeiro

30 de abril de 2007

Compartilhe:

REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE 41/2006 

Órgão Julgador : TRIBUNAL PLENO E ÓRGÃO ESPECIAL

Relator:  DESEMBARGADOR ROBERTO WIDER

Representado: CÂMARA MUNICIPAL DO MUNICÍPIO DO RJ

Representado: PREFEITO DO MUNICÍPIO DO RJ

Representante: FETRANSPOR – FEDERAÇÃO DAS EMPRESAS DE TRANSPORTES DE PASSAGEIROS DO ESTADO DO RJ

Legislação: LEI MUNICIPAL 3167/2000

ADVOGADOS: MAXIMINO FONTES E OUTROS

 

Ementa

Representação por Inconstitucionalidade com pedido de suspensão liminar de eficácia da Lei nº 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro que “Assegura o exercício das gratuidades previstas no Artigo 401 da Lei Orgânica do Município do Rio de Janeiro, mediante a instituição do Sistema de Bilhetagem Eletrônica nos serviços de transporte público de passageiros por ônibus do Município do Rio de Janeiro e dá outras providências.” Gratuidade em serviços públicos de transportes coletivos prestados de forma indireta. Direitos constitucionais prestacionais. Natureza e efetividade. Necessidade de fonte de custeio. Desatendimento à norma constitucional que prevê o estabelecimento de critérios de contrapartidas necessárias à compensação de custos em decorrência de gratuidades concedidas pelo poder concedente.

Procedência da Representação.

 

Acórdão

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Representação por Inconstitucionalidade nº 41/2006.

Acordam os Desembargadores que compõem o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, por unanimidade de votos, em rejeitar a preliminar suscitada, e, no mérito, por maioria, julgar procedente a Representação para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 3º, 12, 15, §§ 1º e 2º, 16, 21, 22, 23, §§ 1º e 2º da Lei 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro, vencidos os Desembargadores Valéria Maron, Telma Musse Diuana, Azevedo Pinto, Rudi Loewenkron, Paulo César Salomão, Murta Ribeiro, Cássia Medeiros e Fabrício Paulo B.B. Filho.

Cuida-se de Representação por Inconstitucionalidade, tendo por objeto diversos dispositivos da Lei 3.167/2000, do Município do Rio de Janeiro, que estabeleceu gratuidade no transporte coletivo para idosos, deficientes físicos, portadores de doenças crônicas e alunos da rede pública.

Em fls. 286, o Exm°. Sr. Prefeito da Cidade do Rio de Janeiro manifestou-se contrariamente ao pedido liminar, aduzindo que o preço das tarifas municipais do transporte coletivo por ônibus já contemplam as gratuidades asseguradas na Lei em questão.

A Câmara Municipal do Rio de Janeiro apresentou informações às fls. 288/293 pelo indeferimento da liminar por ausência de violação da Carta Estadual.

O Ministério Público, em fls. 297, protestou pela prévia manifestação do Procurador Geral do Estado.

Os autos foram retirados pela ilustrada Procuradoria do Estado em 20/04/2006 e devolvidos somente em 24/07/2006, três meses após, sem manifestação (fls. 298 e 304).

A Procuradoria Geral de Justiça se manifestou, em fls. 305, protestando pelo indeferimento do pedido cautelar tendo em conta tratar-se de Lei datada de 2000, o que, por si só afastaria o perigo na demora.

O pedido cautelar foi indeferido em fls. 307/307v. por ausente o pressuposto da conveniência pela possibilidade de perigo imediato, considerando o tempo de vigência da lei inquinada.

O Exm°. Sr. Procurador Geral do Estado apresentou  sua manifestação, datada de 24/08/2006,  às fls. 312/315, pela improcedência do pedido.

A Procuradoria Geral de Justiça, com o parecer de fls. 317/322, opinou no sentido da improcedência da Representação, entendendo tratar-se de ofensa à norma da Constituição Federal insuscetível de apreciação nesta sede e considerando que o sistema contempla o ressarcimento dos benefícios concedidos.

