“Manter a segurança jurídica e cumprir sempre a constituição” 

6 de setembro de 2023

Compartilhe:

Entrevista exclusiva com o Ministro Cristiano Zanin, mais novo integrante do STF

Com sólida carreira no Direito, o jurista e professor Cristiano Zanin Martins se notabilizou como defensor de Luís Inácio Lula da Silva nos processos relacionados à operação Lava Jato. A indicação de seu nome por Lula para compor o Supremo Tribunal Federal (STF), na vaga aberta com a aposentadoria do Ministro Ricardo Lewandowski, levantou naturalmente dúvidas, num primeiro momento, quanto ao grau de independência que o novo ministro teria em relação ao presidente da República.

Contudo, estas dúvidas se mostraram injustificadas já na sabatina a que foi submetido na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados, em junho deste ano, quando seu nome foi aprovado por 58 votos a 18. Na ocasião, o então advogado divergiu de posições historicamente consolidadas pelo PT e demais partidos de esquerda, ao afirmar, por exemplo, ser contrário à legalização do aborto.

Independência que o hoje Ministro Cristiano Zanin – membro da Primeira Turma do STF – reafirmou logo nos seus primeiros julgamentos, ao votar, em novo exemplo, de forma contrária à tese jurídica da descriminalização das drogas.

Nesta entrevista exclusiva à Revista Justiça & Cidadania, a primeira concedida por ele na condição de ministro, menos de um mês após sua posse, o novo integrante do Supremo fala sobre algumas de suas convicções e também sobre as expectativas em relação a sua trajetória na magistratura – que poderá durar por quase três décadas, até 2050, quando completará a idade limite de 75 anos para a aposentadoria compulsória.

Revista Justiça & Cidadania – O senhor construiu notável carreira como advogado e professor de Direito. Na magistratura, já ingressou como membro da mais alta corte do País. O que muda ao
passar para “o outro lado da bancada”? O que o senhor espera realizar em sua atuação como ministro do STF?
Ministro Cristiano Zanin – Há mais de 20 anos, quando iniciei minha carreira na advocacia, prometi “defender a Constituição, a ordem jurídica do Estado Democrático, os direitos humanos, a justiça social, a boa aplicação das leis, a rápida administração da justiça e o aperfeiçoamento da cultura e das instituições jurídicas”. O exercício desse múnus, no qual sempre me pautei com dignidade e independência, me trouxe à Suprema Corte de nosso País.

Agora, no Supremo Tribunal Federal, tenho a oportunidade de contribuir com o crescimento da sociedade brasileira, lembrando o velho brocardo jurídico que aprendemos na academia, de que onde há sociedade, há Direito. Dessa forma, o que buscarei no exercício da magistratura constitucional é ser digno do cargo e manter a segurança jurídica, cumprindo sempre a Constituição, as leis da República e observando os precedentes de nossa Suprema Corte na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

JC – O que o levou a estudar Direito? Quando percebeu que gostaria de ser advogado? Qual foi a primeira vez em que imaginou que chegaria ao STF?
CZ – Desde criança convivi com o Direito. Meu pai foi advogado em Piracicaba (SP) e com ele aprendi a importância do advogado à administração da justiça. Ainda jovem, deixei minha cidade natal e fui estudar Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Lá tive a oportunidade de aprender com grandes professores e fazer boas amizades. Já formado, tive a oportunidade de atuar no Supremo Tribunal Federal desde o início da minha carreira como advogado, o que me permitiu ter uma visão sobre a importância da Corte para os mais de 200 milhões de brasileiros. É motivo de muito orgulho hoje integrar o Supremo Tribunal Federal.

