Atos de vandalismo e crimes nas manifestações

9 de abril de 2014

Compartilhe:

Rogero-grecoLeis mais duras resolvem, ou elas não são necessárias?

No dia 6 de fevereiro, o cinegrafista Santiago Andrade, ao fazer, pela TV Bandeirantes, a cobertura de um protesto nas ruas do Rio  de Janeiro contra o aumento das passagens de ônibus urbanos, foi vítima de um rojão que, ao atingi-lo na cabeça, colocou-o em coma por vários dias e ocasionou sua morte.

Os protestos contra o crime foram generalizados dentro e fora do país, com personalidades públicas, entidades, instituições e meios políticos, jurídicos e da imprensa solicitando leis mais duras para coibir os abusos nas manifestações e a escalada da violência que têm incomodado a sociedade, gerado pânico e agredido as liberdades de expressão e de manifestação garantidas pela Constituição.

A violência das manifestações nos últimos oito meses foi responsável por danos físicos a 114 jornalistas, causou cerca de R$ 1 bilhão em prejuízos e danos aos patrimônios público e privado, levou pânico à sociedade e trouxe um saldo, estimado pelas autoridades, superior a 1.100 cidadãos feridos e agredidos, entre os que participavam de forma pacífica nas manifestações, além de mais de 500 policiais atingidos também em sua integridade física.

O assunto se tornou, então, uma discussão nacional e duas perguntas pairam no ar e nos mais diversos setores do país: leis mais duras e rígidas resolvem a situação de violência provocada por black blocks e outros grupos que se infiltram nas manifestações para provocar distúrbios e gerar um ambiente de conflito generalizado? Quem está por trás destes grupos?

A primeira pergunta tem motivado questionamentos de diversas perso­nalidades públicas e entidades, como o Secretário de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, que chegou a propor ao Ministério da Justiça leis mais rígidas e duras no combate a este tipo de violência, tipificando esse tipo de crime como “associação para a incitação ou prática de desordem”. Há quem proponha a adoção de leis “antiterror”, desejando a tipificação como “atos de terrorismo”. O Ministério da Justiça revela que está somando as sugestões da sociedade para propor ao Congresso novas leis e um conjunto de medidas legais capazes de solucionar a questão que é emergencial, ainda mais com a proximidade da Copa do Mundo de Futebol em que novas manifestações – e ainda maiores – são esperadas.

As autoridades, temendo o que aconteceu durante a Copa das Confederações em 2013 – quando gigantescas manifestações em mais de 600 cidades brasileiras geraram pânico e insegurança –, já destacaram 190 mil policiais e agentes de segurança para o evento em todo o país com gastos de R$ 1,9 bilhão.

A segunda pergunta ainda continua à espera de respostas, mas as autoridades garantem que várias investigações estão em curso. Enquanto isso, a sociedade aguarda pacientemente.

Afinal, o país precisa de novas leis para coibir este tipo de abuso, para tipificar esta violência como sugerido por Beltrame? Ou a tipificação já existe no Código Penal e é suficiente? Neste caso, bastaria a simples aplicação da lei vigente?

José Mariano Beltrame, em entrevistas concedidas, ao defender sua proposta de leis mais rígidas, questiona: “qual o grau de tolerância que a sociedade tem com a violência apresentada nas manifestações? Só para dar um exemplo, a pessoa que foi presa com o artefato que matou o cinegrafista já havia sido presa três vezes. As idas à delegacia não foram suficientes para ela repensar seus atos, ela voltou a praticar crimes. A dificuldade que a autoridade policial tem em mantê-la presa passa pela aprovação de uma lei mais voltada para a prática da desordem, o que foge da minha alçada”, disse ele ao jornal O Globo, em 11 de fevereiro. Ele propôs a tipificação do crime e a proibição do uso de máscaras nas manifestações.

Na Câmara Federal, um projeto de lei em discussão, com timbre de urgência, na Comissão de Segurança Pública propõe o endurecimento das penas aos grupos mascarados que cometem crimes de dano aos patrimônios público e privado durante os protestos de rua. A proposta prevê prisão de seis meses a três anos para atos de vandalismo em protestos. A proposta, cujo relator é o deputado Efraim Filho, do Partido Democratas, admite o uso de máscaras, mas prevê três situações em que a Polícia poderá intervir para conter o manifestante mascarado, sendo ainda veda­da a utilização de “objeto ou substância que dificulte a identificação do manifestante” quando ele for suspeito de tentar esconder a identidade para evitar responsabilização criminal se ele estiver cometendo infração penal e nas ocasiões em que o mascarado incitar ato de vandalismo. A Polícia poderá agir de forma preventiva nessas ocasiões, “o que, pela lei, não pode acontecer hoje”, segundo a proposta que prevê ainda que nas situações acima descritas, as autoridades policiais podem “recorrer ao uso progressivo da força”. A Polícia poderá também “conter o manifestante se houver resistência” e prendê-lo, uma vez identificada, na hora, infração penal, bem como retirar dos manifestantes “objetos ou substâncias consideradas ilícitas”. A proposta estabelece ainda que todas as manifestações devem ser informadas às autoridades com antecedência mínima de 24 horas, informando o local preciso do protesto.

