Justiça climática em perspectiva de gênero

12 de março de 2024

Juíza Federal / Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Gênero, Direitos Humanos e Acesso à Justiça da Enfam

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Os estudos ambientais ocupavam-se tão somente de pesquisas sobre as emissões de carbono e escassez de alimentos, sem considerar a interseção entre o meio ambiente e as questões sociais. A partir do desenvolvimento de estudos interseccionais essa realidade foi se modificando e, atualmente, inclusive na ordem internacional, é feita relação direta entre a desigualdade de gênero e o aumento dos impactos negativos das mudanças climáticas. De acordo com a ONU Mulheres (2023), as desigualdades de gênero, que já existem na sociedade, tendem a se intensificar diante da crise climática. 

Enquanto o mundo tenta limitar o aumento da temperatura global a partir do Acordo de Paris, e busca uma transição energética limpa, as consequências das mudanças climáticas já atingem as mulheres, agravando a desigualdade de gênero e elevando os índices de violência contra elas. O desequilíbrio ambiental não é só uma questão ecológica, mas, na verdade, se apresenta como uma crise social (ANDRADE, 2020). 

Justiça ambiental e climática – A justiça climática é um movimento recente que tem origem na justiça ambiental, estando associada à percepção de como os impactos das mudanças do clima atingem de forma diferente os indivíduos e grupos, conforme apresentem condições de vulnerabilidade social e discriminação.

A justiça ambiental representou, de acordo com Henri Acselrad, “um movimento de ressignificação da questão ambiental”, porque, anteriormente, os danos ambientais eram reconhecidos por atingir indistintamente todos os indivíduos, a partir da ideia de que eram partilhados de forma igualitária. Inicialmente a questão ambiental estava dissociada da análise social, mas percebeu-se que os riscos ambientais atingiam os indivíduos de diferentes formas, de maneira que, dependendo da origem e da questão social, as pessoas poderiam ser mais ou menos impactadas pelos danos ambientais.

De acordo com Andrade, “o movimento  de  justiça  ambiental  surge  nos  Estados  Unidos,  em meados  da  década de  1980,  como  uma crítica profunda  a essa distribuição desigual dos riscos  ambientais”. O movimento se insurgiu contra a instalação de descarte de resíduos sólidos próximo a uma comunidade negra nos Estados Unidos, provocando a discussão do motivo pelo qual as atividades potencialmente poluidoras estariam mais concentradas em bairros com população negra. 

A gênese da justiça ambiental está associada ao racismo ambiental, em razão da constatação de que as minorias raciais estão mais propensas a sofrerem com os riscos de eventuais acidentes ambientais. (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009). Pesquisas realizadas sobre os impactos das modificações ambientais constataram que “as comunidades mais pobres e discriminadas são também aquelas mais vitimadas pelos processos de alteração do clima”. O acesso desigual ao meio ambiente se expressa na concentração de riquezas nas mãos de poucos, pois “estima-se que 20% da população mundial consome entre 70% e  80% dos recursos do mundo”. 

Ainda que o uso dos recursos ambientais esteja nas mãos de poucos, aqueles que não participam da concentração de riquezas são os que mais sofrem com os danos ambientais. Não é possível separar a crise ambiental da desigualdade social, de modo que os mais vulneráveis serão aqueles que mais sofrerão com as mudanças climáticas. Agregaram-se  ainda outros fatores para repensar a justiça ambiental a partir dos grupos discriminados, como os povos indígenas e as mulheres. 

Gênero e mudanças climáticas – Sem adicionar, por enquanto, a crise climática como fator que aumenta a desigualdade e a violência de gênero, os dados de pesquisas nacionais revelam que as mulheres sofrem intensamente com a violência contra seus corpos, são discriminadas no mercado de trabalho, percebendo salário inferior ao dos homens, e ainda dedicam, sem remuneração, quase o dobro de horas em atividades domésticas e de cuidado.

Pesquisa do Fórum de Segurança Pública “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” (2023) aponta que quase 30% das mulheres já foram vítimas de algum tipo de violência. Em 73,7% dos casos, a violência foi causada por algum conhecido da vítima, sendo os principais autores os ex-cônjuges, ex-companheiros ou ex-namorados. Em se tratando de assédio sexual, 46% das mulheres brasileiras disseram já terem sido vítimas.

