Liberdade de expressão na era da pós-verdade

3 de agosto de 2022

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I. INTRODUÇÃO

Ele disse: sabe a razão de eu fazer isso? Faço isso para desacreditar todos vocês, para humilhar todos vocês, para que ninguém acredite quando vocês escreverem matérias negativas a meu respeito.[1]

Frase atribuída ao então candidato presidencial Donald Trump em conversa com a jornalista de TV Lesley Stahl, em 2016, sobre o uso sistemático da expressão fake news media por ele como ferramenta de ação política contra a credibilidade do jornalismo profissional.

“Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada (…) E um povo que não acredita mais em nada não pode tomar decisões. Ele é privado não apenas da sua capacidade de agir, mas também de sua capacidade de pensar e julgar. E com esse povo você então pode fazer o que quiser”[2]

Da filósofa política Hannah Arendt, que dedicou sua obra ao estudo dos movimentos autoritários e totalitários do Século XX, em entrevista de TV concedida a Roger Errera em 1973 sobre o recurso à mentira como arma no debate público.

Mais de quatro décadas da história contemporânea separam as duas falas anteriores, mas não é difícil fazer uma vinculação entre elas, tomando como base a erosão da confiança nas instituições democráticas, aí incluída a própria mídia tradicional. Já não se acredita em mais nada. É preciso reconhecer: revelam-se proféticas as palavras de Hannah Arendt para o momento histórico em que vivemos, que se convencionou chamar, em alguns âmbitos acadêmicos e jornalísticos, de “era da pós-verdade”.

A comemoração do bicentenário da independência do Brasil ocorre neste momento turbulento da história. Nele tem sido necessário reiterar a importância crucial para a paz social tanto da verdade factual como das instituições democráticas, pelas quais gerações de brasileiras e brasileiros tanto lutaram e continuam a lutar.

Com relativo êxito inicial, atores do mundo político em diferentes países aproveitaram a onda antissistema e antipolítica corrente nas ruas na década de 2010, para chegar ao poder pela via democrática. Essa conquista ocorreu mediante o recurso a estratégias de mobilização e comunicação diretas com seus seguidores. Baseou-se, ainda, na compreensão de que o novo paradigma da comunicação digital oferecia campo fértil para inflamar paixões e ressentimentos latentes contra a política, os partidos políticos, as instituições democráticas, a mídia e as instituições que se ocupam da busca pela verdade factual. Todos foram convertidos em alvos da frustração, e nãoraramente chegaram a ser tratados como inimigos públicos.

O autor Giuliano Da Empoli, um dos primeiros a estudar o fenômeno do uso das novas tecnologias como armas, tomando como ponto de partida o surgimento e o funcionamento do Movimento Cinco Estrelas, na Itália, define essas novas forças com a poderosa imagem de “Engenheiros do caos”, título de seu livro publicado em 2019[3].

Atentas às promessas não cumpridas pela globalização e pelo establishment e sobretudo às novas fronteiras da comunicação digital, essas forças, com base em um apoio social concreto, passaram a tensionar as regras do jogo da convivência democrática, invocando a liberdade de expressão como escudo para quaisquer de suas manifestações públicas.

Nesse ambiente social conturbado, os sistemas de justiça e, em particular, as cortes constitucionais e as cortes supremas dos países democráticos passaram a ocupar de forma crescente, nos últimos anos, papel central no debate público. Um debate acalorado, com forte tendência à polarização, ao sectarismo e ao ruído, amplificado por ferramentas tecnológicas responsáveis por profundas mudanças de hábitos e comportamentos humanos, com efeitos colaterais potencialmente danosos à construção de consensos e à própria convivência democrática.

Um entendimento mais preciso e atual dos desafios da liberdade de expressão na contemporaneidade requer sua contextualização quanto aos impactos dessa chamada era da pós-verdade no debate público, tendo em vista as novas ferramentas e fronteiras da revolução tecnológica, as mídias digitais, as redes sociais e suas plataformas e o impacto da desinformação no Estado Democrático de Direito.

II. A ERA DA PÓS-VERDADE E O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

As inovações tecnológicas costumam ser recebidas, ao longo da história, com interesse e até mesmo fascínio. Seus potenciais efeitos negativos tendem a ser encarados com complacência e relegados a um segundo plano, pelo menos até que se manifestem, em geral anos depois.

Nos momentos de lua-de-mel com essas inovações, os alertas em face de efeitos negativos ou propostas de regulação tendem a ser recebidos com ceticismo ou como uma intromissão indevida do Estado no ambiente econômico e social. Esse processo ocorreu também com o advento da tecnologia digital, da Internet e de ferramentas tecnológicas rapidamente massificadas em escala planetária, com os smartphones e as redes sociais.

Mais de duas décadas de convivência com essas tecnologias permitem uma avaliação serena sobre seu uso dual. A contaminação do debate social, em um amplo leque de situações, com efeitos coletivos e individuais nefastos, tem sido amplamente documentada por estudiosos do fenômeno no mundo inteiro.

A psicóloga social norte-americana Shoshana Zuboff estudou a fundo o modelo de negócio dos conglomerados internacionais que controlam as redes sociais e suas plataformas – as chamadas big techs e cunhou o termo “capitalismo de vigilância”, que tem na utilização indiscriminada de dados pessoais dos usuários um elemento de manipulação e de rentabilidade. Para a autora, estabeleceu-se uma nova ordem econômica, na qual a experiência humana passa a ser a matéria-prima para práticas comerciais ocultas de extração de informações, previsão de comportamentos e de vendas.

No livro “A era do capitalismo de vigilância”, traduzido para o português e lançado em 2020, Zuboff relaciona esse fenômeno a uma “lógica econômica parasítica” subordinada à “modificação de comportamento”[4]. Ela define a nova ordem como uma “funesta mutação do capitalismo marcada por concentrações de riqueza, conhecimento e poder sem precedentes na história humana”[5].

No original, em inglês, cuja primeira edição foi lançada em 2019, Zuboff usa o termo “rogue mutation”, que também pode ser traduzido como mutação desonesta ou trapaceira. A autora alerta para “uma nova ordem coletiva” e “uma destituição da soberania dos indivíduos”[6], que, a meu ver, merecem atenção prioritária da sociedade e das instituições democráticas em todo o mundo.