A Câmara Municipal se manifestou em fls. 335/359, argüindo preliminar de ausência de interesse de agir, tendo em vista que a Lei 3.167/2000 somente regulamenta os termos da gratuidade concedida pela Lei Orgânica Municipal; inexis-tência de afronta ao artigo 112, § 2º da Carta Estadual por inexistir, na Constituição da República, indicação de que os Municípios devem se submeter ao processo legislativo estadual, e ainda ante a competência exclusiva do Município para organizar os serviços públicos de interesse local, incluído o transporte coletivo, na forma do artigo 30, V da CRFB.

O Exm°. Sr. Prefeito do Município do Rio de Janeiro se manifestou às fls. 364, corroborando os argumentos trazidos pela 1ª Representada e aduzindo que as gratuidades são suportadas pela tarifa paga por toda a população usuária do transporte coletivo por ônibus, uma vez que, no cálculo da tarifa, os custos são rateados entre os passageiros pagantes.

É o relatório.

Inicialmente, cabe rejeitar a preliminar de ausência de interesse de agir, tendo em vista que o legislador exigiu, como condição de eficácia do dispositivo da Lei Orgânica Municipal que instituiu o serviço de transporte gratuito de natureza assistencial, a edição de lei específica para regulamentar sua execução na integralidade e, sendo assim, o interesse de agir está na alegada inobservância dos requisitos constitucionais de eficácia da lei e as condições pré-estabelecidas entre o Poder Público e as empresas que executam os serviços de transporte intermunicipal.

A hipótese é em tudo assemelhada ao precedente julgado por este Órgão Especial na Representação de Inconstitucionalidade n° 60/2002, em que foi Relator o Des. Marlan de Moraes Marinho, cuja ementa se transcreve a seguir:

“REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. LEI 3.650, DE 21/9/2001. REGULAMENTAÇÃO DO ART. 14 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. VIOLAÇÃO DO PROCESSO LEGISLATIVO ART.112 § 2° DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. CONSEQÜÊNCIA. A lei que complementa norma constitucional, que, por sua vez, garante a gratuidade de serviços públicos estaduais de transporte coletivo, prestados de forma indireta, se deliberada e votada sem a indicação de fonte de custeio, padece de vício de inconstitucionalidade. Representação procedente.”

Assim, rejeitada a preliminar, passemos à analise do mérito.

A questão posta nesta Representação tem sido objeto de apreciação neste Tribunal em razão dos problemas e ônus que acarreta às prestadoras de serviços públicos de transporte.

É certo que o serviço de transporte coletivo rodoviário se realiza por ações de empresas mediante contratos de concessão, permissão ou autorização firmados com o Poder Público. São, portanto, contratos administrativos nos quais, desde a celebração, deve estar prevista a forma de ressarcimento, pelo Estado, das despesas da empresa na execução do serviço público.

Com o advento da Lei Municipal 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro, o que ocorreu, efetivamente, foi que as concessionárias passaram a ter que transportar gratuitamente todos os beneficiados indicados pelo poder concedente e este se omitiu desde então e até aos dias atuais, na efetivação de contrapartidas necessárias à compensação dos custos das gratuidades concedidas.

Não se está aqui a negar o benefício da gratuidade concedido pela Lei Orgânica Municipal, mas, tão somente, a observar as exigências para sua exeqüibilidade.

A apreciação das questões de direito suscitadas na presente representação deve ser analisada sob a ótica de direitos fundamentais constitucionais e da exegese a eles aplicáveis.

Em uma sumaríssima descrição do que se quer abordar, colhe-se, em artigo do Professor Ricardo Lobo Torres – A jusfundamentalidade dos Direitos Sociais (Vol. XII da Revista de Direito da Associação dos Procuradores do Novo Estado do Rio de Janeiro, Lumen Júris) –, após distinguir os direitos fundamentais como aqueles plenamente justiciáveis, que independem de complementação legislativa, tendo eficácia imediata e que estão positivados, entre outros, no artigo 5º da Constituição Federal, trata dos segundos, como direitos a prestações positivas, sujeitos à “reserva do possível” e à concessão do legislador, e que se positivam na Constituição Federal, nos artigos 6º e 7º, entre outros (ob.cit.p.350-351).