JC – O senhor herda aproximadamente 500 processos deixados pelo Ministro Ricardo Lewandowski. Já teve tempo de analisar este acervo? Identificou alguma questão especialmente espinhosa?
CZ – Passei o mês anterior ao de minha posse indo ao gabinete para montar a equipe e estudar o acervo que herdaria e também os casos que já estavam pautados para julgamento, no Plenário do STF, já na semana seguinte ao início do meu exercício no cargo. O primeiro voto que proferi foi no julgamento do juiz das garantias, um tema relacionado à dignidade humana, de uma sociedade heterogênea e muito marcada pelas injustiças social e racial, e que visa, sobretudo, garantir a imparcialidade do juiz do processo ao assegurar que ele, ao se manter afastado das investigações, não se torne enviesado pelos componentes da fase pré-processual.

Na sequência, menos de uma semana depois, proferi voto sobre a tese jurídica da descriminalização das drogas. Ou seja, não há tema que chegue ao Supremo Tribunal Federal que não seja espinhoso, mas que deve ser examinado sempre em conformidade com a Constituição e as leis da República, conforme juramos ao tomar posse no mais alto cargo do Poder Judiciário.

JC – O senhor teve uma atuação muito marcante nos processos relacionados à Lava Jato, por ter sido o principal responsável pela defesa do Presidente Lula. Pretende declarar-se impedido de participar dos julgamentos relacionados à operação postos à apreciação da Primeira Turma ou do Plenário do Supremo?
CZ – Esse foi um dos questionamentos que respondi em minha sabatina perante o Senado Federal. Conheço as regras de suspeição e impedimento e analisarei sempre o caso concreto para saber se, naquela situação concreta, estou habilitado para julgar de forma imparcial ou se estou impedido por motivos de suspeição ou impedimento.

JC – O senhor renunciou a algumas ações em que atuava perante o Tribunal Superior Eleitoral, mas logo deverá fazer parte do Tribunal. O que podemos esperar da sua atuação na Justiça Eleitoral?
CZ – Ainda não sou membro do Tribunal Superior Eleitoral, mas já tive alguma experiência atuando em processos que tramitaram no Tribunal da Democracia. A Justiça Eleitoral exerce um papel fundamental ao garantir a lisura das eleições e a formação e manifestação livre da vontade do eleitor, sem que este seja coagido pelo abuso de poder político, econômico ou dos meios de comunicação e que a sua compreensão sobre os candidatos não seja maculada por notícias falsas, conhecidas como fake news.

JC – Lawfare ou ativismo judicial, qual dessas práticas traz maior insegurança ao sistema de Justiça do País?
CZ – O lawfare é o uso estratégico do Direito para fins de deslegitimar, prejudicar ou aniquilar o inimigo. Sou um dos autores da primeira obra jurídica sobre o tema. A prática do lawfare causa imenso descrédito a todo o sistema de Justiça, ferindo, principalmente, a garantia de um processo justo, imparcial e independente.

Já o apontado ativismo judicial radica na separação das esferas do poder, Executivo, Legislativo e Judiciário. Existe uma linha tênue entre o ativismo judicial e a mecânica da engrenagem dos freios e contrapesos. A nossa Constituição Federal tem vertente dogmática, o que amplia demasiadamente o seu objeto, e, em consequência, o campo de atuação dos juízes, notadamente o Supremo Tribunal Federal, guardião da Constituição.

Por sua vez, a Suprema Corte é o órgão de cúpula do Poder Judiciário, o que revela a presença de uma carga genética voltada à política em seu DNA. Os juízes constitucionais são indicados pelo presidente da República – eleito com a maioria dos votos – e aprovados pela maioria do Senado Federal, recebendo, assim, uma outra carga de legitimidade oriunda dos votos conferidos aos senadores que os aprovaram.

Com efeito, existem temas que devem ser debatidos e aprovados pelo Congresso Nacional e alguns outros já estão plasmados na Constituição Federal pelos constituintes. A estes últimos, cabe ao Judiciário conferir concretude, sem que isso incorra em ativismo judicial.

JC – Nos últimos anos, muito em função da operação Lava Jato, foi difundido no Brasil o instituto da delação premiada. Como o senhor avalia esse instrumento? O País precisa avançar nessa pauta?
CZ – A delação premiada tem de ser tratada como a lei a define, é um meio de produção de prova. Há notícias, ainda que circunscritas a alguns maxiprocessos, de delações forçadas, de combinações entre promotores e juízes para essa finalidade. Enfim, há muito o que evoluir sobre o tema e o Supremo Tribunal Federal vem balizando este caminho através de sua jurisprudência, de modo a garantir os direitos fundamentais conferidos pela Carta Magna.