Em seu livro “They don’t represent us – Reclaiming our democracy”, de 2019, o professor de Direito da Universidade de Harvard e ativista Lawrence Lessig recorre à metáfora da dependência química para os usuários da Internet. Lessig traça uma comparação direta entre o efeito negativo do papel das plataformas e seus algoritmos na produção de mecanismos psicológicos de engajamento e o hipotético caso de um dono de bar que recorre sistematicamente a uma substância capaz de induzir maior consumo de álcool pelos clientes, sem o conhecimento deles. O autor chega a usar a figura do “drink adulterado” e propõe, nesse trecho da obra, um debate sobre a responsabilidade social das plataformas em matéria de regulação, diante dos potenciais danos do uso indevido de seus canais nas sociedades democráticas em geral, nas quais a liberdade de expressão é um elemento central[7].

Quando falamos das chamadas big techs, que administram as plataformas, não cabe mais falar em território livre da Internet, não cabe trabalhar com um cenário sonhado, idealizado da virada para o Século XXI, já há mais de duas décadas.

De lá para cá, a humanidade aprendeu muito, e continua a aprender. A realidade dos últimos anos no Brasil e no mundo dispensa referências detalhadas aos múltiplos efeitos colaterais nefastos dos abusos na Internet e do poder dos algoritmos, até mesmo para gerar dependência entre os usuários.

Dois eventos recentes demonstram que esse aprendizado é capaz de produzir reações à altura do desafio, no âmbito político: na segunda quinzena de abril de 2022, a União Europeia aprovou legislação pioneira (batizada, em inglês, de “Digital Services Act”) voltada a combater à desinformação e a exigir das grandes plataformas maior transparência e vigilância em relação aos efeitos colaterais indesejáveis do recurso a algoritmos, como a disseminação de discursos de ódio, de propaganda extremista e de outros materiais considerados ilegais.

No mesmo período, o ex-presidente norte-americano Barack Obama foi à universidade californiana de Stanford, no coração do Vale do Silício, para proferir um discurso sobre o profundo impacto negativo da desinformação para a saúde da democracia contemporânea e sobre a necessidade de regulação e autorregulação das grandes plataformas de redes sociais[8].

É mais preciso, portanto, no momento, falarmos no negócio da Internet, que se converteu em um dos mais prósperos ramos da chamada “economia da atenção” [9], hoje plenamente estruturada e monetizada. Na “economia da atenção”, a disputa pelo cada vez mais escasso tempo das pessoas reserva prestígio, dinheiro e poder aos vencedores das batalhas por cliques e likes. Pela atenção e poder em jogo, tem valido tudo. Inclusive o recurso à manipulação, por meio de recursos tecnológicos sofisticados de predição de comportamentos, e à incitação de violência política, como vimos recentemente no Brasil e em outras democracias.

Sobre esse modelo de negócio das plataformas e seu impacto corrosivo para a convivência democrática em escala global, o professor Lawrence Lessig apresenta, no livro já citado, chocante argumento em favor, justamente, de limites e de controle social. Diz ele:

Somos cutucados, manipulados, nos tornam felizes, solitários, ficamos com raiva, nos antagonizamos para que o Facebook e similares possam vender mais anúncios. Pense nisso: se tivéssemos destruído a democracia para que pudéssemos erradicar a fome mundial, se tivéssemos tornado impossível o entendimento para que pudéssemos achar a cura do câncer ou acabar com a mudança climática, quem sabe aí poderíamos pensar se o sacrifício teria valido a pena. Mas todo o sacrifício aqui é para que se possa vender mais anúncios.[10]

E acrescenta:

Internet não é sinônimo do mal. Até que passa a sê-lo. Porque, acima de qualquer coisa, há o seguinte dado: as plataformas modernas de mídia podem estar tornando-nos incapazes como cidadãos e cidadãs. A democracia é empobrecida para que o Facebook possa enriquecer.[11]

Em obra recente, “No-cosas – Quiebras del mundo de hoy”, na versão em espanhol, focada no impacto da tecnologia sobre a percepção humana, o filósofo Byung-Chul Han defende a tese de que a humanidade migra de uma realidade em que as “coisas” perdem espaço para “não coisas”, com destaque para a “informação”.

A informação está ao alcance das pontas dos dedos dos phono sapiens[12], para os quais a veracidade deixou de ser preocupação prioritária. Nessa transição em curso, na avaliação do filósofo, o smartphone passa a ser o verdadeiro protagonista, como intermediário de nossas percepções e interações com o mundo, e também fonte por meio da qual “diferentes atores nos dirigem e nos distraem”, a partir de informações pessoais que cedemos às plataformas em troca de acesso a produtos e serviços virtuais[13]. “A liberdade de usar a ponta dos dedos é, portanto, uma ilusão”, na visão do autor. “A livre escolha é, na realidade, uma seleção consumista”[14].

Muitos não se importam com a veracidade da informação porque estão entre aqueles que não acreditam mais em nada, como previu Hannah Arendt. Outros aderiram à seleção consumista sem dar-se conta disso. Outros tantos alinharam-se a lideranças e teorias que apostaram na desinformação, no ressentimento, no medo e na intolerância como fatores de mobilização e de coesão, em benefício próprio – seja ele político, econômico ou de prestígio.

Não pretendo aqui menosprezar os pecados da política, da sociedade e da própria mídia na chamada recessão democrática que vivemos[15]. Mas é inegável a escala sem precedentes das plataformas e o impacto negativo do seu modelo de negócios para a convivência democrática.

Atualmente, não se pode analisar a liberdade de expressão sem levar em conta esse novo cenário, cujos mecanismos tecnológicos e contornos são ainda desconhecidos pela grande maioria. Afinal, não é mera coincidência o fato de que centenas de milhares de compatriotas – vários deles parentes, amigos ou conhecidos de cada um de nós – que até há pouco professavam seu desprezo pela política, tenham se convertido em aguerridos e intolerantes integrantes de facções no debate público de hoje: converteram-se em “guerreiros de teclado”, para usar um jargão da Internet.