Frente à reconhecida falência do Estado-Providência, como assinala o mesmo professor adiante “a tese do primado dos direitos sociais sobre os individuais, com vimos acima, se dissolveu com o colapso do socialismo real e com a crise do Estado-Providência”, “a saída para a afirmação dos direitos sociais tem sido, nas últimas décadas: a) a redução de sua jusfundamentalidade ao mínimo existencial, que representa a quantidade mínima de direitos sociais abaixo da qual o homem não tem condições para sobreviver com dignidade; b) a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais na via das políticas públicas, do orçamento e do exercício da cidadania” (ob.cit.p.356).

Estamos tratando de direitos sociais, que se consubstanciam na obrigação do Estado de prestar aos cidadãos a garantia ao chamado “mínimo existencial”, ou seja, prestações materiais que garantam sua sobrevivência com um mínimo de dignidade humana, ou, em uma fase subseqüente, “a otimização da parte que sobreexcede os mínimos sociais”, impõe-se a análise de qual a jusfundamentalidade do direito social ao transporte coletivo gratuito prestado de forma indireta, visando identificar seus elementos integradores, forma de realização e imposição de custos.

É certo que tal política pública para os transportes coletivos pode estar inserida dentro do chamado “mínimo existencial”
no mesmo patamar dos programas de “Bolsa-Família” do Ministério da Educação ou do “Vale-Gás” do Ministério de Minas e Energia.

Penso, no entanto, que esta política se situa em um patamar acima dos “mínimos sociais”, haja vista a consideração do público alvo e objetivos colimados, quais sejam, um benefício aos idosos que necessitam de amparo; uma sobregarantia aos estudantes da rede pública, ao menos do 1o. grau, para o acesso ao estudo fundamental e uma assistência suplementar aos deficientes.

Como se tratam de direitos sociais aos quais correspondem políticas prestacionais materiais por parte do Estado e, acrescenta a Constituição Federal, de responsabilidade da sociedade como um todo, a teor do artigo 194, sua integração depende de diversos fatores, entre os quais o que se denominou “a reserva do possível”, ou seja, a disponibilidade orçamentária ou previsão de fonte de custeio e a concessão legislativa; esta, por sua vez, objetivando uma atividade prestacional de assistência social, qualifica os destinatários como os efetivamente necessitados de tais prestações, como não poderia deixar de ser, sob pena de subversão de seu caráter social.

Nesse ponto, deve-se prevenir a indesejada transformação da política de assistência em assistencialismo.

As questões suscitadas impõem a aplicação de princípios hermenêuticos, notadamente as exegeses sistemática e teleológica das normas que explicitam os direitos sociais.

Quando se pensa em gratuidade concedida para o forneci-mento de um serviço público, para logo se conceber, trata-se de um benefício social.

O benefício social decorre da execução de uma política de assistência social, prevista na Constituição Federal, que, como se sabe, é altamente impregnada de um sentido de socialidade e, por isso, inteiramente afastada de qualquer sentido de privilégio, devendo se entender a assistência social como “serviço gratuito, de natureza diversa, prestado aos membros da comunidade social, atendendo às necessidades daqueles que não dispõem de recursos suficientes.”(Novo Aurélio – Século XXI).

Nesta linha, estabelece a Carta Magna:

Art. 6º – São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

Art. 203 – A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV – a habilitação e a reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.

Por não se tratar de um “privilégio”, e sim de uma “assistência”, colhe-se, nos textos constitucionais, sempre, a referência à necessidade e a figura da carência:

• assistência aos desamparados;

• a assistência será prestada a quem dela necessitar;

• o amparo às crianças e adolescentes carentes;

• a pessoa portadora de deficiência e o idoso que com-provem não possuir meios de prover à sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família .