Ainda que as mulheres sejam a maioria no ensino superior, elas continuam sendo preteridas em seus postos de trabalho. Conforme dados do IBGE de 2021, elas recebem apenas 77,7% do salário dos homens para exercerem as mesmas funções. Quanto maior a remuneração do cargo, menos as mulheres recebem comparativamente ao sexo masculino.  A respeito da ocupação de cargos gerenciais, apenas 37,4% dessas vagas são compostas por mulheres e, quando se analisa o elemento racial,  a desigualdade é ainda mais aparente.

Toda essa conjuntura social reflete o modo pelo qual a sociedade tem sido construída. Sobre uma estrutura patriarcal, as mulheres têm sido colocadas em situação de subordinação, em que são exaltados papéis masculinos ao mesmo tempo em que se diminui a condição feminina.

Tomando como ponto inicial a teoria do contrato social, em que os indivíduos cedem parcela de seu poder para formação dos Estados, Carole Pateman (1993) fala que o contrato original, na verdade, é um pacto sexual-social e representa uma parte da história perdida da humanidade, em que o patriarcado se estabeleceu. 

Enquanto o contrato social é uma história sobre a garantia da liberdade de todos, o contrato sexual representa a dominação do masculino sobre o feminino. O contrato é considerado sexual “no sentido de patriarcal – isto é, o contrato cria o direito político dos homens sobre as mulheres –, e sexual no sentido do estabelecimento de um acesso sistemático dos homens aos corpos das mulheres” (PATEMAN, 1993). Trata-se, portanto, do meio pelo qual o patriarcado moderno se constituiu.

Para Alda Facio (1992), o sexismo e a crença na superioridade masculina criaram uma rede de privilégios para os homens, mantendo o sexo feminino em uma relação de subordinação (FACIO MONTEJO, 1992). Fabiana Severi (2016) explica que os estereótipos de gênero representam crenças embutidas na sociedade que criam e reproduzem características e comportamentos que se esperam de homens e mulheres. À medida em que esses papéis de gênero são estabelecidos e repassados ao longo dos anos, “a sociedade cria hierarquias entre os gêneros que, historicamente, têm servido para fortalecer e legitimar a subordinação social das mulheres e o controle sobre seus corpos” (SEVERI, 2016).

Ainda segundo o documento produzido pela ONU Mulheres (2023), as desigualdades de gênero são intensificadas diante das mudanças climáticas e isso ocorre porque a violência de gênero, já existente na sociedade, tende a aumentar diante de crises. Em situação de normalidade institucional e climática, as mulheres têm remuneração inferior no trabalho, têm menos acesso a financiamentos, empregos e a recursos produtivos.  No entanto, com a modificação dos padrões climáticos, essas desigualdades tendem a aumentar.  

Adicionalmente, os impactos do clima sobre as estruturas sociais, os serviços públicos e a produção de alimentos provocam a diminuição do acesso aos recursos de sobrevivência. Como as mulheres já possuem condições desiguais na sociedade, esse contexto tem propensão ao agravamento.

A publicação da ONU Mulheres “Feminist Climate Justice” explica que a desigualdade de gênero expõe as mulheres a maiores riscos provocados pelas alterações climáticas e a violência de gênero aumenta em momentos de crise, como na atual crise climática. Segundo a ONU, a escassez de água aumenta o percurso que as mulheres precisam fazer para ter acesso à água potável, expondo-as a situações de maior risco de estupro. Isso porque as tarefas de cuidados domésticos são impostas como papéis de gênero às mulheres, que gastam 2.8 horas a mais que os homens no exercício dessas atividades sem remuneração. 

Nas Conferências sobre o Clima é possível observar a preocupação a respeito da interseccionalidade entre o gênero e as alterações do meio ambiente.  O Acordo de Paris, fruto da 21a Conferência das Partes, é reconhecido como o documento internacional que trouxe medidas de redução das emissões de dióxido de carbono na atmosfera. Enquanto o Protocolo de Kyoto, aprovado em 1997, propunha a redução da emissão de gases do efeito estufa para os países considerados desenvolvidos, deixando fora desse compromisso os países em desenvolvimento, como o Brasil; o Acordo de Paris criou o compromisso de todos com a contenção do aumento da temperatura do planeta, além de cada um dos signatários ter se comprometido com a instituição das contribuições nacionalmente determinadas.