Nesse período mais recente da história, já em plena era dos smartphones, a professora Nora Pavão, da Universidade Federal de Pernambuco, conduziu estudos reveladores a respeito do impacto das chamadas fake news sobre o voto e do que ela chama de “cinismo político”, alimentado pelo nivelamento por baixo da percepção pública sobre a política e, de forma mais ampla, sobre o conjunto das instituições democráticas.

Em entrevista dada ainda em 2017, ela já alertava para os riscos da generalização negativa como fator desmobilizador – e, digo eu, mobilizador de sentimentos e orquestrações antidemocráticas. Essa generalização negativa se volta não somente contra as instituições democráticas, mas também contra a própria mídia, inclusive de modo violento, no mundo virtual e no real, com a hostilização cotidiana de repórteres nas ruas.

Pavão fala das generalizações negativas como atalhos cognitivos. “Quando começa a achar que todo político é corrupto, em algum ponto o eleitor faz a generalização, porque para ele é mais fácil do que ter o trabalho de ir atrás da informação sobre cada um”.[16]

O avanço dos discursos e atitudes extremistas é também potencializado pelo anonimato. Em outra de suas obras, Byung-Chul Han analisa especificamente a questão do anonimato na esfera virtual, evidenciando que esse elemento conspira contra a noção de respeito nas interações nas redes digitais, com reflexo na interação, por meio delas, com as instituições.

No atual momento de quebra de paradigmas e do avanço dos algoritmos, o alto nível de ruído na comunicação deriva, em boa medida, do anonimato e da prevalência do espetáculo sobre o respeito. É do autor a expressão shitstorm, ou tempestade de indignação, na pudica tradução para a edição brasileira da obra “No enxame: perspectivas do digital”[17].

Em muitos casos, as pessoas passaram a demonizar e virar as costas para o jornalismo profissional, preferindo o conforto dos próprios guetos de informação. O jornalismo profissional converteu-se, então, em alvo do sectarismo, e passou a ser atacado por orquestrações de inspiração antidemocrática.

Esse potencial de danos materializou-se em diferentes democracias em passado recente, e teve como momento tragicamente emblemático a invasão do Congresso norte-americano em 6 de janeiro de 2021, que interrompeu, por algumas horas, a sessão de confirmação da vitória eleitoral do democrata Joe Biden para a presidência dos Estados Unidos.

Naquele episódio, que deixou um saldo de cinco vítimas fatais e mais de 140 policiais feridos, o impensável aconteceu, justamente na mais sólida democracia do mundo contemporâneo. Insufladas por uma mentira sobre a lisura do processo eleitoral, desprovida de evidências concretas, mas repetida à exaustão durante meses nas redes sociais e por parte da mídia, centenas de cidadãs e cidadãos norte-americanos, aliados a um partido de perfil conservador, invadiram o Capitólio e chocaram o mundo.

Donas de casa, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras de diferentes áreas, pequenos empresários e empresárias, servidores e servidoras públicas, veteranos de guerra, policiais, aposentados e aposentadas e até mesmo um parlamentar estadual juntaram-se a grupos extremistas e supremacistas brancos de perfil paramilitar na multidão que atropelou um frágil esquema de segurança e produziu um fato político de impacto duradouro.

Além de remeter à crise da democracia representativa, a escalada da chamada “big lie” (a grande mentira) foi responsável por imagens aterradoras que entraram para a história. Nada mais anticonservador que a invasão e a depredação de um Congresso Nacional. Esse fato revela o mundo de confusão e de sinais trocados deste primeiro quarto do Século XXI. O otimismo sobre o futuro da democracia liberal e das relações internacionais foi substituído por populismos de diferentes matizes ideológicos – mais recentemente de extrema direita – ancorados na lógica do “nós contra eles”, na sistemática contestação do conceito de verdade factual e dos que zelam por ela, na manipulação dos fatos e na aposta no ódio e na intolerância como ferramenta política de vocação autoritária.

A visão otimista quanto ao uso predominantemente virtuoso da Internet e das redes sociais, muito repetida na virada do século, infelizmente tornou-se página virada, uma página que a humanidade não concretizou conforme se pretendia. Ao mesmo tempo em que propiciou a difusão e o compartilhamento de conhecimentos e a aproximação de pessoas, a custos baixos, em escala inédita e verdadeiramente global, com benefícios para centenas de milhões de seres humanos, o advento das novas tecnologias apresentou também poderosos efeitos colaterais negativos. Entre esses efeitos, a tecnologia foi incorporada a práticas delitivas em vários campos e, em particular, ao arsenal de forças políticas e de grupos sectários e extremistas para amplificar orquestrações antidemocráticas e discursos de ódio e intolerância, além de multiplicar o alcance de táticas sofisticadas de desinformação e de recrutamento de pessoas para fins criminosos, inclusive para ações terroristas.

Como vimos nos Estados Unidos recentemente na invasão ao Congresso e no insólito episódio de desinformação em massa conhecido como Pizzagate[18], as paixões dos “guerreiros de teclado”, do mundo virtual, podem transformá-los rapidamente em agentes de violência política no mundo real.

O fenômeno da desinformação e das democracias em xeque é global e, sem dúvida, os sistemas de justiça ocupam um papel central na defesa da verdade factual e do Estado Democrático de Direito. São, por isso, duramente criticados, acusados de suposto ativismo e de deliberar sobre praticamente todas as questões relevantes no debate público.

Em tempos de ataques à democracia representativa e a seu clássico sistema de freios e contrapesos (checks and balances), bem como de crescente litigiosidade nas relações sociais, não raramente cabe às cortes supremas e constitucionais dar a última palavra em uma ampla quantidade de controvérsias, várias delas novas e decorrentes das mudanças de paradigmas tecnológicos. Mediar tensões, frear abusos de agentes públicos e privados, sustentar as bases constitucionais da convivência democrática, as liberdades fundamentais e os direitos de minorias estão entre esses desafios cotidianos das Cortes.