Neste contexto, a assistência social é deferida à atividade estatal, como um objetivo e um ônus da Administração Pública e da sociedade como um todo,  sendo implementada por um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, a teor do previsto no art. 194 da Carta Magna, que tem abrangência maior do que a previdência social, tratada a partir do art. 201 do mesmo  diploma.

Dentro dessas políticas de amparo às pessoas necessitadas, notadamente as idosas, a Constituição prevê, como parágrafo do artigo 230, que justamente determina o dever de amparar às pessoas idosas, a garantia de gratuidade dos transportes coletivos urbanos aos maiores de sessenta e cinco anos.

Como se fazer a leitura e interpretação deste artigo, fora do contexto em que foi criado?

Leia-se o caput do artigo:

Art.230 – A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem estar e garantindo-lhes o direito à vida.

Especificamente, no que se refere aos serviços públicos de transportes coletivos, estão previstos sistemas de benefícios, a saber:

1. Em relação aos maiores de sessenta e cinco anos, o supra citado artigo 230; no entanto, deve ser tratada a questão como “assistência social a quem necessitar” e não como privilégio, pois não passa pela cabeça de ninguém que os componentes da classe média e alta da sociedade, maiores de sessenta e cinco anos, deverão ter o direito à gratuidade do serviço, à custa do Estado ou dos trabalhadores da classe inferior (que usam o transporte público);

Tenho para mim que, se tal entendimento for adotado, estar-se-á subvertendo o cânone fundamental do princípio da igualdade, pelo qual este resulta no tratamento desigual aos desiguais, ficando o mesmo transformado não em uma política de amparo aos idosos, mas em um privilégio, o que viola, dentro de uma exegese sistemática e teleológica das normas constitucionais que regem os direitos sociais, sua razão de ser e objetivos colimados, quais sejam, a concessão de benefícios aos menos privilegiados da sociedade.

2. Em relação aos estudantes, determina a Constituição Federal:

Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 208 – O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

VII – atendimento ao educando, no ensino fundamental, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

E também a Constituição do Estado do Rio de Janeiro:

Art. 306 – A educação, direito de todos e dever do Estado, e da família, promovida e incentivada com a colaboração da sociedade…etc.

Art. 308 – O dever do Estado e dos Municípios com a educação será efetivado mediante garantia de:

IX – atendimento ao educando, no ensino fundamen-tal, através de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde.

Finalmente, no que se refere à gratuidade para pessoas portadoras de deficiências ou doença crônica, o benefício está previsto na Constituição do Estado, artigo 14:

Art. 14 – É garantida, na forma da lei, a gratuidade dos serviços públicos estaduais de transporte coletivo, mediante passe especial, expedido à vista de comprovante de serviço de saúde oficial, a pessoa portadora:

I – de doença crônica, que exija tratamento continuado e cuja interrupção possa acarretar risco de vida;

II – de deficiência com reconhecida dificuldade de locomoção.

Art. 338 – É dever do Estado assegurar às pessoas portadoras de qualquer deficiência a plena inserção na vida econômica e social e o total desenvolvimento de suas potencialidades, obedecendo aos seguintes princípios:

X – conceder gratuidade nos transportes coletivos de empresas públicas estaduais para as pessoas portadoras de deficiência, com reconhecida dificuldade de loco-moção, e seu acompanhante.

Tem-se que os serviços públicos podem ser prestados de forma direta, ou seja, pelos próprios órgãos ou empresas públicas encarregadas dos mesmos, ou de forma indireta, de acordo com a Lei Federal que dispõe sobre o regime de concessões e permissões da prestação de serviços públicos previsto no artigo 175 da CF, que prevê as duas formas:

Art. 175 – Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.

Na forma indireta, a concessão de serviços públicos é feita mediante delegação (a título precário, se for permissão), feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade de concorrência, para pessoa jurídicas ou consórcio de empresas
(Lei 8987, de 13 de fevereiro de 1995, artigo 2º, incisos II e IV).

Pois bem, ao tratar desta forma indireta, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro, no parágrafo 2º do artigo 112, é taxativa:

“Não será objeto de deliberação proposta que vise conceder gratuidade em serviço público prestado na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio”.

