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Liberdade de empresa, compliance e parâmetros éticos essenciais no mundo virtual

2 de junho de 2019

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Se a livre concorrência garantida constitucio­nalmente no ordenamento jurídico brasileiro (Constituição Federal/ CF, art. 170, IV) é um dos pressupostos legais necessários que viabilizam o exercício da liberdade de empresa, não menos verdadeiro é o fato de que as empresas dependem antes do preenchimento material das condições prático-necessárias para o desenvolvimento dinâmico de tais atividades a fim de bem concorrer.

A liberdade de empresa, no entanto, encontra limites no próprio art. 170 da CF. Esse pequeno paradoxo entre liberdade e limites é apenas aparente; se por um lado lhe são garantidas (às empresas) a liberdade advinda de ambiente saudável de livre concorrência, por outro, essa mesma liberdade exige limites éticos e a observância de princípios legais para se sustentar efetivamente.

Hodiernamente, na realização material daquelas condições, não é mais possível imaginar empresas de médio ou pequeno portes que possam prescindir do marketing digital, que não possuam algum site, hotsite, vlog, blog, wikiblog, etc., que não possuam presença em redes sociais ou em buscadores, que não possuam ao menos um aplicativo para plataformas móveis, que, enfim, não se utilizem em sua logística de ferramentas de comunicação instantâneas e ao mesmo tempo sobrevivam em um mercado tão competitivo. Para além de instrumentais mais eficientes do ponto de vista da aplicação de recursos disponíveis, servem de elementos essenciais de prospecção, fidelidade, e proximidade com a clientela. Essa proximidade exige clara percepção de como obter e tratar os dados referentes aos interesses das massas de consumidores. Informação aqui vale muito dinheiro.

Dados pessoais como idade, gênero, formação acadêmica, renda familiar, deslocamentos físicos realizados, locais e hora de compra, última compra efetivada, dados bancários, psicográficos – predileções específicas e gostos momentâneos, para dizer o mínimo – são todos eles coletáveis, e muitas vezes de forma anônima, a fim de traçar estratégias mercadológicas. A possibilidade de ter seu café da manhã, imagens, vídeos, lugares visitados, assuntos conversados, número do cartão de crédito ou exame de sangue expostos publicamente ou compartilhados ocultamente entre anunciantes todos os dias é exagero que poucos aceitariam conscientemente e de bom grado.

É bem possível dizer que vivemos uma era em que o direito à privacidade pode facilmente se esfacelar em práticas éticas empresariais muito comprometedoras no mundo virtual. Nesse caminho, a missão do compliance é, de modo geral, a busca de um agir, prévio ou detectivo, autocorretivo, que possa facilmente ser verificado pela coletividade por meio de padrões de conformidade ética. Surge assim a demanda crescente pela “política de privacidade”, documento de natureza jurídica que, para além de claro, deve se atentar para os limites da liberdade de empresa em respeito aos cidadãos usuários.

É perfeitamente ético dentro da perspectiva da boa-fé objetiva exigir-se de sites que pretendam expor seus produtos, serviços ou utilidades, mesmo os totalmente gratuitos ou com essa pretensa gratuidade, que deixem explicitadas suas políticas de privacidade, adotando procedimentos e controles internos compatíveis com os dados que pretendam coletar e o volume de suas respectivas operações. Tal política de privacidade, que não deve ser confundida com os “termos de uso”, ainda que estes possam compreender e englobar aquela, deve também ser compartilhada com todos os stakeholders, colaboradores da empresa, diretores, chefes, gerentes, empregados, fornecedores e, enfim, proprietários, acionistas e usuários. Este é o mínimo a se exigir em um Estado Democrático de Direito dentro do tipo de organização econômica respaldada pela Constituição.

Ocorre que o armazenamento de dados advindos do exercício da política de privacidade pode ser não só temporário, mas, por diversas razões, permanente – o que implicaria responsabilidade adicional por parte das empresas. Dados armazenados de forma permanente exigem tratamento especial, a exemplo das criptografias de ponta a ponta, as quais evitam consideravelmente o êxito daqueles que poderiam ser considerados “crimes virtuais tipificáveis”, tais como furto ou mesmo extorsão mediante sequestro de dados, chantagens, espionagens e cópias ilegais, pela inutilidade dos dados em razão da impossibilidade de leitura quando obtidos. Ademais, os usuários devem estar sempre protegidos da coleta indiscriminada, venda ou disponibilidade de seus dados pessoais e, inclusive, contra empregados dispensados ou demitidos e empresas parceiras ou fornecedoras descontentes que tiveram acesso a informações privilegiadas em razão do exercício de suas atividades.