Tentativas de maiorias eventuais e ondas de opinião pública voltadas a promover o desrespeito a decisões judiciais e, no limite, a defender até mesmo o chamado “empacotamento” de Cortes, com mudanças na composição e nas regras de funcionamento com o propósito de enfraquecer seu papel contramajoritário, têm merecido detida análise como sintoma de retrocesso democrático em diferentes partes do mundo.

Ao contrariar esses movimentos, apoiados muitas vezes em estruturas de desinformação e de fanatização de seguidores, as Cortes têm cumprido seu papel constitucional no sistema de freios e contrapesos e na defesa de direitos e garantias fundamentais. Paga-se um preço caro por isso: não raramente são tragadas para o turbilhão do debate público e das redes sociais, nos quais a paixão e o imediatismo dificilmente vêm acompanhados dos argumentos constitucionais e legais necessários para a reflexão e a crítica construtiva.

Em meio a tudo isso, no Brasil, uma das grandes tarefas do Supremo Tribunal Federal (STF) tem sido garantir a liberdade de expressão, um dos grandes legados de nossa Constituição Federal (CF) de 1988, pelo papel decisivo que teve em sepultar definitivamente um capítulo triste de nossa história em que esse direito – entre tantos outros – foi negado à cidadania. Todavia, em tempos de pós-verdade, a Corte também tem enfrentado o desafio de coibir as tentativas de atores sociais e políticos de buscarem abrigo na liberdade de expressão para o cometimento de crimes.

III. LIBERDADE DE EXPRESSÃO: DIREITO FUNDAMENTAL,
MAS NÃO ABSOLUTO

O regime democrático pressupõe um ambiente de livre circulação de ideias, dentro do marco constitucional do Estado de Direito no qual todos tenham direito a voz. Não se trata de um vale-tudo. Trata-se de um regime com regras de convivência. A democracia somente pode consolidar-se e desenvolver-se em um ambiente no qual as diferentes convicções e visões de mundo possam ser apresentadas, defendidas e discutidas, em um debate rico, plural e resolutivo.

Nesse sentido, é muito elucidativa a noção do “mercado livre de ideias”, concebida pelo célebre juiz da Suprema Corte norte-americana Oliver Wendell Holmes Jr., segundo a qual ideias e pensamentos devem circular livremente no espaço público para que sejam aperfeiçoadas de maneira contínua e confrontadas, tendo como objetivo buscar a verdade[19].

Amplamente consagrada pela Constituição brasileira de 1988, assegura-se, entre os direitos fundamentais previstos em seu art. 5º (incisos IV, IX e XIV), a livre manifestação do pensamento e as liberdades de expressão intelectual, artística, científica, de crença religiosa, de convicção filosófica e de comunicação. Ademais, assegura-se que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto na Constituição (art. 220, caput). Essas liberdades são essenciais para a existência do pluralismo político e para a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação, previstas no art. 3º (incisos I e IV) da Constituição de 1988 entre os objetivos da República Federativa do Brasil.

Graças a esse ambiente pleno de liberdade, temos assistido a um contínuo avanço das instituições democráticas do Brasil. O Supremo Tribunal Federal tem construído uma jurisprudência consistente em defesa da liberdade de expressão: declarou a inconstitucionalidade da antiga lei de imprensa, por essa possuir preceitos tendentes a restringir a liberdade de expressão de diversas formas (Arguição de descumprimento de preceito fundamental/ADPF nº 130, Diário de Justiça Eletrônico/DJe de 6/11/2009); afirmou a constitucionalidade das manifestações em prol da legalização da maconha, tendo em vista o direito de reunião e o direito à livre expressão de pensamento (ADPF nº 187, DJe de 29/5/2014); dispensou diploma para o exercício da profissão de jornalismo, por força da estreita vinculação entre essa atividade e o pleno exercício das liberdades de expressão e de informação (Recurso Especial/RE nº 511.961, DJe de 13/11/2009); determinou que a classificação indicativa das diversões públicas e dos programas de rádio e TV, de competência da União, tenha natureza meramente indicativa, não podendo ser confundida com licença prévia (ADI nº 2.404, DJe de 1/8/2017); declarou inconstitucionais dispositivos da Lei das Eleições que vedavam emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos, partidos e coligações nos três meses anteriores ao pleito, como forma de evitar que fossem satirizados (Ação Direta de Inconstitucionalidade/ADI nº 4.451, DJe de 6/3/2019); suspendeu decisão da Presidência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) que permitia a apreensão de livros que tratavam dos temas da homossexualidade e da transexualidade na Bienal do Livro realizada no Rio de Janeiro em setembro de 2019 (Suspensão de Liminar/SL nº 1.248, DJe de 11/9/2019); suspendeu decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ) que havia proibido a exibição do vídeo especial de Natal da produtora Porta dos Fundos na plataforma de streaming Netflix (Reclamação/Rcl nº 38782, DJe de 5/2/2020); entendeu ser incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento que possibilite impedir, em razão da passagem do tempo, a divulgação de fatos ou dados verídicos em meios de comunicação (RE 1.010.606, DJe de 19/5/2021); assegurou o direito de resposta em sua plenitude (ADI 5.418, DJe 25/5/2021); declarou a constitucionalidade de apresentações artísticas ou shows musicais em eventos de arrecadação em campanhas eleitorais (ADI 5970, DJe 8/3/2022).

No entanto, em sintonia também com a prática internacional na matéria, o STF tem reiterado, em seus julgados, que a liberdade de expressão deve ser exercida em harmonia com os demais direitos e valores constitucionais. Nesse sentido, em 2003, a Corte, ao denegar o pedido de habeas corpus e manter a condenação ao editor Siegfried Ellwanger pela difusão de livro de conteúdo antissemita (habeas corpus/HC 82.424, DJe de 19/3/2004), decidiu que a difusão de ideias discriminatórias em relação ao povo judeu configurava crime de racismo. Conforme a decisão do STF, “escrever, editar, divulgar e comercializar livros ‘que fazem apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias’ contra a comunidade judaica (Lei nº 7716/1989, art. 20, na redação da Lei nº 8081/1990) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de crimes inafiançáveis e imprescritíveis (Constituição Federal, art. 5º, XLII)”.