JC –  A tentativa de golpe em 8 de janeiro mostrou que a Justiça Eleitoral e o STF estavam certos ao tomar medidas duras contra as campanhas de desinformação e ataque às instituições. De que forma o Judiciário e as instituições democráticas devem enfrentar o extremismo político de agora em diante?
CZ – Na forma prevista na Constituição da República e nas leis – atuais ou que venham a ser aprimoradas pelo Congresso Nacional.

JC – Diante dos riscos já constatados, não se discute mais a necessidade de regular as redes sociais, mas a forma ideal de fazê-lo. Qual seria o modelo ideal de regulamentação, conjugado à preservação da liberdade de expressão?
CZ – A liberdade de expressão é um direito fundamental conferido pela Constituição Federal, mas o mesmo dispositivo veda o anonimato. E a regulamentação deve vir nesse ponto, qual seja, a identificação e a eventual responsabilização de quem difunde notícias falsas, incentiva a prática de crimes ou atenta contra o regime democrático de Direito.

Contudo, o objeto a ser regulamentado e a forma de como deve ser é atribuição do Congresso Nacional, que tem total legitimidade para tanto, desde que observados os parâmetros constitucionais, não só da liberdade de expressão, mas também da dignidade da pessoa humana, do direito à privacidade e, mais atualmente, até do direito ao esquecimento.

JC – Ao que o senhor atribui a cultura do encarceramento e a resistência em soltar presos, por parte de alguns magistrados e tribunais, num País que possui superpopulação carcerária, déficit de quase 300 mil vagas no sistema prisional e no qual mais de 30% ainda são presos provisórios?
CZ – A discriminação racial, por exemplo, é uma realidade presente em diversas áreas, inclusive no sistema judiciário. E dela provém – sem risco de errar – um sistema carcerário referendado por condições desumanas e violações aos direitos humanos dos presos, sobretudo pela superlotação carcerária e pelas péssimas condições dos presídios, a ponto de esta Corte, no julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no 347 MC/DF, da relatoria do Ministro Marco Aurélio, declarar que o sistema penitenciário brasileiro é caracterizado como “estado de coisa inconstitucional”. Esse estado de coisas inconstitucional é caracterizado pela violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas, e cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária. Parece-me claro, diante desse cenário, que não estamos apenas diante de problemas estruturais, mas também de problemas relacionados ao procedimento adotado na persecução penal.

Segundo dados de 2021 do Conselho Nacional de Justiça, há cerca de 750 mil pessoas presas no Brasil, sendo que a capacidade do sistema prisional é em torno de 450 mil vagas. O alto índice de encarceramento posiciona o Brasil como o terceiro país no mundo com maior população carcerária, atrás apenas dos Estados Unidos e da China.

Esse índice é reforçado por uma dinâmica que há muito tempo se repete no sistema de justiça criminal brasileiro: o encarceramento atinge majoritariamente jovens de até 29 anos de idade (55%), negros (64%), com baixo grau de escolaridade, uma vez que 75% sequer acessaram o ensino médio. O 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado em 2023, no Fórum Brasileiro de Violência Pública, revela um dado preocupante: em 2022, o total da população prisional negra foi de 68,2%, o mais elevado da série histórica disponível. A maioria dos presos, portanto, é constituída por jovens negras, negros e pobres de baixo poder aquisitivo, os quais podem ser vítimas do preconceito racial, sendo este, talvez, o maior motivo para o encarceramento massivo e a apontada resistência à soltura daqueles cuja a prisão não seria a solução.

Nota_______________________

1 ZANIN, Cristiano; MARTINS, Valeska; VALIM, Rafael. “Lawfare, uma introdução” 2019. Editora Contracorrente.