Indígenas refugiados e a crise sanitária

9 de novembro de 2021

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Introdução: crise sanitária e a judicialização de conflitos na fronteira terrestre do País

De acordo com dados publicados pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), 1% da humanidade sofre o impacto do deslocamento forçado. As consequências das emergências humanitárias de nossa época são ainda mais graves pelo fato de coexistirem com uma emergência sanitária. Quando o mundo precisa que fiquemos em casa para controlar a propagação do novo coronavírus, 82,4 milhões de pessoas enfrentam situações de extrema vulnerabilidade e são obrigadas a deixar seus lares para fugir de guerras ou de violações de direitos humanos.

Nesse contexto, medidas restritivas de circulação através de fronteiras internacionais têm sido adotadas por muitos países. O presente texto pretende abordar uma das disputas deflagradas a partir dessa tensão, concentrando-se na recente judicialização que recaiu sobre atos normativos que pretenderam fechar as fronteiras terrestres do Brasil, acarretando indevidas deportações sumárias.

A partir da perspectiva de refugiados indígenas, abordaremos o histórico que levou à edição de recente recomendação por parte do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), voltada a orientar magistradas e magistrados a enfrentar os sensíveis temas de refúgio e migrações. Encerramos a nossa reflexão analisando o potencial que pode ser extraído de iniciativas similares, capazes de antecipar a intervenção judicial necessária para conter situações gravemente violadoras de direitos humanos.

A Recomendação CNJ nº 108/2021

Em março de 2021, decisão liminar da Justiça Federal em Roraima impediu a deportação de 47 indígenas do povo Warao oriundos da Venezuela, que se encontravam em território nacional, evitando que, a título de contenção do novo coronavírus, tivessem negada a possibilidade de solicitar refúgio e fossem devolvidos à situação de grave violação de direitos humanos na qual se encontravam.

Outras decisões similares foram proferidas em todo o País, iniciando-se uma situação de instabilidade jurídica em torno da correta interpretação a ser dada às portarias do Ministério da Justiça e Segurança Pública que passaram a restringir especialmente o tráfego de pessoas oriundas da Venezuela. Nas palavras do magistrado que sentenciou a referida causa, “por alguma razão obscura, os nacionais da Venezuela, e apenas dela, entre os 193 países internacionalmente reconhecidos (esse número varia conforme a fonte de consulta)”, teriam sido os únicos aos quais não se aplicavam mitigações às barreiras de ingresso em nosso País. 

Esse conflito de decisões judiciais em um tema que repercute perante o Direito Internacional caminhou bem com a recente publicação da Recomendação nº 108, de 2021, do CNJ, abrindo-se um novo capítulo para a experiência dos refugiados indígenas em juízo.

O ato normativo recomendou aos órgãos do Poder Judiciário com competência para julgamento de questões que envolvem refúgio e migrações a observância de diretrizes estabelecidas nos tratados internacionais sobre direitos humanos, enquanto perdurar a situação de pandemia de covid-19. Em especial, propõe que os juízes avaliem “com cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto pedido de asilo no Brasil, sobretudo nas hipóteses que acarretarem deportação, devolução, expulsão ou repatriação ao país de origem ou a qualquer outro país”, e sopesem “as consequências jurídicas de restrição de ingresso de estrangeiros em território nacional à luz das garantias do devido processo legal, estabelecidas na Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017)”.

Diante desse contexto, a Recomendação nº. 108/2021 passou a ser debatida após requerimento formulado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), no próprio ano de 2021, e deveu-se, em seguida, ao trabalho conduzido pelas conselheiras Maria Tereza Uille Gomes e Flávia Moreira Guimarães Pessoa, ambas do CNJ. A Ajufe pontuou, por ofício, a sua preocupação no sentido de que a não uniformização de entendimentos jurisprudenciais em matéria humanitária sob apreciação do Poder Judiciário teria “potencial gravidade, considerando-se que as decisões confirmatórias de deportação são irreversíveis e atraem a incidência de normas de Direito Internacional que obrigam o Estado brasileiro”. A entidade anteviu que a insegurança jurídica causada por decisões judiciais que significassem inobservância de normas internacionais poderia conformar precedente indesejável.