O próprio juiz norte-americano Oliver Wendell Holmes, grande defensor da liberdade de expressão, também defendeu a tese de que essa liberdade pode subordinar-se a outros princípios nos casos em que a manifestação de pensamento represente perigo evidente e capaz de produzir males gravíssimos.

Tenho a convicção de que seja esse o caso de determinadas notícias fraudulentas, em razão dos graves prejuízos à democracia que o intercâmbio em massa desses conteúdos pode causar. Essa convicção resulta de uma reflexão de vários anos sobre essa mudança de paradigma tecnológico no mundo e seu impacto, infelizmente acompanhados pelo avanço do sectarismo e da intolerância e pela proliferação das notícias fraudulentas e das campanhas de ódio.

Ademais, correlata da liberdade de expressão, a liberdade de informação também está amplamente protegida em nossa ordem constitucional. A Carta assegura a todos o acesso à informação, de natureza pública ou de interesse particular (art. 5º, incisos XIV e XXXIII, e art. 93, inciso IX). No contexto da comunicação social, a Constituição confere “acentuada marca de liberdade na organização, produção e difusão de conteúdo informativo” (ADI 4.451, DJe de 6/3/19), proibindo qualquer restrição à manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à informação (art. 220).

Por outro lado, na livre manifestação do pensamento, é vedado o anonimato (art. 5º, IV, CF), o que, evidentemente, exclui a possibilidade de utilização
de perfis falsos e a utilização de robôs na disseminação de notícias fraudulentas.

As liberdades de expressão e de informação fidedigna são complementares. A desinformação turva o pensamento; nos coloca no círculo vicioso do engano; sequestra a razão. A dificuldade de discernir o real do irreal e a desconfiança prejudicam nossa capacidade de formar opinião e de nos manifestar no espaço público. Por isso, combater a desinformação é garantir o direito à informação, ao conhecimento, ao pensamento livre, dos quais depende o exercício pleno da liberdade de expressão.

As notícias fraudulentas e a desinformação são extremamente danosas à democracia. Por gerarem desconfiança e incerteza, prejudicam a ação individual no espaço público, visto que o cidadão passa a se guiar por inverdades. Além disso, essas práticas facilitam a polarização social, dificultando, ou mesmo inviabilizando, o diálogo plural, tão fundamental para a democracia.

O regime democrático necessita de um ambiente em que ocorra o livre trânsito de ideias, razão pela qual as nações democráticas tutelam com vigor a liberdade de expressão. No entanto, esse direito não pode dar guarida à desinformação. Em verdade, o pleno exercício da liberdade de expressão depende do acesso a informações fidedignas, as quais são necessárias ao conhecimento e ao pensamento livre.

Nos últimos anos, em razão da alta relevância e sensibilidade dos assuntos sob sua responsabilidade, o STF passou a ser um dos alvos prioritários de campanhas de desinformação, que buscam desgastar as instituições democráticas. Há claros elementos de desrespeito à Constituição e às leis nessas orquestrações antidemocráticas, as quais carecem de investigação e atento acompanhamento.

Considerando a necessidade de se apurar a existência de esquemas de financiamento e divulgação em massa de notícias fraudulentas nas redes sociais com o intuito de lesar ou expor a perigo de lesão a independência do Supremo Tribunal, como Presidente da Corte, editei a Portaria nº 69 de 2019, com a determinação de instauração do Inquérito nº 4.781, fundamentado no art. 43 do Regimento Interno do STF, cuja força é de lei ordinária.

A medida mostrou-se necessária como mecanismo de defesa do Poder Judiciário e da democracia do País. Como desdobramento imediato, os ataques à Corte na Internet foram reduzidos em cerca de 80%. Por meio da investigação, identificou-se o emprego em massa de robôs para a disseminação de notícias fraudulentas e discursos de ódio contra o Poder Judiciário, uma estratégia deliberada que tinha como objetivo gerar instabilidade e intimidar o Tribunal. Foram identificadas também ameaças à integridade física dos Ministros da Corte, inclusive na chamada deep web.

A iniciativa foi criticada nos meios de comunicação por jornalistas e atores do mundo político e social, por suposto cerceamento às liberdades de expressão e de informação, além de alegada invasão de competências de outras instituições, como o Ministério Público.

Apesar das incompreensões e críticas iniciais, havia, de minha parte, plena convicção quanto a sua legalidade e a sua absoluta necessidade naquele momento, com a escalada da orquestração antidemocrática que já estava em curso naquela época e que, infelizmente, continuou. Gradualmente, as motivações dessa escalada foram ficando evidentes para todos, assim como o caráter minoritário de seus perpetradores, uma minoria engajada, estridente e agressiva, inclusive contra a mídia tradicional.

Muitos de nós vimos esse fenômeno acontecer em nossas próprias famílias e círculos de amigos, onde discutir política tornou-se um exercício penoso e revelador do ódio alimentado pela desinformação em massa acumulado ao longo dos últimos anos. Esse ódio foi ardilosamente capturado por uma minoria e tem sido utilizado contra a democracia e suas instituições.

No contexto dos ataques ao Tribunal, era necessário exercer a autoridade e o direito de autodefesa do Supremo diante de orquestrações antidemocráticas claras, de contornos violentos e totalitários, os quais hoje são mais bem compreendidos pela sociedade brasileira. Aos poucos, os fatos encarregaram-se de demonstrar a importância da defesa das instituições e o que estava em jogo nesse embate: a própria democracia.

O Plenário do STF, em junho de 2020, no julgamento da ADPF 572 (DJe 7/5/21), confirmou a constitucionalidade e a legalidade da medida, por dez votos a um, e entendeu ser necessária sua continuidade.

O inquérito sobre as notícias fraudulentas continua revelando elementos sobre essas orquestrações antidemocráticas e seus financiadores, inclusive de fora do Brasil. A decisão já é apontada internacionalmente como a primeira reação institucional efetiva contra notícias fraudulentas e contra ações orquestradas de difusão do sectarismo, do ódio e do medo nas redes sociais.

