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Juros constitucionais extintos

5 de janeiro de 2004

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A Constituição de 1988 representou um momento histórico e de amplas liberdades democráticas. Capitaneada por Ulysses Guimarães, foi objeto de amplas discussões e de inegáveis conquistas sociais, apelidada de Constituição CIDADÃ em função de sua alta carga de interesse social, nos legou, dentre outras coisas, a nossa lei mais avançada que é o Código de Defesa do Consumidor.

Ao tratar do sistema Financeiro estabeleceu um parâmetro de referencia social ao dispor no caput artigo 192: “O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, regulado em lei complementar, que disporá inclusive sobre”.

Este é o comando fundamental da Carta Maior em relação ao Sistema Financeiro, qual seja o interesse coletivo e a busca do desenvolvimento equilibrado. Estipulou ainda um exemplar § 3º.

“§ 3.º – As taxas de juros reais, nela incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, nos termos que a lei determinar”.

Para conceituar juros reais, podemos ficar com a definição do ministro Marco Aurélio Mello que diz: os juros reais são aqueles encontrados após a exclusão da correção monetária, ou seja, revelam tão somente a remuneração do capital, o ganho pelo credor em razão do empréstimo computadas as comissões e quaisquer outras parcelas estranhas à simples atualização da moeda”.

Não há dúvida que o constituinte buscou resgatar o interesse da sociedade privilegiando o comando genérico do caput, contudo a voracidade especulativa do mercado financeiro é pecado capital para os especuladores deste setor. Com base na parte final do caput do art. 192 iniciou-se ampla discussão sobre a aplicabilidade plena ou contida do § 3º, ou seja este dependeria ou não  de lei complementar para sua eficácia plena. Proposta a ADIN 4 o Supremo Tribunal Federal, na qualidade de guardião da Constituição decidiu em sessão plenária e por maioria de votos (6×4 – impedido o Min. Sepúlveda Pertence) entender que o dispositivo não é auto aplicável, em decisão muito mais política do que jurídica, já que tomada sob a pressão de que o mercado não resistiria a tal aplicação  e que o Brasil poderia ser levado ao caos. A partir deste momento o voraz mercado financeiro abriu guerra contra o  parágrafo  terceiro do art. 192. A perspectiva de implementação deste dispositivo passou a assombrar as instituições financeiras, tornando-se este o inimigo público número um que temporariamente estava  contido pela decisão do Supremo.

Com todo o respeito a decisão de nossa Corte Maior, não há dúvida que o alegado § 3º. Era norma de eficácia plena e, portanto de aplicabilidade imediata. Diz o professor José Afonso da Silva, emérito constitucionalista sobre o assunto: “Se o texto em causa fosse um inciso do artigo, embora com normatividade autônoma, ficaria na dependência do que viesse a estabelecer a lei complementar, mas tendo sido organizado um parágrafo, com normatividade autônoma, sem refir-se a qualquer previsão legal ulterior, detém eficácia plena e aplicabilidade imediata. O dispositivo, aliás tem autonomia de artigo.

Foi extremamente relevante a defesa dos integrantes do judiciário contra a chamada Súmula vinculante particularmente neste aspecto, já que, na prática, boa parte dos juízes passou a considerar o § 3º do art. 192 como sendo de eficácia plena e fator de limitação aos lucros estratoféricos das instituições financeiras em detrimento do consumidor. Por isso, milhares de ações foram vencidas pelos consumidores com base nesta liberdade de interpretação dos Juízes, principalmente no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro. Apenas para ilustrar este comentário transcrevo trecho de relatório de Acórdão de turma Recursal do estado do Rio de Janeiro de 13 de março de 2003, relatora Dra. Juíza Maria Cândida Gomes de Souza:

“O limite dos juros de mora aplicável às administradoras de cartão de crédito é de 12% ao ano, na forma do art. 192, §3º., que entendo auto-aplicável, diferentemente do entendimento da julgadora, pois nada impede efetividade de sua incidência, já que lá fixados os parâmetros máximos, sem qualquer menção a situações restritivas à  sua aplicação, referindo-se, ao contrário, expressamente a concessões de crédito.” ( Proc. Nº. 2002.700.023252-7. Rel. Juíza Maria Cândida Gomes de Souza. Sessão 13/03/2002 – Decisão Unânime)

O resultado das pressões do mercado Financeiro contra o parágrafo do artigo 192 resultou na Emenda Constitucional Federal, além do caput  do artigo 52 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. O artigo 163 e o artigo 192  que trata do sistema financeiro nacional perderia seus parágrafos, restando apenas o comando genérico do caput.

Esperava-se do novo governo um posicionamento definido em favor do interesse da maioria da população, entretanto o governo de Lula manteve uma posição bem clara em favor da a provação da Emenda Constitucional 40 no Congresso Nacional e de defender a proposta na Câmara e no Senado.

A União optou por um retrocesso no ponto de vista social e paar tranqüilizar essa figura que assombra o nosso mundo moderno chamado mercado, optou por libertar o mercado financeiro dos incômodos que a Constituição cidadã de 1988 o obrigou a passar. E ainda comemorou como sendo a primeira grande vitória do novo governo no Congresso Nacional.

As ações mais comuns, onde se discute o chamado teto de juros reais seriam justamente aquelas que envolvem instituições financeiras como os encargos aplicados no cheque especial, no cartão de crédito, nos contratos de leasing, etc. O combate aos juros abusivos cobrados por instituições financeiras pode e deve ainda ser feito com base na lei do consumidor, já que qualquer clausula que acarrete o desequilíbrio contratual pode ser declarada nula pelo judiciário, por força de onerosidade excessiva (art. 51, IV, Lei 8078/90), sendo também direito do consumidor a modificação de qualquer cláusula contratual que estabeleça prestação desproporcional ou sua revisão em razão de fato superveniente que a torne excessivamente onerosa (art. 6.º, v, Lei 8078/90).

A população deve continuar procurando a Justiça para defesa de seus direitos, apesar da extinção dos juros constitucionais, o judiciário é a derradeira fronteira do cidadão contra os abusos cometidos pelos fornecedores no mercado de consumo e o código de defesa do consumidor permanece como sendo ágil instrumento na defesa dos direitos dos cidadãos. Mesmo que se entenda a retirada do teto constitucional dos juros reais como uma perda em desfavor do consumidor, uma série de outros encargos abusivos costumam vir embutidos nas cobranças destas instituições como os juros capitalizados (anatocismo), a acumulação de correção monetária com taxa  de permanência e mesmo abusos de juros reais, agora sem o teto da Constituição que devem ser alvo de decisões judiciais. Nestas questões, o judiciário tem se mostrado intransigente da defesa dos consumidores e contra os abusos do sistema financeiro, destacando-se, neste particular, o Superior Tribunal de Justiça.

As baterias do mercado financeiro se voltam contra a lei 8078/90, nosso Código de Proteção e Defesa do Consumidor, novo inimigo público número um do mercado financeiro. As atenções são agora para a Ação Direta de Inconstitucionalidade impetrada no fim de 1991 pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) junto ao Supremo Tribunal Federal, cujo objetivo é retira a incidência do Código de defesa do consumidor de suas atividades e que ainda não obteve resultado definitivo. Sem adentrar ao mérito desta discussõa, todos os profissionais de direito, assim como de resto toda a sociedade aguarda a solução do Supremo Tribunal Federal nesta questão. Espera-se que desta vez a vencedora seja a sociedade e que o alívio concedido pelo governo ao mercado financeiro fique apenas no âmbito da Emenda Constitucional 40. E ainda que os juízes entendam que a Súmula vinculante não vigora no Brasil, por enquanto.