Neste acordo há a preocupação interseccional entre as mudanças do clima e as especificidades envolvendo  os direitos humanos, de forma específica o direito à saúde, povos indígenas, comunidades locais, migrantes, crianças, pessoas com deficiência e em situação de vulnerabilidade, com enfoque na igualdade de gênero, no empoderamento das mulheres e na equidade intergeracional. O acordo deixa claro que as ações dos países para tentar frear as mudanças climáticas não devem ser dissociadas das questões sociais e, especificamente, das questões de gênero, destacando aqui a preocupação com os direitos das mulheres e meninas.

No Brasil, embora haja a Política Nacional sobre Mudanças Climáticas (Lei no 12.187/2009) e o seu regulamento (Decreto no 9.578/2018), essas normas não dispõem sobre a interseção entre as mudanças do clima e o gênero, indicando a necessidade de novos caminhos e novas interações para a condução de uma política climática em perspectiva de gênero.

Considerações finais – As mudanças climáticas têm demonstrado que a desigualdade observada na sociedade também se reproduz no acesso e na proteção ao meio ambiente. Nesse contexto, pensar os rumos das modificações do clima, a partir da justiça climática, traduz  uma nova aspiração por igualdade de gênero, colocando as mulheres de forma interseccional nas discussões sobre o clima.

NOTAS/REFERÊNCIAS:

ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais: o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados[S. l.], v. 24, n. 68, p. 103-119, 2010. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/eav/article/view/10469. Acesso em: 26 fev. 2024.

ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do Amaral; BEZERRA,  Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental?  Rio de Janeiro: Garamond, 2009.

ANDRADE, Camila Damasceno de. Justiça Ecológica e Subalternização Feminina / Ecological Justice and Female Subalternization. Revista Direito e Práxis[S. l.], v. 11, n. 2, p. 808–830, 2020. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/revistaceaju/article/view/39509. Acesso em: 22 fev. 2024.

FACIO MONTEJO, Alda. Cuando el género suena câmbios trae (uma metodologia para el análisis de género del fenómeno legal). 1a ed.. San José, C.R.: ILANUD, 1992

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA.  Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil. 4a ed.. 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/03/visiveleinvisivel-2023-relatorio.pdf. Acesso em: 4 mar. 24.

IBGE. Estatísticas de gênero: indicadores sociais de mulheres no Brasil. 2a ed. Estudos e pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconômica n. 38, 2021. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_informativo.pdf. Acesso em: 4 mar. 24.

NACIONES UNIDAS. Convención Marco sobre el Cambio Climático. Conferencia de las Partes, 1997. Protocolo de Kyoto.  Disponível em: https://unfccc.int/documents/2409. Acesso em: 3 mar. 24.

NACIONES UNIDAS. Convención Marco sobre el Cambio Climático. Conferencia de las Partes, 21 período de sesiones.  Acuerdo de París. 2015. Disponível em: https://unfccc.int/sites/default/files/resource/docs/2015/cop21/spa/l09r01s.pdf. Acesso em: 3 mar. 24.

PATEMAN, Carole.  O contrato sexual. Tradução Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.

ROBINSON, Mary. Justiça climática: esperança, resiliência e a luta por um futuro sustentável.  Tradução Leo Gonçalves. 1a ed.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

SEVERI, Fabiana Cristina. Justiça em uma perspectiva de gênero: elementos teóricos, normativos e metodológicos. Revista Digital de Direito Administrativo, vol. 3, n. 3, p. 574-601, 2016. Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/002904550. Acesso em: 4 mar. 24.

UN WOMEN. Feminist Climate Justice: a framework for Action. 2023. Disponível em: https://www.unwomen.org/sites/default/files/2023-12/Feminist-climate-justice-A-framework-for-action-en.pdf. Acesso em: 22 fev. 24.

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