O tema tem sido alvo de muita polêmica. O meio jurídico, em sua grande maioria, considera que o País já tem um arsenal de leis mais do que suficiente para coibir os abusos e não é necessária modificação alguma no Código Penal. Alguns setores da vida nacional acham mesmo que a proposta de endurecimento de leis, nesse caso, é medida eleitoreira, uma vez que as eleições gerais vão acontecer este ano.

A Revista Justiça & Cidadania ouviu o criminalista, promotor de justiça, doutor e mestre em Direito Penal, Rogério Greco, sobre o tema. Greco é claro ao afirmar que “o delito de associação criminosa é tipificado no artigo 288 do Código Penal e já está mais do que demonstrado que não é pelo recrudescimento de leis que se evita a prática de crimes”. E, acrescenta em sua entrevista exclusiva, que “se o Brasil cumprisse efetivamente suas funções sociais não haveria este tipo de discussão”.

Justiça & Cidadania – A tipificação do crime de associação para incitação e prática de desordem proposta por um grupo de juristas, a pedido do Secretário Beltrame, é essencial para coibir abusos e violências nas ‘manifestações de rua’ no Rio e no País?
Rogério Greco – Com todo respeito às posições em contrário, não vejo necessidade de criação de qualquer outro tipo penal. Isso porque quando a Polícia consegue apurar que determinados integrantes das manifestações se reúnem para a prática de crimes, como tem noticiado constantemente a imprensa, inclusive com entrevistas de membros desses grupos, tem-se por caracterizado o delito de associação criminosa, tipificado no art. 288 do Código Penal, desde que três ou mais pessoas se reúnam, em caráter não eventual, o que tem acontecido com frequência. Além de responderem pela associação criminosa, cuja pena pode ser especialmente aumentada até a metade se houver o emprego de arma, os integrantes da associação criminosa ainda responderão pelos demais delitos que vierem a praticar.

Não precisamos de mais leis, mas sim de uma aplicação efetiva daquelas centenas que já estão em vigor.

A morosidade da Justiça, com toda certeza, contribui para a sensação de impunidade. Veja-se, por exemplo, o julgamento dos policiais que participaram da invasão do Carandiru, em 2 de outubro de 1992. Independentemente se praticaram ou não aqueles crimes, alguns deles estão sendo julgados somente agora, ou seja, mais de 20 anos após os fatos. Essa demora na resposta pelo Estado traz angústia não somente para a sociedade, como também para o réu, que quer ver definida sua situação.

JC – Não é uma volta ao passado de exceção quando havia proibição de associação? Existe diferença funda­mental entre esta proposta e a lei antiterror em trâmite no Senado? Essas violências nas ruas podem ser consideradas terrorismo ou já há tipificação legal para isso, especificamente?
RG – Não há proibição para as manifestações populares, que são legítimas e necessárias. No entanto, integrantes dessas associações criminosas se reúnem e atrapalham as manifestações populares. Eles, sim, devem ser contidos. Podem, inclusive, ser presos em flagrante delito, uma vez que o crime de associação criminosa é de natureza permanente. Assim, uma vez identificados os integrantes da associação criminosa, através de um trabalho de inteligência policial, podem ser presos em flagrante delito se forem encontrados, principalmente, em meio à manifestação popular. Seus comportamentos, contudo, não podem ser considerados como atos de terrorismo, cuja finalidade é bem diferente daqueles praticados por esses grupos criminosos. Os integrantes dessas associa­ções criminosas que atuam nas manifestações populares, muitas vezes não sabem nem porque estão ali reunidos e quais as reivindicações. São vândalos, simplesmente.

JC – Há ameaças ao Estado de Direito na situação atual em que as manifestações de rua se transformaram em protestos que deixam em pânico a sociedade?
RG – Não vejo ameaça ao Estado de Direito. Qualquer ato criminoso traz pânico à sociedade, seja ele praticado em meio à multidão, ou em lugares isolados. O Estado tem o dever/poder de evitar que esses crimes sejam cometidos, trazendo de volta a paz social.

JC – Todos estão preocupados com a violência das manifestações e as autoridades se reunindo na tentativa de endurecer as leis como solução.  Temos de fato um problema grave e generalizado de segurança pública, mas a violência nas manifestações é o problema ou parte do problema?
RG – Infelizmente, o Brasil é especialista em legislação simbólica, isto é, aquela editada com a finalidade de satisfazer a opinião pública, mesmo tendo-se a convicção de que esse número excessivo de leis não é capaz de resolver um problema cuja natureza é social. Obviamente que os políticos de ocasião se aproveitam dessa legislação simbólica em seus discursos vazios, incoerentes. Se o Brasil cumprisse, efetivamente, com suas funções sociais, não haveria esse tipo de discussão. Temos, por outro lado, que apurar a participação de políticos que, segundo tem sido noticiado pela imprensa, financiam pessoas para que, infiltradas nas manifestações populares, pratiquem toda sorte de crimes. Esses políticos, da mesma forma que alguns manifestantes criminosos, caso sejam identificados, deverão responder também pela associação criminosa, além dos demais delitos que por eles foram incentivados. A violência que ocorre nas manifestações é somente mais uma, das inúmeras que acontecem, diariamente, em nosso país, e deve ser reprimida.