Após reuniões envolvendo atores governamentais, organismos internacionais e sociedade civil, propôs-se um texto que rememora compromissos inafastáveis da República Federativa do Brasil, como o de garantir a todos o direito de solicitar e receber asilo, de proteção contra a devolução forçada (non-refoulement), bem como a necessidade de devido processo legal anterior às medidas de remoção compulsória. Tais obrigações estão previstas no art. 22 da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), e foram interpretados em precedentes da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos. 

Em seu núcleo essencial, a Recomendação nº 108/2021 encerra uma orientação de cautela para as magistradas e magistrados, rememorando outras normativas que vedam a concessão de medidas liminares que sejam capazes de tornar inviável a análise final do processo, esgotando o objeto da ação. A situação dos litígios havidos por força das restrições de circulação na fronteira ilustra que as deportações colidem com a legislação atual. Segundo os termos do documento, o CNJ resolve: “Recomendar aos órgãos do Poder Judiciário com competência para julgamento de questões que envolvem refúgio e migrações, especialmente aquelas que versem sobre a restrição excepcional e temporária de entrada de estrangeiros no País, que, enquanto perdurar a situação de pandemia de covid-19, avaliem com especial cautela o deferimento de tutela de urgência que tenha por objeto pedido de asilo no Brasil, sobretudo nas hipóteses que acarretarem deportação, devolução, expulsão ou repatriação ao país de origem ou a qualquer outro país”.

Conclusão: possibilidades da Recomendação nº 108/2021

Embora tenha nascido mirando a realização de funções correcionais em sentido tradicional, o CNJ gere hoje parcela expressiva das questões relativas à política carcerária, metas, indicadores, gestão, processo eletrônico, e tecnologia da informação, tratando da política pública de administração da Justiça. A Recomendação nº 108/2021 revela, por outro lado, que o Conselho pode ter um papel ativo ao evitar graves violações de direitos humanos, conferindo à independência judicial uma ótica contemporânea e não atomizada, pautada pela cooperação interinstitucional e respeito a tais direitos.

Por fim, a Recomendação nº 108/2021 chama atenção para o especial drama vivido pelos indígenas do povo Warao refugiados no Brasil e coloca o Poder Judiciário brasileiro em posição não reativa, mas dialógica e propositiva para pensar o direito ao asilo e os direitos em asilo.

Notas_________________________________

1 Cf. Informe do Acnur: Tendências Globais do Deslocamento Forçado em 2020. 2021. Disponível em:

https://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/60b638e37/global-trends-forced-displacement-2020.html. Acesso em 06/10/2021.

2 O povo Warao não habita tradicionalmente a região de fronteira com o Brasil, tendo passado a se deslocar forçadamente por várias razões, especialmente a degradação de seu território original, o delta do Rio Orinoco, que foi afetado pela indústria petrolífera, num modo que “comprometeu os locais sagrados, perturbou comunidades antes isoladas, contaminou hábitats e recursos naturais associados à sobrevivência de grupos ancestrais, introduziu novas enfermidades, como o HIV, e proliferou doenças sexualmente transmissíveis, tuberculose e outras”. Cf. Estudo do Acnur: Os Warao no Brasil: contribuições da antropologia para a proteção de indígenas refugiados e migrantes. 2021. Disponível em:

https://reporting.unhcr.org/sites/default/files/The%20Warao%20in%20Brazil%20-%20contributions%20from%20anthropology%20to%20the%20protection%20of%20indigenous%20refugees%20and%20migrants%20PRT.pdf  Acesso em 06/10/2021.

3 Trata-se do mandado de segurança nº 1001249-76.2021.4.01.4200 que tramitou perante a 2ª Vara da Seção Judiciária de Roraima.

4 Ver Portaria MJSP nº 657/2021.

5 Ver a “Convención Americana sobre Derechos Humanos” (1969), Art. 22.7: “Toda persona tiene el derecho a buscar y recibir asilo en territorio extranjero en caso de persecución por delitos políticos o comunes conexos con los políticos y de acuerdo con la legislación nacional y los convenios internacionales.” Ver também: Corte IDH. Caso de la Familia Pacheco Tineo vs. Estado Plurinacional de Bolivia, párr. 154 (2011): “El derecho de buscar y recibir asilo establecido en el artículo 22.7 de la Convención Americana, leído en conjunto con los artículos 8 y 25 de la misma, garantiza que la persona solicitante de estatuto de refugiado sea oída por el Estado al que se solicita, con las debidas garantías mediante el procedimiento respectivo.”

6 A propósito, conferir a Lei nº 8.347/1992.