A liberdade de expressão não pode ser utilizada para oferecer proteção a comportamentos ilegais e atentatórios à existência da Suprema Corte do País ou à integridade física de seus ministros. O Supremo Tribunal é essencial para a manutenção do equilíbrio da democracia, à moderação dos conflitos jurídicos e políticos e à salvaguarda dos direitos e garantias fundamentais, em particular os das minorias. Atacar o Tribunal significa atacar a Constituição e a democracia. Não se trata aqui de críticas, com as quais a Corte convive cotidianamente, e sim de ações ilegais.

A liberdade de expressão não pode ser utilizada para blindar condutas que atentem contra a existência da Suprema Corte do País e ameacem a integridade física e a vida de seus ministros. Ela também não deve respaldar a alimentação do ódio, da intolerância, da desinformação. Essas situações representam o exercício abusivo desse direito, por atentarem, sobretudo, contra o princípio democrático, que compreende o “equilíbrio dinâmico” entre as opiniões contrárias, o pluralismo, o respeito às diferenças e a tolerância.

III. CONCLUSÃO

A obra pioneira do sociólogo espanhol Manuel Castells, construída a partir da década de 1990, nos ajuda a compreender que vivemos o paradigma da sociedade em rede, a qual se caracteriza por ter como base as redes de comunicação digital, que operam em escala global. Conforme define o sociólogo, “as redes de comunicação digital são a coluna vertebral da sociedade em rede, assim como as redes de potência (ou redes de energia) constituíam as infraestruturas sobre as quais a sociedade industrial foi construída”[20]. Ademais, “sua lógica chega a países de todo o planeta e é difundida por meio do poder integrado nas redes globais de capital, bens, serviços, comunicação, informação, ciência e tecnologia”[21]

Manuel Castells observa, com propriedade, que a tecnologia não determina a sociedade: ela constitui a própria realidade[22]. Sociedade e tecnologia estão unidas de maneira indissociável. Portanto, as ferramentas tecnológicas dessa nova era e as redes de comunicação digital são moldadas pela sociedade e, ao mesmo tempo, moldam a própria sociedade. Somos, portanto, uma sociedade digital, hiperconectada e global.

No contexto dos últimos anos, de profunda e constante mudança de paradigmas, não cabe, como se vê, complacência em relação aos “engenheiros do caos”, que tentam se valer da liberdade de expressão e das ferramentas tecnológicas disponíveis para cometer crimes, claramente tipificados no arcabouço legal de países democráticos como o Brasil.

Não se pode admitir que as prerrogativas individuais e coletivas das democracias liberais sejam subvertidas por aqueles que pretendem usar a liberdade de expressão como escudo para cometer crimes e para atentar contra as regras da convivência democrática e contra as instituições.

O contundente respaldo ao inquérito sobre as chamadas fake news (Inquérito 4.781), declarado legal e constitucional, em junho de 2020, no julgamento da ADPF 572, e outras importantes decisões posteriores a respeito do tema mostram que o Supremo Tribunal Federal tem cumprido seu papel em defesa da Constituição de 1988 e do Estado Democrático de Direito, reafirmando, de modo enérgico, os limites da lei e da Constituição. Não por outra razão, a Suprema Corte Brasileira tem sido reconhecida, por especialistas internacionais, como protagonista de uma das primeiras reações institucionais de autodefesa em resposta a orquestrações antidemocráticas no cenário internacional.

Em recente livro – “O suicídio do Ocidente” – Jonah Goldberg, uma voz conservadora norte-americana, faz um alerta sobre os perigos de retrocesso do atual momento histórico, contribuindo com alguns elementos brilhantes de reflexão sobre o que nos trouxe até aqui e sobre os riscos que corremos se não mudarmos o rumo, a partir de nossas próprias reflexões e atitudes individuais.

Goldberg aponta, corretamente, para o risco de colapso de um modelo político, econômico e social responsável por mais de três séculos do que ele caracteriza como o período de maiores avanços e de inédita prosperidade na história. O capitalismo e a democracia liberal são elementos fundamentais para esse progresso[23].

Como antídoto para o declínio, o autor sugere um conceito simples, mas fundamental: o das tarefas de manutenção[24]. Construções humanas não são dados da natureza, precisam constantemente de manutenção. Relações humanas precisam de manutenção. A democracia, o Estado de Direito e suas regras de convivência também precisam.

No mesmo sentido, Robert Kagan usou no título do seu livro “The jungle grows back” (A selva volta a crescer)[25], lançado em 2018, uma imagem poderosa que também nos direciona ao caminho das tarefas de manutenção, se quisermos manter as conquistas civilizatórias das décadas que se seguiram às Guerras Mundiais do Século XX. A tradução do subtítulo do livro – “America and our imperiled world” (Os Estados Unidos e nosso mundo em perigo) reforça a tese.

A complacência é má conselheira para os encarregados de tarefas de manutenção, sejam elas instalações físicas, como estradas, pontes ou equipamentos, sejam elas instituições democráticas. A incapacidade de muitas sociedades em promover o diálogo e gerar consensos, no atual momento, tem como consequência o fato de que o Poder Judiciário é constantemente chamado a atuar nessas tarefas de manutenção, quando se trata das regras do jogo democrático.

A história recente da humanidade remete a momentos políticos turbulentos e a páginas sombrias da primeira metade do Século XX, analisados com profundidade por acadêmicos como Hannah Arendt, que realçou a importância da noção da verdade factual como base para uma convivência em paz. Um século depois, a noção da verdade factual volta a estar sob ataque, e as lições do passado não podem ser esquecidas. Uma delas é a de que a complacência diante de orquestrações antidemocráticas é fatal para as democracias.

A liberdade de expressão não oferece proteção aos que atentam contra a Constituição e o Estado Democrático de Direito, e não importa se os crimes são cometidos no espaço virtual ou no real, até porque episódios já citados mostram como a incitação ao ódio e o envenenamento de consciências na Internet logo ganham forma nas ruas.