JC Há, historicamente no Brasil, uma crença de que a lei penal mais dura resolve os problemas. O senhor concorda?
RG – Já está mais do que demonstrado que não é pelo recrudescimento das leis que se evita a prática de crimes. Beccaria já afirmava isso em seu famoso livro Dos Delitos e das Penas, em 1764. Será que até hoje ainda não compreenderam essa realidade? Veja o que ocorreu com a Lei de Crimes Hediondos, entre tantas outras. Será que a Lei no 8.072/90 conseguiu conter a prática dos crimes por ela previstos? Obviamente que não. E se é assim, porque o país vive o pior momento da sua história, editando leis penais simbólicas? Talvez ainda não tenhamos parado para pensar que durante o período da ditadura militar tínhamos muito menos leis penais do que temos hoje, quando existe, supostamente, uma democracia. O paradoxo é evidente – regime de força, menos leis; democracia, mais leis penais. É um absurdo.

JC – Por que os que defendem o endurecimento das leis penais consideram tão difícil caracterizar, com as provas necessárias, a prisão em flagrante de vândalos nestas manifestações?
RG – Não vejo essa dificuldade. Uma vez caracterizado o delito de associação criminosa e identificados seus participantes, todos eles podem ser presos em flagrante, pois, como já disse, cuida-se de crime permanente, cuja execução se prolonga, se perpetua no tempo. Não há necessidade, vale frisar, de se esperar o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, ou mesmo de mandado judicial, pois que os membros dessa associação criminosa, quando se reúnem, o fazem para a prática de crimes. Prova disso é a entrevista que foi concedida por um dos integrantes dos chamados black blocs, na qual, este sem o menor pudor, declarou: “Nossa tática nunca foi ferir civis, mas, se não formos ouvidos, vamos dar susto em gringo. Não queremos machucar, mas, se for preciso ‘tacar’ (coquetel) molotov em ônibus de delegação ou em hotel em que as seleções vão ficar, a gente vai fazer”, disse, em entrevista ao Estadão, o estudante Pedro (nome fictício), adepto da prática em São Paulo. Segundo ele, as ações são discutidas pelos black blocs, que estão organizados no que chamam de células – pequenos grupos de até 30 pessoas que participam dos protestos juntos. “A gente evita falar pelo Facebook. Essas estratégias são combinadas pessoalmente ou pelo Whatsapp. Para dar essa entrevista, eu tive de consultar os outros adeptos”, contou.

Preciso dizer mais alguma coisa, ou alguém duvida que isso se caracteriza como uma associação criminosa, cuja finalidade é praticar um número indeterminado de crimes? Se a Justiça entender que, com relação a esses criminosos, encontram-se presentes os requisitos necessários para a decretação da prisão preventiva, essa deve ser a medida adotada, evitando-se, assim, que a ordem pública seja novamente por eles abalada se permanecerem em liber­dade enquanto durar o processo penal.

JC A proteção do Estado Democrático de Direito e da sociedade está em risco no Brasil?
RG – Temos pessoas que entendem de segurança pública em todos os governos estaduais, além do federal. Basta que se permita a essas pessoas colocarem em prática tudo aquilo que aprenderam. Ninguém quer ver cenas violentas por parte das autoridades policiais, tampouco podemos tolerar que criminosos desafiem a Polícia e as demais autoridades constituídas. Se isso acontecer, a Polícia deve agir com rigor, preservando os verdadeiros manifestantes, que buscam, como todos nós, um país melhor.

Nota do Editor ____________________________________________________________

Com a morte de Carlos Luppi, que assina as matérias desta Seção e da Seção Dom Quixote, perdeu o Brasil, perdeu o jornalismo e perderam irremediavelmente os seus inúmeros amigos e admiradores, além da sua estimada família, esposa, filhas e netas.

Carlos Luppi era detentor de acurada inteligência, cultura e espírito investigativo, que o levaram a ser considerado e homenageado com os maiores prêmios do jornalismo, tendo ganhado o Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos e sido o único brasileiro a receber o prêmio internacional Jock Elliot – “Contribuição à Humanidade”, concorrendo com jornalistas de 120 países.

Dentre seus 12 livros-reportagens, lançou o livro “Manoel Fiel Filho, quem vai pagar por este crime?”, onde desmentiu a versão oficial do II Exército de que o operário cometera suicídio.

Ingressou no jornalismo em 1968, no “Diário Mercantil”, tendo passado pelas redações da “Folha de São Paulo” e do “Jornal da Tarde” destacando-se com reportagens investigativas na área de direitos humanos.

Era redator especial da revista e do site “Justiça & Cidadania”, sendo um de seus últimos trabalhos o que segue esta nota. Deixa lacuna insubstituível na nossa publicação e maior tristeza do longevo editor que contava com o seu reconhecido trabalho na elaboração da programada e esperada biografia.