Demais disso, a Constituição Federal em seu artigo 195, § 5º, exige que nenhum benefício ou serviço da seguridade social seja criado, majorado ou estendido sem a correspondente fonte de custeio.

Também a nível federal, colhe-se, nas disposições da Lei 9.074, de 7 de julho de 1995, que estabelece normas para a outorga e permissão de serviços públicos, nos termos da Lei 8.987/95, ao dispor sobre a concessão de qualquer benefício tarifário a uma classe ou coletividade de usuários dos serviços que:

Art. 35 – A estipulação de novos benefícios tarifários pelo poder concedente fica condicionada à previsão, em lei, da origem dos recursos ou da simultânea revisão da estrutura tarifária do concessionário ou permissionário, de forma a preservar o equilíbrio econômico-financeiro do contrato.

A Constituição do Estado do Rio de Janeiro é mais estrita e taxativa sobre o tema: não se concede a gratuidade de serviço público, na forma indireta, sem a correspondente indicação da fonte de custeio. Assim, no Estado, todas as normas infraconstitucionais que desatenderem este comando se confrontam com ele.

E não poderia ser de outra forma. Tais benefícios, que visam a uma política de assistência social, consubstanciam dever do Estado e por tal, com previsão orçamentária, ou, se delegados a particulares, na forma indireta, devem ter a correspondente fonte de custeio.

E tais ações de assistência social, como dever do Estado e sociedade como um todo, não podem ser imputadas, como ônus, a apenas uma parte da sociedade – exatamente aquela que tem menor poder aquisitivo e aos trabalhadores, ou seja, os passageiros que pagam, fazendo-se o repasse das gratuidades para o valor das tarifas.

A solução adequada deriva da aplicação correta dos princípios que regem a política de assistência social na estrutura constitucional da nação, qual seja, a assunção de tais obrigações como um dever do Estado e da coletividade como um todo.

Os precedentes jurisprudenciais coligidos não se afastam desta linha, a começar pelas decisões deste mesmo E. Órgão Especial, conforme se vê a seguir:

2002.007.00037 – REPRES. POR INCONSTITUCIONA-LIDADE.

DES. JORGE UCHOA – Julgamento: 01/07/2003 – ÓRGÃO ESPECIAL.

REPRESENTAÇÃO POR INCONSTITUCIONALIDADE. GRATUIDADE EM TRANSPORTES URBANOS. DESRES-PEITO A PRINCÍPIOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E DA CARTA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITU-CIONALIDADE.

Desatendidas exigências da Constituição Federal e da Estadual para a concessão de gratuidade em transportes urbanos, tanto no que concerne à iniciativa da Lei quanto no que diz respeito à indicação de fonte de custeio, não pode tal norma ter vigência por reconhecida afronta a princípios básicos da Carta Maior.  Vencido o Des. Sylvio Capanema.

2004.007.00117 – REPRES. POR INCONSTITUCIONA-LIDADE.

DES. MARIANNA PEREIRA NUNES – Julgamento: 03/01/2006 – ÓRGÃO ESPECIAL.

Representação por inconstitucionalidade Lei-Muni-cipal 3.434/02 do Rio de Janeiro, que outorga gratuidade no serviço público sem indicação da fonte de custeio – Ofensa ao art. 112, §2º, da Constituição Federal – inconstitucionalidade da Lei 3.434/02 –Procedência da representação.

Da mesma forma, na Representação por Inconstitucionalidade nº 01/91, tratando de transporte coletivo municipal e gratuidade concedida a colegiais e outros grupos, à unanimidade, o Colendo Órgão Especial acolheu a representação contra a Lei Orgânica
do Município de Angra dos Reis, com a seguinte ementa:

“Viola o disposto nos Artigos 112, § 2º, e 342 da Constituição Estadual a gratuidade concedida pela Lei Orgânica do Município de Angra dos Reis (art. 214, incisos II a VIII), sem a correspondente fonte de custeio.”