A guerra em defesa da verdade factual está em curso, e nela o sistema de Justiça tem um papel fundamental a cumprir. Nesse contexto marcado por ameaças e desafios, o principal desafio, não só para o STF, mas para a sociedade contemporânea como um todo, é o de defender e fazer valer a noção de verdade factual, tão fustigada nos últimos tempos pelo sectarismo político e pelas teorias da conspiração mais absurdas.

Não se trata do direito a ter as próprias opiniões (isto sim, enquadra-se na liberdade de expressão e de pensamento). O que temos visto são pessoas defendendo o direito de escolher os próprios fatos, ainda que totalmente dissociados de qualquer base factual ou empírica. O terraplanismo talvez seja o exemplo mais folclórico dessa tendência, e a resistência a vacinas, incluídas aquelas contra a covid-19, o mais trágico, e criminoso.

Hannah Arendt nos legou uma análise acurada das implicações entre verdade factual/mentira e democracia/totalitarismo. Como é característico dos clássicos, a obra e as reflexões de Arendt seguem vigentes, tendo em vista a profundidade de seu pensamento e os elementos humanos envolvidos.

Em uma de suas obras, “As origens do totalitarismo”, a autora nos ajuda a entender os movimentos autoritários da atualidade, proporcionando uma visão chocante do momento em que “as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditavam em tudo e nada, julgavam que tudo era possível e que nada era verdadeiro”[26].

Ainda segundo a autora, com esses elementos, os líderes totalitários:

[podiam] fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas afirmações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável da sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela grande esperteza tática.[27]

No prefácio à obra de Arendt “Entre o passado e o futuro”, escrito em 1972, o professor Celso Lafer já propunha, no contexto da sociedade de massas, o necessário debate sobre a natureza essencialmente dialógica da política e sobre questões fundamentais como a liberdade, a verdade factual e o próprio conceito de autoridade.

Ao citar, há 50 anos, recursos de manipulação política como o de reescrever a história, o professor Lafer salientava a importância de mecanismos sociais de defesa contra essas ameaças:

Daí a importância de alguns mecanismos de defesa da verdade factual, criados pelas sociedades modernas, fora do seu sistema político, mas indispensáveis para a sua sobrevivência, como a universidade autônoma e o judiciário independente.[28]

Hannah Arendt, por sua vez, também citava, na mencionada entrevista concedida em 1973, a imprensa livre como o terceiro elemento fundamental em defesa da verdade factual. Em suas palavras, “[n]o momento em que não mais tivermos uma imprensa livre, tudo pode acontecer. O que torna possível que uma ditadura totalitária ou qualquer outra governe é que as pessoas não estejam informadas; como se pode ter uma opinião se não se está informado?”[29].

Não se trata de mera coincidência que, na atualidade, o Poder Judiciário independente, a universidade autônoma (onde se produz conhecimento) e a imprensa tradicional e séria estejam entre os alvos prioritários de campanhas de intolerância e desprestígio promovidas por movimentos antidemocráticos. Elas estão na linha de frente da defesa da verdade factual! Elas atuam como clássicos mecanismos de freios e contrapesos dos regimes democráticos.

Não há Estado Democrático de Direito sem as salvaguardas institucionais que garantem o cumprimento dos direitos e das liberdades constitucionais e nos livra do arbítrio e do autoritarismo.

Exatamente por isso, em histórico julgamento, o STF, em meio ao pleito eleitoral de 2018, por unanimidade, referendou a decisão liminar proferida pela Ministra Cármen Lúcia na ADPF 548 (julgada em 31/10/2018, DJe de 6/10/2020) suspendendo decisões judiciais e administrativas que determinavam a realização de buscas e apreensões de documentos e interrupções de aulas, debates ou manifestações de docentes e discentes em universidades públicas e privadas. A Suprema Corte honrou sua história centenária e atuou, a tempo e a hora e com altivez, para assegurar a autonomia e a independência das universidades brasileiras, bem como a livre manifestação do pensamento e das ideias, pilares sobre os quais se apoia o próprio Estado Democrático de Direito.

No momento em que se comemoram os 200 anos da Independência do Brasil, cumpre ao Supremo Tribunal Federal reafirmar, a cada dia, a fundamentalidade da liberdade de expressão, sem descurar, contudo, das situações que resultem no exercício abusivo desse direito – que não é absoluto – e na vulneração de outras garantias constitucionais e da própria integridade da democracia brasileira.

Finalizo este artigo, com as palavras finais do voto em que proferi, em 18 de junho de 2020, na conclusão do julgamento sobre a validade do inquérito sobre fake news e ataques ao STF (ADPF 572, DJe de 7/5/21). Que elas continuem a nos alertar contra o caos e os caminhos de inspiração totalitária, guiadas sempre pela segurança da Constituição da República:

Quiseram banalizar as instituições como desnecessárias, como inúteis.

Quiseram banalizar a política,

Banalizar a democracia,

Banalizar a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão.

Quiseram banalizar o Mal…

Plantam o medo para colher o ódio.

Plantam o ódio para colher o medo.

Não se impressionam em contar mortos…

Querem o confronto como forma de dominação,

A desinformação como nova religião

E o Caos como um novo “deus”.

Ao fim e ao cabo querem não o arbítrio,

Mas o próprio totalitarismo.

Já passamos por momentos de arbítrio,

Arbítrio que nunca mais voltará

E a fortiori

Jamais se tolerará!

Quem defende a democracia é a própria democracia!

O povo brasileiro, corpo e alma de nossa Nação!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. Hannah Arendt: “From an interview”. The New York Review of Books, Nova York, edição de 26/10/1978. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/1978/10/26/hannah-arendt-from-an-interview/. Acesso em 11/9/2021.

________. “Origens do totalitarismo”. Tradução de Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Edição digital)

CASTELLS, Manuel. “A Sociedade em rede: do conhecimento à política”. In CASTELLS, Manuel; CARDOSO, Gustavo (orgs.). A sociedade em rede: do conhecimento à acção política. Imprensa Nacional, Lisboa, 2005, p. 17-30. (Edição digital.)