Caso recente que ganhou os holofotes mundiais foi o decorrente do envolvimento da empresa Cambridge Analytica, que combinava a prospecção e análise de dados a fim de servir como elemento de decisão estratégica em período eleitoral, empresa esta que teria se utilizado da rede social Facebook. Se o impacto do exercício dessa liberdade empresarial pode ser questionado no que diz respeito à influência no processo eleitoral norte-americano, não pode ser minimizado aqui no que diz respeito à privacidade dos cidadãos a pretexto de comunicação estratégica mais eficiente com fulcro na liberdade de empresa.

Independentemente, no entanto, de culpados, a falta de mitigação de riscos via compliance pode levar à descredibilidade da empresa por atentar contra a integridade ética, o que leva a custos maiores do que o próprio monitoramento preventivo e detectivo. Não é sem razão que sua presença efetiva (do compliance), do contrário, deve ser elemento considerado pelo Poder Público como minorante de penas, quando aplicáveis aos casos concretos, e uma abertura viável a sanções positivas, tais como eventuais incentivos tributários. De certo, o departamento de compliance ou a unidade que o compõe, que corresponde muitas vezes a uma espécie de auditoria interna, não é, e provavelmente nunca será, o setor mais popular da empresa, necessitando de certa autonomia e independência em prol da imparcialidade, sob pena de não se prestar a seu fim. Constitui-se, pois, como limite interno à liberdade de empresa, por se destinar a formação da razoabilidade das ações da alta gestão, as quais, muitas vezes, respondem internamente apenas a si mesmas na ausência de um Conselho Fiscal ou Deliberativo instalado e atuante.

Outro instrumento legal igualmente importante e que deve estar à disposição dos usuários é o já citado “termos de uso”. Tais termos, dentro dos limites da liberdade contratual, além da identificação da empresa, dos direitos e deveres contratuais gerais e específicos, da tão importante transparência, devem fixar as “regras de uso aceitáveis”, o que implica o compromisso ético em reprimir atividades internas e externas que violem quaisquer leis ou regulamentos, o compromisso em moderar na Internet aquelas atividades que possam implicar suspeitas de atividades ilícitas, inclusive incentivando seus usuários e colaboradores a informar violações imediatamente, ou mesmo abrindo amplos canais para esclarecimento de dúvidas sobre a possibilidade de algum tipo de transação incomum.

Transações efetuadas, incluindo aquelas realizadas por usuários anônimos sem a participação direta da empresa, mas por ela instrumentalmente viabilizadas e que envolvam narcóticos, substâncias controladas ou que possam oferecer risco ao consumidor; oferta de produtos que incentivem, promovam, facilitem ou instruam outras pessoas a envolver-se em atividades ilegais; que promovam ódio, violência, intolerância racial ou outras formas de intolerância; produtos que infrinjam ou violem quaisquer direitos autorais, marca comercial ou qualquer outro direito de propriedade; transações que envolvam o propósito de suborno ou corrupção são apenas alguns dos muitos exemplos que devem ser expressamente coibidos e que merecem atenção especial do compliance. “Política de privacidade”, “termos de uso” e “regras de uso aceitáveis” constituem-se, assim, parâmetros iniciais viáveis na busca da construção de ambiente favorável à elaboração de necessário código de ética no mundo virtual, em prol da livre concorrência e da liberdade de empresa.

Como se dará no ciberespaço a liberdade de empresa no futuro, contudo, é tema que está ainda por se desvelar e necessitará ser consolidado. Se, a título meramente exemplificativo, o direito de greve é hoje um limite a tal liberdade no que tange ao alcance de alguma justiça social, com a realidade crescente do home office e das plataformas digitais como meio de trabalho, poderá o mesmo se transformar radicalmente a fim de garantir direitos ou exigir melhores condições de trabalho. O que vemos, no entanto, e com muita clareza, é a inevitabilidade da tecnologia, de sua dinâmica própria e do necessário e inarredável compromisso ético de todos aqueles que colaboram com o sucesso empresarial e que dele em qualquer medida usufruem.

Nota__________________

1 Termo inicialmente cunhado e desenvolvido pelo filósofo estadunidense e professor R. Edward Freeman (1951).