No acórdão, o E.REL. Des. Doreste Baptista enfatizou:

“Ocorre que, além de ter estabelecido forma de intervenção no domínio econômico (a gratuidade) sem obediência ao parâmetro da Constituição Federal (art. 173), a inovação introduzida nos itens II a VIII do artigo 214 da referida Lei Orgânica, não tendo discriminado a fonte de custeio relativa à gratuidade criada, violou, às escâncaras, o mandamento da Constituição Estadual, que exige a correspectiva indicação da fonte de custeio.”

De conseqüência, vê-se que, tanto pelas regras de interpreta-ção sistemática e teleológica, como pelos fundamentos jurídicos adotados e, finalmente, pelos precedentes deste Tribunal, nos julgamentos efetuados pelo Colendo Órgão Especial, padecem do vício de inconstitucionalidade frontal, quaisquer normas infraconstitucionais que desatendam ao comando de indicação de fonte de custeio, na concessão de gratuidades nos serviços de transporte coletivo concedidos ou permitidos.

As alegações de fls. 365, no sentido de que as tarifas concedidas prevêem e dão cobertura aos ônus referentes às gratuidades concedidas, se ressentem de um mínimo de comprovação satisfatória: uma, porque se os custos são rateados entre os pagantes, na verdade, a despesa é da concessionária que recebe pelos serviços de transporte tais pagamentos, já que não existe “tarifa extra” para custear tal despesa; duas, porque, segundo o texto constitucional, as despesas com os benefícios sociais devem ser arcadas pela sociedade como um todo e não apenas pelos passageiros pagantes do transporte coletivo.

Logo, o dano sustentado pelas concessionárias do serviço público de transporte coletivo e o desequilíbrio econômico-financeiro dos contratos decorrem de raciocínio lógico e serão resultado do não recebimento pelos serviços prestados aos beneficiários da gratuidade, uma vez que, se o assento no ônibus for ocupado por quem não paga, outro passageiro pagante não poderá ocupá-lo.

Há ainda outros efeitos de ordem econômico-financeira resultantes do transporte realizado gratuitamente, a onerar as empresas, como o pagamento do ICMS e as obrigações resultantes da responsabilidade civil pelo transporte de passageiros.

De qualquer modo, ainda que houvesse um tratamento tarifário adequado ao problema das gratuidades, o que de fato não há, voltaríamos ao problema básico: o transporte urbano é chamado a atender,  prioritariamente , às populações de baixa renda, as quais, por isso mesmo, não podem ser oneradas com a obrigação de pagar mais para subsidiar as gratuidades.

Toda a gratuidade (impropriedade de designação, pois sempre alguém terá que arcar com os custos do benefício) tem a natureza jurídica de medida assistencial, ou seja, é prestada a quem dela necessita, independente de contribuição, como objetivo de atingir o bem-estar e a justiça social, e como tal, é obrigação do Estado e da coletividade como um todo e não de qualquer dos segmentos deste processo, tais como as empresas prestadoras dos serviços, pelo desequilíbrio evidente da regulação contratual, ou dos demais usuários, pela flagrante injustiça e inconstitucionalidade mesma, desta solução.

Destarte, admitir a solução apregoada pelo Município seria privilegiar o interesse de alguns, em detrimento do interesse de uma parcela maior da população, não atingida pelo benefício ora em comento a quem, alegadamente, tem sido apresentada a conta final, considerando que o Poder Público, até o presente, não estabeleceu a forma com a qual contribuirá para o custeio do benefício.

Assim, conclui-se pela inviabilidade dessa concessão sem a previsão da fonte de custeio, ante a cristalina necessidade de se manter a regra básica da concessão, que é o equilíbrio tarifário, que é a contraposição da supremacia do poder público.

Com tais razões, rejeita-se a preliminar suscitada e, no mérito, julga-se procedente a Representação para declarar a inconstitucionalidade dos artigos 1º, 3º, 12, 15, §§ 1º e 2º, 16, 21, 22, 23, §§ 1º e 2º da Lei 3.167/2000 do Município do Rio de Janeiro.