DA EMPOLI, Giuliano. “Os engenheiros do caos”. Tradução de Arnaldo Bloch. 1ª edição. São Paulo: Vestígio, 2019. (Edição digital)

FALLOWS, James. “Detonando a notícia – Como a mídia corrói a democracia”. Tradução de Fausto Wolff. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.

GOLDBERG, Jonah. “O Suicídio do Ocidente”. Tradução de Alessandra Bonrruquer. 1ª edição. São Paulo: Record, 2020.

GREENBERGER, M, 1971 (Ed.), “Computers, communications and the public interest”. Baltimore: The Johns Hopkins Press, 1971, p. 40-41. Disponível em: https://digitalcollections.library.cmu.edu/awweb/awarchive?type=file&item=33748. Acesso em 18/8/2021.

HAN, Byung-Chul. “No-cosas – Quiebras del mundo de hoy”. Tradução de Joaquín Chamorro Mielke. Barcelona: Taurus, 2021. (Edição digital.)

__________. “No enxame: perspectivas do digital”. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2018.

KAGAN, Robert. “The jungle grows back – America and our imperiled world”. New York: Knopf, 2018. (Edição digital.)

LAFER, Celso. “Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt” (Prefácio). In ARENDT, Hannah. “Entre o Passado e o Futuro”. Tradução de Mauro W. Barbosa. 8ª edição. São Paulo: Perspectiva, 2016. (Edição digital.

LESSIG, Lawrence. “They don’t represent us – reclaiming our democracy”. Dey Street Books: Nova York, 2019. (Edição digital.)

MAIA, Gustavo. “Onda de corrupção gera ‘cinismo’ e desmobiliza eleitores, diz pesquisadora”. UOL, São Paulo, 21/4/2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/04/21/onda-de-corrupcao-gera-cinismo-politico-e-desmobiliza-eleitores-diz-pesquisadora.htm. Acesso em: 26/8/2021.

ZUBOFF, Shoshana. “A era do capitalismo de vigilância – A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder”. Tradução de George Schlesinger. 1ª edição. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.

NOTAS________________

[1] Tradução livre. Donald Trump não desmentiu a frase atribuída a ele por Stahl, veterana repórter do programa de TV “60 Minutes”, da rede de TV CBS. “Deadline Club Awards 2018 Dinner Conversation with Judy Woodruff and Lesley Stahl”. Disponível em (de 22min00 a 22min10s): https://www.youtube.com/watch?v=nq6Tt–uAfs&t=1269s. Acesso em 13/9/2021.

[2] Tradução livre. Trecho excluído da versão editada da entrevista a Roger Errera que foi ao ar. A declaração foi resgatada e publicada em 1978 pela revista New York Review of Books. “Hannah Arendt: From an interview”. The New York Review of Books, Nova York, edição de 26/10/1978. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/1978/10/26/hannah-arendt-from-an-interview/. Acesso em 11/9/2021.

[3] DA EMPOLI, 2019.

[4] ZUBOFF, 2020, p. 7.

[5] Ibidem, p. 7

[6] Ibidem, p. 7.

[7] LESSIG, 2019, pp. 204-209.

[8] Para o vídeo com a íntegra do discurso proferido por Barack Obama em 21 de abril de 2022, v. https://youtu.be/YrMMiDXspYo. Acesso em 22/4/2022.

[9] Conceito desenvolvido a partir de reflexão inicial do acadêmico norte-americano Herbert Simon, Prêmio Nobel de Economia de 1978 por seus estudos relativos ao processo decisório no âmbito da economia. Em seminário realizado em 1971, Herbert apontou para os desafios decorrentes da administração do tempo diante da abundância de oferta de informação, já naquela época: em tradução livre, “Consequentemente uma riqueza de informação cria uma pobreza de atenção e uma necessidade de alocar aquela atenção de modo eficiente entre a superabundância de fontes de informação que possam consumi-la”. Cf. “Designing organizations for an information-rich World”. In GREENBERGER, M, 1971, p. 40-41.

[10] Tradução livre. LESSIG, 2019, p. 108.

[11] Tradução livre. LESSIG, 2019, p. 108.

[12] HAN, 2021, p.11.

[13] Ibidem, p. 20.

[14] Ibidem, p.11.

[15] Como bem apontado por FALLOWS, 1997.

[16] MAIA, 2017.

[17] HAN, 2018, p. 14. Nota do tradutor define shitstorm como “tempestade de indignação” e associa o termo a campanhas difamatórias de grandes proporções na Internet.

[18] Transformada em alvo prioritário de uma teoria da conspiração pela Internet, que tinha como alvo a campanha presidencial de Hillary Clinton, a pizzaria Comet Ping Pong, que abrigaria em seu porão uma rede de pedófilos e suas vítimas em um bairro de Washington D.C., foi invadida, em dezembro de 2016, por um homem armado com um rifle AR-15 e um revólver, disposto a fazer justiça com as próprias mãos. Edgar Maddison Welch, que havia viajado da Carolina do Norte para a Capital norte-americana para desarticular a suposta rede de pedófilos, chegou a disparar uma das armas e descobriu então que a pizzaria nem sequer tinha um porão. Ele foi posteriormente condenado a quatro anos de prisão pela invasão armada, que não produziu vítimas.

[19] A primeira referência à tese por parte de Holmes Jr. ocorreu em um voto no qual ele dissentiu da maioria, no julgamento do caso Abrams v. United States, de 1919, na Suprema Corte norte-americana, no qual se manteve a possibilidade de processamento de Jacob Abrams e mais quatro indivíduos, com base no Espionage Act, de 1917, por sua militância contra a guerra. Desde então, o conceito foi invocado inúmeras vezes, em diferentes jurisdições, em favor da liberdade de expressão.

[20] CASTELLS, 2005, p.18.

[21] Ibidem, p. 18.

[22] Ibidem, p. 17.

[23] GOLDBERG, 2020, p. 211.

[24] Ibidem, p. 298.

[25] KAGAN, 2018, pp. 14-19.

[26] ARENDT, 2012, p. 490.

[27] Ibidem, p. 490.

[28] LAFER in ARENDT, 2016, p. 16.

[29] Tradução livre. ARENDT, 1978.